Ana Júlia Trevisan
Frio na barriga, emoções à flor da pele e liberdade. Essas sensações características de uma viagem em alto mar são as mesmas presentes em Margem, Finda a Viagem, lançado em 2020 por uma das mulheres mais respeitadas do cenário musical brasileiro, a cantora, compositora e instrumentista Adriana Calcanhotto. Contando com uma rica discográfica com mais de 20 discos, ela começou sua trilogia pelo mar em 1998 com o CD Maritmo, dez anos depois, em 2008, lançou Maré, e em 2019 encerrou a trilogia com Margem. Agora nos presenteia com seu maior trabalho fora de estúdio, o CD e DVD Margem, Finda a Viagem; que é não apenas o DVD de Margem, como também o registro dos maiores sucessos presentes nos três trabalhos.
A paixão de Adriana pelo mar fica explícita logo em Maritmo. Um álbum de instrumental marcante, recebe esse título por conta do jogo de palavras entre mar e ritmo. Maré mostra o conforto da cantora ao estar no mar, com músicas mais intimistas é possível conhecer Adriana por inteiro. Já Margem traz o lado crítico dela, com a melhor sonoridade dentre os três trabalhos, colando o ouvinte ao lado artista, de maneira envolvente com cada sílaba cantada. Margem, Finda a Viagem é a junção do melhor da trilogia: uma real viagem pelo mar gravada de forma ao vivo tendo o público como tripulante.
O disco tem início ainda no litoral, com uma mistura de ansiedade e desejo a canção escolhida para partirmos foi Maré. A escolha da música é cirúrgica em vários aspectos, logo na introdução é apresentada a aventura que estamos breves a embargar e, analisando a letra, é possível saber que a cantora não é marinheira de primeira viagem. O trecho “mais uma vez vejo o mar”, entrega a experiência de Adriana Calcanhotto quando o assunto são as águas.
A segunda música do disco já nos coloca em barco a pleno vapor. O ritmo de Porto Alegre traz a sensação de estarmos no convés do navio de braços abertos, cabelo ao vento e rodopiando ao som do canto das sereias. A composição traz o ser mitológico Calipso, a ninfa marinha dos amores não correspondidos. Essa música introduz o desamor, tema recorrente do álbum de Adriana, que é mostrado com propriedade pelo eu lírico na seguinte faixa, Mais Feliz. Nessa canção, a compositora se desnuda tanto na questão amorosa, quanto no processo de escrever canções românticas.
Com o desamor já introduzido, as canções seguem no mesmo ritmo das ondas, como se em cada verso que Adriana Calcanhotto canta, uma onda passa, ajudando a navegar o barco. Era Pra Ser traz essa sensação de forma escancarada, canção do álbum Margem (2019), e já conhecida por muitos na voz de Maria Bethânia, ganhou uma versão menos recitada e mais melódica, diferente daquilo que já tinha sido apresentado, mas com a mesmo essência, deixando o ouvinte confortável durante a viagem. Essa não foi única canção já conhecida na voz de Bethânia, a interpretação de Tua levou o Grammy Latino de melhor canção em língua portuguesa em 2010 e ganhou um novo sentimento na gravação de sua compositora, Adriana Calcanhotto.
A sequência de faixas comprovam o brilhantismo de Adriana. A visceral Dessa Vez traz a intérprete por completo, reforçando a cantora única e destemida da nossa música popular brasileira. E ela não está sozinha nesse disco: Rubel, um dos cantores e compositores mais dinâmicos dessa geração, se junta à ela para partilhar duas músicas: Você Me Pergunta e Mentiras. A primeira é, sem dúvidas, uma das melhores do álbum. Composta por Rubel especialmente para Calcanhotto, ele mostra conhecer o trabalho da cantora apresentando uma música pertencente ao universo dela, que se encaixa à trilha trazendo a sensação que calmamente anoiteceu nossa viagem.
Mentiras é velha conhecida do repertório da cantora. Apesar de ser um álbum majoritariamente sem músicas inéditas, ela consegue inovar do começo ao fim. A voz de Rubel se encaixa na melodia da faixa, trazendo ainda mais paz para a viagem. Aliás, Adriana mostra ter planejado cada detalhe dessa aventura. Canções conhecidas há duas décadas na voz da cantora podem soar estranhas de primeiro momento, mas fazem pleno sentido no conjunto da obra, tornando Margem, Finda a Viagem um álbum memorável e certeiro para quem queira se aprofundar e encantar na obra da excepcional artista.
