Vitor Evangelista
A certo momento da nebulosa e densa atmosfera de A Maldição da Mansão Bly, Jamie mostra a dama-da-meia-noite para uma incrédula Dani. Cada botão da flor, de acordo com a jardineira, só floresce uma vez, e morre em seguida. Seu desabrochar é um evento por si só. Dois anos depois da exuberante Residência Hill, a minissérie de Mike Flanagan retorna, com rostos conhecidos e trama diferente, para se equiparar à flor noturna: pode ser que histórias novas demorem a chegar mas, quando o momento vem, o espetáculo é sem tamanho.
A Mansão Bly já começa em desvantagem, todavia. Quando anunciada a renovação da Residência Hill, sob o título de antologia, a temporada seguinte lidaria com a ingratidão de sequenciar uma das tramas mais fechadas e concisas do gênero do terror. A chave seria manter os mesmos moldes do cerne do seriado, isso é, contar histórias de amor, dor e perda, envelopados em contos de terror, mistério e morte.
Mike Flanagan, papai da Maldição e o grande adaptador de obras do momento, escolheu como base o livro A Outra Volta do Parafuso, publicado em 1898 por Henry James. Não contente em explorar este único trabalho do autor, a Mansão Bly busca inspiração em outras novelas, como O Romance das Roupas Velhas e A Bela Esquina, no fim das contas, se tornando uma homenagem à escrita de James, e seu legado contando mistérios recheados de incerteza e negação.
A outra pedra no sapato da temporada é o terrível formato de maratona. A moda e o comum hoje em dia, essa liberação de todos os capítulos no mesmo dia é prejudicial aqui pelo ritmo que Mansão Bly injeta em sua narrativa. Enquanto a Residência Hill era pauleira e dedo na tomada, sua irmã mais nova tem muito do elemento de consagração do horror: a lentidão. O meticuloso trabalho de criar a atmosfera de dúvida e paranoia ecoa nos episódios, dando a impressão de que muito pouco acontece em tela.
A temporada não abusa de sustos ou aparições, por mais que duas figuras medonhas recebam destaque. O Harry Potter iluminado e a Sandra Bullock cega assustam nas primeiras aparições, perdendo a força com o passar do tempo, e isso não é demérito algum. Mike Flanagan abre mão dos jumpscares (o susto que faz o cu cair da bunda) para chocar pela verdade e pela tristeza. Em A Maldição da Mansão Bly, não existem vilões, todos são vítimas, seja do amor, da traição ou de um reles mal-entendido.
Até mesmo a superexposição dos mortos funciona à favor da visão dos roteiristas, o público encontra tantas vezes com as criaturas que passa a questionar suas motivações e o que está por trás do medo. Essa talvez seja a marca registrada dessa franquia A Maldição, visto que, na Residência Hill, o que chamava atenção era o tratamento do pós-trauma, as sequelas que as então crianças levariam para a vida adulta. A série nos coloca para pensar a todo tempo, mesmo que de modo inconsciente.
Na Mansão Bly, Mike Flanagan estuda o luto sobre outras óticas. Os nove capítulos sublinham o fator ingratidão da morte, sempre findando sonhos e a felicidade. Por consequência, a série atira também para o outro lado, dando considerável camada à discussão da parcela dos vivos, essa ideia criada e perpassada por nós de que a morte é o fim e o luto é um monstro abominável, digno de ódio. A passagem é apenas isso, uma intermitência, as pessoas não vivem apenas por carne e osso, e o mais importante acaba sendo as memórias. Enquanto lembrarmos de algo ou alguém, por mais doloroso que seja, manteremo-nas viva.
O livro de Henry James já foi adaptado 35 vezes, e a Mansão Bly não se preocupa em reinventar a roda ou brincar de malabarismo com os acontecimentos originais. O cinema (e a TV) de Mike Flanagan demonstra uma destreza e habilidade de usar os preceitos básicos das narrativas, e inverter não a lógica dos clichês, mas o que vem anterior à eles: o criador é mestre em dar profundidade aos personagens que compõem suas histórias.
Mesmo Dani (a deslumbrante Victoria Pedretti), que parece sem sal à primeira vista, recebe a devida atenção e se pavimenta como uma das mais atormentadas pelo passado e, mais assustador ainda, pelo futuro. A atriz assume o protagonismo da trama, e sua interpretação corre pelas beiradas, existem muitos olhares vazios, bocas tortas e um grito entalado. Pedretti constrói sua anti-Scream Queen, alguém que internaliza muito e se esquiva do confronto. Mesmo na derradeira conclusão, ela sai de cena passiva, deixando os sentimentos à flor da pele para o espectador experienciar.
