Enrico Souto
Nem Olivia Rodrigo, nem Billie Eilish, nem Lil Nas X e nem Justin Bieber. A noite de 3 de abril de 2022 foi de Jon Batiste. Nesta nossa realidade bizarra em que o artista mais indicado de uma premiação é considerado azarão, o jazzista de Louisiana embaraçou todas as apostas ao se consagrar como o maior vencedor do Grammy 2022, saindo da cerimônia com 5 dos 11 gramofones que concorria, incluindo o cobiçado Álbum do Ano, categoria mais importante do evento. O trabalho contemplado foi WE ARE, seu aclamado oitavo álbum de estúdio. E, apesar de competir com grandes nomes, não há outra conclusão ao mergulhar no projeto: o prêmio só poderia ser dele.
Aquele dia também marcou não apenas a primeira vez que Jon Batiste ganhou um Grammy em toda a sua notável carreira, como também a primeira vez que um artista negro levou o prêmio de Álbum do Ano em absurdos 14 anos. No entanto, apesar de ter se tornado foco dos holofotes ao assinar as composições e arranjos de jazz de Soul, animação da Pixar vencedora do Oscar em 2021 – que também lhe proporcionou um gramofone neste ano –, sua contribuição à Música é bem mais longa. Jon é um dos principais expoentes da carente cena do jazz contemporâneo, motivado por sua família, que já tinha longa tradição no gênero, e por vozes como Duke Ellington e Nina Simone. Além disso, lidera a Stay Human, banda que desde 2015 é residente no programa americano The Late Show with Stephen Colbert.
A Música de Jon Batiste está longe de um simples throwback saudosista a um gênero que há muito tempo perdeu espaço nas rádios. É uma busca por modernizar o jazz e ressignificá-lo para nossas sensibilidades contemporâneas, levando a essência do improviso, da não-linearidade e da autoestima para um novo contexto, em que tais virtudes mostram-se cada vez mais necessárias. Essa descrição poderia muito bem definir WE ARE, que de certa forma, torna mais palatável a sonoridade do jazz para nossos ouvidos de 2022, através da mescla com elementos musicais do rap e R&B, em um esforço inverso ao que fazia Kendrick Lamar em 2015 com seu apoteótico To Pimp a Butterfly.
Mesmo com sua caracterização musical complexa, o álbum foi levado às categorias de R&B do Grammy. Porém, não é exagero algum dizer que WE ARE é jazz em seu mais puro estado. Não só as marcas registradas de seus antigos trabalhos se mantém – das harmonias do seu majestoso piano ao seu timbre de voz vigoroso e áspero – como também a imprevisibilidade sonora proporciona uma experiência única e inesperada a cada canção, ainda que todas sempre carreguem a mesma identidade artística inconfundível de Jon.
Então, ao passo que faixas como TELL THE TRUTH e CRY abraçam completamente a estética retrô e a raíz musical do blues, ou I NEED YOU e FREEDOM se apresentam como músicas pop apimentadas por arranjos de soul, em contraste com os 808’s e baterias sintéticas que infestam suas melodias, BOY HOOD e WHATCHUTALKINBOUT exploram a veia hip-hop de Jon. Na segunda, o cantor entrega suas rimas com muita agilidade em cima de um frenético instrumental de jazz, fortemente inspirado por Kendrick, ainda sendo surpreendida por uma trilha em 16-bit na sua segunda metade – o que, de alguma forma, continua coerente com a proposta do disco.
Desse modo, Jon Batiste constrói uma sonoridade moderna, ao mesmo tempo que universal e atemporal – e isso vai além da simples experimentação musical. Para ele, unir diferentes facetas da música negra é colocar em contato gerações distintas e, assim, reconectar-se com sua ancestralidade. Jon entende que, para uma cultura que é diariamente apagada, não se pode esquecer suas origens. “Sempre me esforcei para mostrar que os gêneros estão todos ligados, assim como as pessoas em todas as nossas linhagens estão ligadas”, foi o que ele afirmou, em entrevista após as nomeações do Grammy. E esse posicionamento aponta para outro aspecto importante na obra do cantor: seu vínculo com a militância e o ativismo.
Formado politicamente no berço graças a seu avô, que era presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Nova Orleans, esse aspecto da vida de Jon Batiste sempre esteve atrelado à Música. Principalmente em 2020, quando fervilhavam os protestos do movimento Black Lives Matter após o assassinato de George Floyd, onde o cantor foi uma peça ativa e engajada. E não somente, trouxe a música para dentro das manifestações, utilizando-a como instrumento político de mobilização e conscientização. WE ARE, que mais tarde se tornaria faixa-título do projeto, foi composta nesse cenário e, mais tarde, nomeou uma série de protestos musicais que ele organizou em junho daquele ano.
