Caio Machado
A produção eslovena Inventário, presente na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, possui uma premissa simples, mas instigante. E se, em um dia normal, alguém tentasse atirar em você, dentro da sua casa? É isso que acontece com Boris (Radoš Bolčina) em uma noite, enquanto lê um livro em seu escritório. Ele não se machuca, mas leva um grande susto. A partir daí, o homem de meia idade parte em uma jornada de obsessão, examinando todas as suas relações sociais para tentar descobrir quem foi o (ou a) responsável pelos tiros.
Em seu primeiro longa de ficção, o cineasta Darko Sinko utiliza esse incidente inicial para colocar o protagonista em uma crise existencial agoniante. A busca pela pessoa que deu os tiros corrói Boris de tal forma que seu mundo perde a cor e a luminosidade, como refletido de maneira eficiente na fotografia de Marko Brdar. Enquanto a polícia investiga, o mistério se sustenta nas falas dos outros personagens, como na cena em que a mãe do personagem diz que sua esposa nunca gostou dele, e no que aparece fora de foco dentro do plano, como no momento em que o personagem principal sai da garagem com o carro e vê uma silhueta, bem no fundo do estacionamento.
Com isso, as cenas do longa estão carregadas de uma desconfiança constante, contribuindo para a angústia do protagonista. Enquanto observa a aparência rotineira das vidas de seus familiares e amigos, ele se questiona: por que todos estão agindo normalmente, como sempre se comportaram, depois dele sofrer um atentado inexplicável? Faz parte da natureza humana seguir com a vida, mesmo depois de se deparar com um grande mistério?
Esse último questionamento é o que move Inventura (nome original, em esloveno) e faz seu personagem em crise realizar um exame de consciência perante todos com quem se relaciona, proporcionando momentos dramáticos, intensos e até surpreendentes, como exemplificado em uma cena em que uma conversa com um amigo de longa data revela uma mágoa há muito guardada. Assim, o trecho mostra como todo ser humano é capaz de ferir profundamente os sentimentos de outro, mesmo alguém tão comum quanto Boris.
Paralelo a isso, há uma trama de obsessão que se inicia quando o personagem principal descobre que existe, na cidade, um homem com o mesmo nome que ele. Nisso, começa a segui-lo, observando sua rotina de longe. Se parece não encontrar as respostas em sua vida, Boris vê na do outro a possibilidade de esclarecimento. No entanto, após uma discussão com o outro Boris em um restaurante, ele percebe que ali não encontrará o que procura.
Então, onde está a resposta? Quem foi o responsável pelos dois tiros, afinal? O longa faz um ótimo trabalho de criação de suspense e conduz o espectador a uma resposta, perto do final, que faz o protagonista achar que sua vida pode voltar ao normal. A aparência do filme até muda, ficando mais vivo e iluminado. Porém, na última cena, tudo volta à estaca zero. O que fazer? Alimentar a dúvida corrosiva outra vez ou tentar viver, como os outros fazem todos os dias? Depois de acompanhar o personagem em tantas conversas desagradáveis e descobertas infelizes, a falta de respostas se torna mais palatável. É mais fácil aceitar que a dúvida é a fundação da existência humana. Senão, a vida torna-se insuportável.