Leonardo Teixeira
São muitos os fatores que conferem a um grande artista o status de ícone. Madonna traduziu vanguardas para a linguagem da MTV e as usou para provocar e desconcertar; Prince tirou de sua cabeça genial um terço do que hoje entendemos como música pop; Stevie Wonder oferecia orgulho e excelência negra pra todo mundo que estivesse pronto para ouvir.
A discussão da importância de Janet Jackson sob a sombra do irmão é eterna, ainda mais considerando o ostracismo em que a cantora é mantida desde o escandaloso Superbowl de 2004. Mas a presença da caçula dos Jackson no panteão de grandes ícones da música se justifica quando pensamos que ela podia oferecer para meninas negras o que Michael nunca pôde (não na mesma intensidade): representação.
Janet não foi a primeira artista negra a sustentar questões sociais em seus trabalhos. Billie Holiday já descrevera o horror que era ser uma pessoa de cor na sociedade americana na década de 50, ao passo que 1984 foi o ano em que Tina Turner dominou as paradas musicais com sua narrativa pessoal depois dos abusos sofridos pelo ex-marido. Antes do talento da filha de Joseph Jackson ser descoberto, Aretha Franklin demandou respeito e Nina Simone dedicou sua arte ao ativismo. No Brasil, Elza Soares já era motivo de orgulho há décadas.
Dentre tantas outras vozes influentes, a artista por trás de “Rhythm Nation” tinha como diferencial dois fatores: seu alcance e seu pioneirismo político. Depois de dois álbuns ignorados pelo público e um casamento precoce e fracassado, ela demitiu o pai-empresário e recrutou Jimmy Jam e Terry Lewis (produtores pupilos de Prince) para criar a fórmula do sucesso.
Nos dez anos seguintes, Janet vendeu cerca de 70 milhões de discos mundialmente. A febre veio carregada de letras que discursavam temas como assédio a mulheres em locais públicos, maternidade na adolescência em situação de pobreza, entre outros temas mais específicos do que simplesmente opressão ou empoderamento. Em escala tão grande, nada como isso ainda havia sido feito.
Em “New Agenda”, som feito em parceria com Chuck D para o álbum janet., ela esmiúça aspectos da vivência de seu gênero e sua raça, num discurso que remonta à interseccionalidade do feminismo das mulheres integrantes do Panteras Negras, silenciadas pelos homens que lideravam o movimento. Tudo isso feito por uma artista cujo pôster provavelmente ornamentava o quarto de milhares de meninas pelo mundo.
But with every no
I grow in strength
That is why African-American woman
I stand tall with pride
O estouro veio em 1997. A popularidade de Janet já atingira níveis absurdos. Quebrando o próprio recorde de cantora mais bem paga do mundo, ela assinou um contrato de 80 milhões de dólares com a gravadora e garantiu total liberdade criativa em sua próxima empreitada.
Gravado em um período de colapso mental de sua intérprete, The Velvet Rope (Virgin Records, 1997) é o resultado de um processo em que Jackson teve que aprender a lidar com fantasmas que lhe assombraram desde a infância, como anorexia, dismorfia corporal (insatisfação extrema e constante com o corpo) e depressão. As relações problemáticas com os homens importantes de sua vida — o desastroso casamento com o cantor James DeBarge doze anos antes fora uma forma de fuga da voz abusiva do pai — também compõem o leque lírico do registro.
Todas as mensagens de força (sempre apresentadas numa roupagem pop e sedutora) lançadas nos anos anteriores se compilaram numa bola de neve que explodiu em um surto de inventividade e vulnerabilidade. Inspirada pela mistureba trip-hop que a islandesa Björk, em parceria com o britânico Tricky, colocou nas rádios pelo mundo, Janet alistou ainda suas referências no hip-hop e no R&B.
A primeira fatia do bolo viu a luz em setembro de 1997, com o vídeo para “Got ‘Til It’s Gone”, carro-chefe do disco. Inspirado pela fotografia do malinês Malick Sidibé, o vídeo é um estudo cultural do período do apartheid na África do Sul, figurando Jackson como a líder de uma banda que agita uma celebração negra, que exala orgulho e senso de comunidade. Joni Mitchell é sampleada na faixa, que conta ainda com versos de Q-Tip, do lendário grupo de rap A Tribe Called Quest.
A faixa-título é sobre os percalços emocionais que enfrentamos enquanto amadurecemos. Desde da urgência para se encaixar a transtornos mentais, passando por situações de racismo e homofobia.
Put others down to fill us up
Oppressing me will oppress you
Outside leave judgment, outside leave hate
One love’s the answer you’ll find in you
Padrões de hierarquia entre homens e mulheres nunca permitem que Janet concretize romances românticos com o gênero oposto (é de arrepiar o relato de violência doméstica feito em “What About”), ao passo que a aceitação de sua bissexualidade lhe rende a descoberta de que o amor não precisa doer para ser real.
What about the times you hit my face?
What about the times you kept on when I said, “No more please”
Tamanha sinceridade — o que a própria cantora chama de “elegância deturpada” no prólogo do disco — ao assumir o protagonismo de sua narrativa através do hip-hop e outros ritmos negros é de aplaudir de pé, em um mundo em que até hoje mulheres tem de reivindicar seu lugar no rap para além dos refrães e das músicas românticas (“Onde tá escrito que mina só curte love song?”, pergunta a paulista Sara Donato em “Machocídio”).
Se com o tempo Michael Jackson passou a vomitar uma masculinidade estereotipada para manter a fidelidade de alguma parte de seu público, Janet ostenta o peito aberto e a língua livre de papas ao falar de seu amadurecimento como mulher.
