Caroline Campos
O luto é uma figura de muitas faces. Talvez exista um limite para o número de pessoas amadas que podemos perder sem passarmos a excomungar toda e qualquer força superior que rege a ordem natural da vida. Quando conhecemos Mantoa, protagonista de Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição, passamos a duvidar, junto com ela, da benevolência do Deus-Todo-Poderoso. Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a obra do diretor lesotiano Lemohang Jeremiah Mosese é um retrato duro e belo do clamor pela morte em harmonia com o direito à vida.
Mantoa, uma viúva de 80 anos que mora nas montanhas do Lesoto, espera a chegada de seu filho das minas da África do Sul. Para os moradores da região de Nazaretha, chegar das minas com vida era celebrado de forma equivalente a voltar de uma guerra inteiro, então, ao ver homens se aproximando a distância, as feições da mulher vão murchando quando percebe que, infelizmente, seu filho não está entre eles. Assim, se vai o último membro de sua família – Mantoa já não possuía marido, filhos, nem netos. Dessa vez, a viúva não chora. Ela se recusa a derramar uma lágrima sequer e passa a se preparar para o doce beijo da morte que, espera-se, virá.
No entanto, a anciã, usando sempre o preto do luto, é esquecida pelo Ceifeiro, e, com uma postura determinada, passa a tomar as providências necessárias para seu sepultamento ao lado dos próprios ancestrais e descendentes. Seus planos, entretanto, são perturbados assim que a notícia de que o governo pretende inundar sua terra para transformá-la em uma barragem começa a circular entre os moradores. Como se exalasse uma última e difícil respiração, Mantoa decide defender sua aldeia contra a invasão que vai destruir toda a espiritualidade construída e mantida por gerações, quando o local, que surgiu pelos prantos da morte, se chamava ainda Planícies da Lamentação.
A beleza do longa está nas constantes comparações e paradoxos entre a vida e a morte esculpidos pelo narrador interpretado por Jerry Mofokeng Wa. Acrescentando um pouco mais de poesia ao roteiro com seus grandes monólogos, a impressão que temos é que Jerry é Deus em seus moldes mais sádicos e cruéis, zombando da velha viúva enquanto ela implora pela morte e continua acordando dia após dia. “Lamente!”, ele ordena enquanto toca o lesiba, instrumento nacional do Lesoto. Se não fosse por Jerry, não sentiríamos o peso e a injustiça das cenas em que Mantoa contempla sua casa, seja ela inteira ou em cinzas, rodeada por ovelhas.
O filme é uma coprodução do Lesoto, da África do Sul e da Itália, mas é a comunidade que compartilha o encanto junto com o cenário montanhoso – inclusive, é essa a razão do seu formato de filmagem ser 3:4. Mosese queria focar na beleza do espírito humano e do povo que apresenta, não apenas nas maravilhosas paisagens que Mantoa percorre em sua peregrinação. A atuação visceral da protagonista se dá pela genialidade que transborda de Mary Twala Mhlongo. A veterana do cinema sul-africano faleceu em julho deste ano, mas não sem antes deixar um legado imenso de atuações precisas, mesmo depois de alcançar uma idade mais avançada.
Maltratada por Deus e pelo tempo, o único conforto de Mantoa está em sua terra, onde ela resiste e incita resistência. E não haveria de existir final mais poético para sua trajetória. Enquanto todos vêem a morte, ela encarna a própria ressurreição que intitula o filme, se despindo de seu luto e sendo assistida pela nova geração de luta no mundo. “Não era para os mortos. Mas para os vivos”, sussurra o perverso músico enquanto ainda absorvemos os agitados momentos finais da obra. Mosese, mesmo lidando com a violência, não perde a mão em momento algum, mantendo sua narrativa sob o controle detalhado e cuidadoso com que trata cada faceta de seus personagens, sempre os respeitando e os desenvolvendo de acordo com que o texto exige.
Vencedor do Prêmio Especial do Júri da seção World Cinema Dramatic do Festival de Sundance, Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição ressalta que somos mais do que nossos traumas e perdas. Mantoa é o símbolo da ancestralidade e a figura da resiliência. Enquanto o homem destrói a sua natureza em nome da modernidade e do desenvolvimento, os moradores de Nazaretha lutam contra esse tal progresso dos ricos e defendem a própria identidade e as raízes da terra que os alimentou por todas as gerações. Brincando com o sobrenatural lúdico que ronda a morte, a narrativa se fecha em um suspiro ávido do esperado encontro. A viúva ressuscita aos olhos da criança, sendo sua própria benevolência divina. E, se há uma força superior, que ela receba e aplauda de pé Mary Twala Mhlongo.