A viagem de Adriana Calcanhotto pelo mar foi calma e mostrou o amadurecimento pessoal e musical da cantora, explícito no instrumental e viés das canções. Falando em instrumental os créditos ficam com o trio Bem Gil (guitarra), Bruno Di Lullo (baixo) e Rafael Rocha (bateria, mpc e percussão), referenciados pela cantora durante as músicas de forma como se ela fosse a capitã do navio e estivesse fazendo um anuncio no alto falante do barco. Além da atitude nos envolver e transpassar ainda mais a sensação de viagem marítima, mostra a humildade dos gênios em aplaudir aqueles que os ajudam e os acompanham dentro de estúdio e em cima do palco.
O figurino usado pela cantora ajuda a construir a imagem de experiência com as águas. O longo vestido preto adornado com rede azul imprime essa personalidade mais madura da cantora que, desde 1998, encontra no mar sua inspiração, seus amores, suas críticas e o companheirismo em todos seus anos de carreira. A letra da intensa O Príncipe das Marés resume esse misto de sentimentos e certezas: “Eu caio e ileso levanto/Tô pronto pra recomeçar/O meu amor é o mar”.
A maior e melhor surpresa deste disco fica por conta de Futuros Amantes, um dos maiores clássico de Chico Buarque fez parte do set desde o início da turnê e foi a primeira a chegar ao streaming, em outubro de 2020, deixando gostinho daquilo que viria ser a trilogia maravilhosamente bem eternizada em CD e DVD. A escolha da canção foi saldo positivo no repertório de clássicos. A música, lançada por Chico em 1993, antes mesmo de Adriana iniciar sua trilogia, parece ter sido composta especialmente para esse espetáculo, dando ligação e sentido a tudo que é proposto neste trabalho.
A voz de Adriana Calcanhotto é a bússola que conduz os sentimentos a serem passados durante as faixas de Margem, Finda a Viagem. A imersão dos fãs, devido todo cenário construído, é tamanha que percebemos a mudança de ambiente ao sair das músicas amorosas. As palmas vindas da plateia, ou melhor, da tripulação, mostram que o show está próximo ao seu fim, como se voltássemos ao convés, mas dessa vez, à noite e com lâmpadas amarelas acesas. A cantora conduz essa sensação com propriedade, trazendo a música Marítimo, que apresenta elementos praianos em sua letra.
Margem (2019) tem como símbolo mais marcante sua capa. Nela, a cantora aparece dentro do mar cercada por garrafas pet e outros lixos plásticos. Dentre os três álbuns, o citado se destaca por trazer assuntos mais urgentes, e Adriana não deixa sua crítica ambiental de fora ao reunir o melhor de sua trilogia. Oguntê, inspirada em uma entrevista assistida por ela, nos faz pensar em todo descaso e tragédia feitas pelo ser humano contra àquela imensidão marinha que estamos vendo. A música soa como alerta sobre o fim do horizonte que parece infinito.
O final do disco nos faz sentir cada onda que passa de forma veloz mas não bruta. Isso graças a perfeita escolha de finalizar o trabalho com as músicas Lá Lá Lá, Margem, Meu Bonde e Maresia. O triunfo fica na conta das duas últimas canções, Meu Bonde é diferente do que tinha sido apresentado até então. O funk é comprovação que Adriana produz seu ofício de forma destemida, e também narra toda viagem feita por nós tripulantes e por ela, reforçando o imaginário de estarmos todos no mesmo barco. Já Maresia traz de volta a sensação de liberdade do início do álbum, fazendo ele ter começo, meio e fim e ainda deixar aqueles sintomas de saudades próprios do final de viagem.
Margem, valeu/Linda a viagem. O trecho da música que nomeia o disco é a melhor forma de agradecer a cantora por essa aventura. A coerência musical, dada pelo entrosamento dos três CDs, combinada à sonoridade do álbum, tornou Margem, Finda a Viagem, um dos melhores lançamentos de 2020 e registrou a trilogia de maneira calorosamente merecida. Foi prazerosa a honra de poder mergulhar ao lado de Adriana Calcanhotto.