A rebelião emocional da intérprete de “Nasty” foi tão escancarada e a frente de seu tempo que fica ainda hoje como influência para na carreira de outras artistas: Christina Aguilera se inspirou no tom épico dado aos momentos de autodescoberta para compor seu quarto e mais cultuado álbum, Stripped, ao passo que a limonada de Beyoncé nunca seria formada não fosse a iniciativa de Jackson de tomar a frente de assuntos que até hoje dificilmente são discutidos. É maior que simplesmente influência musical, no entanto, a relação do disco com o recém-lançado Take Me Apart, da californiana Kelela.
Conhecida por um R&B alienígena e imersivo, Kelela Mizanekristos debutou em 2013 com a aclamada mixtape Cut 4 Me, que incorporava a agressividade eletrônica do gênero grime com vocais típicos da música negra noventista. Depois de figurar na faixa de fechamento do discão de Solange Knowles, “A Seat At the Table”, a já queridinha na cena acrescentou ainda mais à fantasia onírica com o EP “Hallucinogen” (2015).
A antecipação para o que estava por vir era grande e o single de estreia do novo trabalho, “LMK”, é uma overdose de tudo o que o público esperava da artista. O devaneio musical das empreitadas anteriores aqui ganha polimento e vestimenta mais sofisticada, ao passo que a voz ativa e maciça na mensagem mostra que os últimos anos foram de aprendizado.
A produção vem cheia de camadas, com um pano de fundo que lembra o eletrônico melancólico que Arca e Björk manufaturaram em Vulnicura (2015). Foi o produtor venezuelano, aliás, junto a Jam City e Kwes, que formou a santíssima trindade que cooperou com Kelela no som do registro.
O resultado da colaboração é impecável: o caos imersivo de seus trabalhos anteriores foi atenuado aqui e a inventividade do álbum está na costura da identidade sonora da cantora em proposta mais comercial, criando uma fantasia extremamente viajada, ainda que acessível.
Falando de um estado de ferida emocional, a narrativa da tracklist discute o esforço necessário para nos permitirmos ser vulneráveis para alguém. Vulnerabilidade essa que pode surgir ao nos abrirmos sexualmente depois de uma decepção ou quando assumimos nossas cicatrizes como um crescimento.
Though I’m in love with it, I will amputate
I care enough not to keep you around (Better, Kelela)
A dor emocional também corrobora para um fortíssimo sentimento de independência. Depois de términos, brigas, idas e vindas, Kelela entende que o melhor que ela faz é cuidar de sua autoestima. Os percalços desse processo vêm floreados por uma ou outra situação que só a nossa atualidade de afetos casuais e apps de relacionamento comportaria.
Em entrevista recente à estação iHeartRadio, a cantora citou o poder de Janet Jackson sobre a produção de Take Me Apart, associando essa influência a uma espécie de força materna. De fato, o álbum parece evocar toda a carreira da veterana. Ainda assim, é evidente o carimbo de The Velvet Rope em sua personalidade sonora, visual e discursiva para o trabalho.
Janet sempre gostou de se explicar enquanto conduzia um disco, através de intros e interludes e de relatos que terminavam extremamente conclusivos, sem pontas soltas. Kelela preserva essa linearidade, ainda que incertezas e obstáculos atrasem esse final definitivo e cravado em pedra.
De certa forma, essa mulher negra emancipada que lida com as desilusões sem esquecer de se respeitar é certamente uma das milhares de meninas que tinham o pôster de Janet na parede de seus quartos.
Em “The Velvet Rope”, depositar toda a nossa confiança no outro por motivações românticas nem sempre é a resposta. Mas quando o assunto é amor próprio, o saldo sempre é positivo. Janet sustenta que a felicidade depende do amor que nutrimos por nós mesmos. Kelela seguiu o conselho: o desafio agora é ter tanta autonomia nessa realidade de distâncias confusas e desonestidade emocional.
O diálogo entre as duas artistas, uma delas sendo um ícone pop, é admirável. Isso porque elas estariam separadas pelo mar vermelho do termo “alternative R&B”, que deveria ser banido, já o mesmo assume que o R&B tradicional não consegue se aventurar para trazer coisas novas.
Empolga também o destaque que Kelela ganha com essa troca. Num cenário repleto de artistas jovens realizando trabalhos com referências noventistas — o sample de “Any Time, Any Place”, de Jackson, presente no good kid, m.A.A.d city (2012) de Kendrick Lamar, é exemplo fortíssimo —, a ênfase da californiana se dá pela maturidade. Se na faixa dos 20 anos temos mil inseguranças, depois dos 30 Kelela e Janet não mostram que esses obstáculos foram vencidos, mas nos ajudam a lidar com eles.
Now that you’re up, my love
Let me remind you
Those dreams you have
Before they all came true (Altadena, Kelela)
A intérprete de “Blue Light” tomou para a si a revolução pop de sua ídola para dar voz à própria emancipação pessoal. Com uma fonte tão rica e ampla, o resultado não poderia ser menos impressionante. Ambas as obras compartilham de uma sensibilidade ímpar, do tipo que é extremamente necessária de ser ouvida, principalmente pelas mulheres que podem ser tocadas por essas histórias. No fim das contas, a influência de Janet Jackson se estende para mais uma geração e só temos que agradecer a Kelela por esse feito. Com toda a certeza, o ostracismo não é o lugar de Janet Jackson.
Hoje, 20 de novembro, martela na cabeça a máxima de que “representatividade importa”. É bem verdade que ainda existe um caminho bastante tortuoso até que todos se sintam representados pela cultura. Enquanto isso, a arte nos rende esses grandes presentes que, se não mudam o mundo, pelo menos estabelecem um diálogo com pessoas que nunca têm a oportunidade de falar.
Um comentário em “De Janet Jackson a Kelela, o poder da representação negra”