Caroline Campos e Vitor Tenca
Um casal inerte e enlutado é agraciado, milagrosamente, com a bênção de uma filha. A criança enche a casa de alegria e traz a vida de volta para aquele relacionamento decrépito. E eles viveram felizes para sempre. Não, Lamb não é assim – mas quase. Saindo das geladas montanhas islandesas, um dos filmes mais comentados da última edição do Festival de Cannes aterrissa na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo para destilar toda a sua fantástica estranheza familiar.
Dirigida por Valdimar Jóhannsson, a coprodução entre Islândia, Suécia e Polônia dá pequenas pinceladas pela rotina de um casal de pastores que vive completamente isolado com seu rebanho de ovelhas em uma região montanhosa. Sem muita comunicação em cena, María (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) sentem o peso de um berçário vazio dentro de casa enquanto manejam os partos de suas criações. Até que tudo muda quando ela chega.
Os primeiros relances da pequena Ada são sutis, reforçando uma exorbitante carga folclórica por trás da produção. Se esperávamos assistir a um monstro híbrido grotesco e violento, o cordeirinho-bebê, desenvolvido pelo supervisor de efeitos visuais Fredrik Nord, que surge na tela com uma coroa de flores amarelas surpreende pela naturalidade com que é possível se acostumar a sua presença. Seus novos pais a aceitam imediatamente, e passamos a presenciar o começo de uma história feliz.
Além disso, Lamb é um filme que suprime questionamentos. Não precisamos saber de onde Ada veio, como seu nascimento foi possível ou se há alguma explicação científica que justifique o que aconteceu naquela fazenda. Conforme a história vai se desenrolando, o clima sombrio e soturno vai sendo substituído por uma aura aconchegante, como se a paz finalmente tivesse resolvido dar as caras naquelas terras islandesas tão remotas. Dessa forma, os poucos conflitos apresentados por Jóhannsson se tornam grandes abalos sísmicos na narrativa bucólica que o diretor constrói.
Ainda assim, a inserção de um forasteiro na fábula rural de Lamb é inevitável para completar o ritmo da história. Quando Pétur (Björn Hlynur Haraldsson) aparece de supetão, a já inexistente tensão do começo do filme volta a estralar nas entrelinhas. É como se o roteiro de Valdimar Jóhannsson e Sjón traçasse uma equação matemática que se autoanula, já que o personagem de Haraldsson surge como uma ameaça calculada, carregando um ceticismo violento até então ausente na trama. No entanto, o inesperado toma forma e o tio de Ada cai nas graças da ovelhinha, desmanchando a maior angústia causada na primeira metade da obra.
Sugerindo pequenos finais felizes ao longo dos três capítulos que dividem Lamb, Valdimar Jóhannsson prepara seu último ato na direção contrária da lógica metafórica e alegre que ele mesmo estabelece. Se escorando quase que inteiramente na capacidade dramática da protagonista Noomi Rapace, o filme se utiliza da sua intensa atmosfera de contos populares para distrair o espectador da percepção de um encerramento tão impressionante quanto o que lhe é apresentado.
Pensado na medida certa, o impacto dos últimos minutos de Dýrið, no idioma de origem, é tão marcante que rendeu à obra um prêmio por originalidade na seção Un Certain Regard, em Cannes, e a honraria de representar a Islândia na corrida por uma vaga no Oscar 2022. Depois de estrear nos cinemas brasileiros sob o selo da Mostra de SP, a nova produção da A24 só volta ao Brasil em fevereiro do ano que vem, com distribuição garantida pela MUBI.
Se comunicando, na maioria de seus 106 minutos, através do silêncio e misturando subgêneros do Horror até alcançar algo totalmente novo, os balidos de Lamb são difíceis de serem ignorados. A fábula doce e aterrorizante ultrapassa, com muito divertimento próprio, os limites definidos pela natureza, e encontra em seus únicos quatro personagens o equilíbrio perfeito entre o amor e a insanidade. Afinal, quem, em sã consciência, questionaria um presente divino? E quem seria louco o bastante para aceitá-lo?