Os papéis secundários também passam por esse característico remelexo criativo de Mike Flanagan. Na série, só conhecemos os criados e serviçais, e a única figura de ‘autoridade’ se aloca longe do casarão, assim, de cara não existe a batida relação aristocrática que Downton Abbey já explorou muito bem no passado. As funções, clichês por essência, do cozinheiro, governanta e jardineira, já tem um pontapé invertido, mesmo nunca adereçando essa inversão de gêneros.
O cozinheiro Owen (Rahul Kohli) diverte pelo papel de tio do pavê, mas encontra os tons certos de paixão e aceitação do fim. É uma figura que tinha tudo para ser periférica ou alívio cômico, mas o tratamento de Flanagan esmiúça riquezas em sua construção. O mesmo pode ser dito sobre Jamie (Amelia Eve), a jardineira que fala sobre a dama-da-meia-noite. Meio tomboy, a jovem vai descascando sua verdadeira essência ao passo que a trama progride.
Quando falamos da governanta Hannah Grose, a história muda. A estupenda atuação de T’Nia Miller alavanca a personagem à frente de tudo que a Mansão Bly apresenta. Não há ninguém acima dela, mas ela está acima de muitos. O combo narrativo a favorece, começando envolta num gostoso mistério, a mulher sofre pelos temores da incerteza.
O quinto capítulo, O altar dos mortos, já entrega na sinopse: ‘ela já viu de tudo’, se referindo a astúcia da governanta. O que destaca a franquia A Maldição de outras investidas do gênero é exatamente o tato quase irreal com certas figuras. Hannah não é nem de longe um ponto central da Mansão Bly, e, mesmo assim, recebe o tratamento de protagonista, ainda bem.
Na apresentação dos nebulosos fantasmas, a série cozinha um conceito interessante e que revigora seu núcleo. Traduzido como devaneios, são momentos de perda e confusão, onde os personagem sentam em cima da bússola e não sabem o caminho certo. Enquanto Dark e Palm Springs trabalham como loops temporais, a Mansão Bly parece investir em loops emocionais, que acabam se mostrando tão cruéis quanto. E são nesses devaneios, ou dreamhoppings, que o roteiro busca humanizar seus monstros reais.
Peter Quint é um cafajeste de mão cheia, e esse arquétipo ajuda o ator Oliver Jackson-Cohen a exibir essas facetas tóxicas, algo que ele já havia experimentado na pele do Homem Invisível, no papel título. Sua parceira, a pobre coitada Rebecca Jessel, funciona como um espelho de emoções e reações, mas Tahirah Sharif dá conta do recado. E as crianças dão um show à parte, na mesma moeda deslumbrantes e irritantes.
Miles (Benjamin Evan Ainsworth) é frio e assume olhares pecaminosos, ao passo que Flora (Amelie Bea Smith) é uma doce armadilha. Os olhos dos irmãos, aliás, merecem destaque. Mike Flanagan planta pistas e explicações no âmago de suas cenas e, assim como em Residência Hill, a Mansão Bly merece uma reassistida, seja para reparar nos fantasmas escondidos, ou para perceber quantas vezes Hannah Grose recusa uma refeição.
A marca de A Maldição honra os grandes contos de horror do passado, mas não se limita ao legado ou fórmulas antigas. A Mansão Bly começa como uma história de fantasmas, contada numa noite fria dos anos 2000 pela personagem de Carla Gugino.
Um conto à luz da lareira, mas que não foge de todas as imperfeições. A mera inserção da voz de Gugino, poeticamente transpondo em palavras as ações em tela, é doce mas um tanto deslocada, com sua figura humana aparecendo apenas na abertura e no fecho da temporada. É claro que o formato maratona não desprende o público da contadora de causos, mas uma melhor costura de seu rosto futuro aos acontecimentos de 1987 viriam a calhar.
A consumação do horror vem alinhada ao oitavo episódio, Roupas e joias. Protagonizado pela musa de Flanagan, Kate Siegel, o episódio se ajoelha à estética preto e branca do século de origem da Mansão Bly, se esbaldando em vestidos chiques, traições à luz de velas e um bom e velho conto de assombração. Sempre retornando à poesia e simplicidade, tanto da narração da personagem de Carla Gugino, quanto da abordagem de Mike Flanagan quando se trata de terror e morte.
Não existem soluções mirabolantes em A Maldição da Mansão Bly, e até mesmo os diálogos expositivos soam mágicos e cabíveis aos moldes dessa narrativa. Não chegue aqui esperando sustos ou momento de arrepiar os cabelos da nuca, dessa vez mais madura e muito mais concisa, A Maldição se esforça em outros campos. Seremos assustados, é claro, mas dessa vez por reflexos pessoais, afinal de contas, o medo do esquecimento ainda é o catalisador de emoções mais poderoso do ser humano. Por enquanto, nos lembraremos disso.