Posto isso, começam a se desvendar alguns dos principais temas do nomeado disco do ano. Jon Batiste entende como ninguém o poder transformativo da Música em elevar as angústias da vida e ressignificá-las em regozijo e liberdade. A faixa-título, especialmente, encapsula uma essência coletiva pujante, incorporando elementos de gospel em típicas melodias de jazz, onde o coro é quem toma conta. A participação da família de Jon e da banda de marcha de sua antiga escola reforça ainda mais esse ímpeto, juntamente a uma letra que enaltece o poder popular e a capacidade das massas de mudar o mundo. No pico do refrão, o pianista refere-se diretamente aos seus ouvintes e atesta: “Nós somos os escolhidos”. Apenas nós, juntos, podemos transformar a sociedade em que vivemos.
WE ARE, como produto de seu próprio tempo, é uma obra naturalmente relevante. A narrativa de todas as faixas, em algum aspecto, aborda o ativismo e o nosso papel no mundo enquanto agentes da mudança. Mas o que torna sua mensagem de fato ímpar é como Jon Batiste nunca se compromete com respostas. Ele se insere no centro desse cenário, se une a nós e coloca-se como porta-voz de sua geração, sem nunca apagar as nuances e sobretons que atravessam a subjetividade individual de cada um – inclusive dele mesmo.
Se CRY – faixa que ganhou dois Grammys nas categorias de American Roots – manifesta um eu-lírico desolado, que não consegue ver soluções para os problemas do mundo, assumindo que os culpados por todas essas mazelas jamais serão responsabilizados e tudo o que nos resta é o choro; I NEED YOU, em oposição direta, encontra no amor e na presença do outro a motivação para continuar de pé dia após dia. Jon Batiste coloca as duas condições em contraste, mas sem nunca cair em um maniqueísmo banal, entendendo o valor da esperança, sem ignorar a função da tristeza como um sentimento válido e parte do processo de superação. Afinal, apenas se alcança a luz após passar pela escuridão.
O que não quer dizer que WE ARE não trate de temas pessoais de Jon Batiste. Na verdade, grande parte do disco traça o processo de amadurecimento do artista e como sua autopercepção o ajudou a encontrar seu lugar dentro de sua comunidade. Não por acaso, as faixas BOY HOOD e ADULTHOOD se sucedem na tracklist. Com auxílio da inigualável voz de PJ Morton, acompanhamos desde as pequenas alegrias da infância simples e inocente de Nova Orleans, até o frio na barriga da transição para a vida adulta, quando ele se mudou para Nova Iorque sozinho, com 17 anos, para estudar Música em Juilliard.
Por todo esse trecho do álbum, permeiam as mesmas questões: “Quem sou eu?”, “em que espaço eu pertenço?” Por fim, Jon Batiste encontra o respaldo e suporte que precisava observando o passado: seja nos conselhos do seu pai, que ecoam com muito carinho pelas nostálgicas memórias de TELL THE TRUTH, seja no tributo aos diversos criadores negros que moldaram sua personalidade e hoje são grandes inspirações para sua obra em SHOW ME THE WAY. Jon compreende que, para que pudesse trilhar livremente seu caminho, muitos pavimentaram a estrada antes. WE ARE guarda um imenso respeito por todas essas figuras, tanto familiares quanto culturais, e confessa recorrer a elas ao encarar o céu: “quando olho para as estrelas, sei exatamente quem nós somos”.
Independente do peso das pautas que rodeiam a produção do disco, ou dos temas delicados que ele não deixa de discorrer, WE ARE é um projeto otimista e colorido, em todos os sentidos. Jon Batiste se diverte como nunca, brincando com vocais e harmonias como se estivesse em uma montanha-russa viva. No clipe de FREEDOM – que desbancou o favorito MONTERO no prêmio de Melhor Videoclipe –, Batiste leva o conceito de liberdade para o domínio do corpo e traz a dança enquanto símbolo máximo da autonomia como resistência. Isso, é claro, ao mesmo tempo que veste figurinos cintilantes e remexe junto a todos os moradores de um subúrbio.
Entretanto, isto é importante dizer, o videoclipe dirigido por Alan Ferguson faz questão de mostrar que já existia cor naquele universo. O papel de Jon naquele momento é catalisar esse sentimento puro de alegria através da sua Música. Ao contrário de uma posição messiânica, sua obra se empodera pelo espírito coletivo inerente à humanidade, levando esperança para um ano doloroso e lúgubre, onde praticamente não havia espaço para a êxtase. O que Jon Batiste constata em SING – a síntese emocional perfeita para o fechamento do projeto – é que, em um mundo onde somos oprimidos, não só física mas também mentalmente, explorados à exaustão até que não tenhamos tempo nem para cuidar de nós mesmos, nosso coro em uníssono é a resposta.
E é por isso que este é o álbum mais importante de 2021, com ou sem Grammy. A vitória de Jon Batiste, sem sombra de dúvidas, visa amplificar o acesso de grupos minoritários às categorias principais. É uma ação afirmativa deliberada da Academia, que, todavia, continua sendo composta pelos mesmos homens brancos, que apagaram a influência cultural dos mesmos criadores negros no passado. Entra ano, sai ano, os artistas mais disruptivos da Música continuam fazendo história, enquanto ignorados por uma premiação que permanece irrelevante como sempre. WE ARE é um trabalho formidável e pivotal para os nossos tempos, e acreditar que somente uma réplica em ouro de um gramofone poderia legitimá-lo é um crime imperdoável.