Vitor Evangelista
A quarta temporada de Insecure representa o extremo oposto do título da série. Cada vez mais confiante da história que quer contar, e como contá-la, a faz-tudo Issa Rae transforma os dez episódios do ano em ouro. As vivências de sua personagem principal, também chamada Issa, resvalam em temas comuns do mundo adulto da TV, e não, não estou falando (apenas) das cenas à quatro paredes. Insecure recebe esse rótulo de ‘série adulta’ muito mais por saber trabalhar algumas constantes deste período da vida: é muito difícil estar certo, é complicado ser feliz e, o mais relevante, a perfeição não existe.
A primeira temporada da série, lançada em 2016, era um projeto acanhado de Issa Rae. Além de criar e estrelar Insecure, ela assina como produtora-executiva e escreve alguns capítulos. O ponta-pé em mostrar a rotina de uma mulher negra perto dos 30 anos e estagnada na vida soava como um artigo de luxo para a grade da HBO. Com a programação recheada de dragões e políticas malucas, esse pequeno projeto de Rae e Larry Wilmore cresceu no boca a boca, mas parecia nunca decolar.
Na trama, Issa Dee (Issa Rae) além de trabalhar numa iniciativa social para levar oportunidades para crianças negras e latinas, divide o apartamento com seu namorado Lawrence (Jay Ellis) que, desempregado há algum tempo, cria uma nebulosidade na vida do casal. Issa é a melhor amiga de Molly (Yvonne Orji), uma advogada de sucesso mas destinada a ser solteira, nunca conseguindo manter relacionamentos por tempo suficiente. Além do trio, outras figuras permeiam o círculo social de Insecure: a hilária e subestimada Kelli (Natasha Rothwell) e a enérgica Tiffany (Amanda Seales) são figurinhas carimbadas na série.
Com o passar dos anos o enredo cresce e caras novas integram o elenco, mas o centro de tudo ainda ecoa nos problemas da tríade Issa-Lawrence-Molly. E nessa entoada, Insecure mantém um padrão de extremos: se a temporada começa esperançosa, seu fim será antônimo, e vice-versa. O quarto ano se inicia promissor. Issa finalmente se sente à vontade no quesito emprego, organizando uma ‘block party’, espécie de festival de um dia para celebrar a cultura negra local. O cenário de Los Angeles expurga o senso artístico e otimista que a personagem procura a cada esquina e, lado a lado junto do novo emprego, Issa também mudou de casa. A troca de cenário, da primeira residência abafada e pequena, para a clareza do novo apartamento acentuam as expectativas da personagem.
Enquanto se adequa ao cargo novo numa firma mais inclusiva, Molly lida com as inseguranças do relacionamento com Andrew (Alexander Hodge). Após passar a terceira temporada martelando a ideia de que não havia futuro com o homem por ele ser asiático e ela procurar um homem negro para casar, a advogada vive sua melhor vida até então. Cheia de remorsos, é claro, pois Molly encontra muita dificuldade para se abrir sobre o que a abala. A ausência de sua psicóloga no novo ano transtorna sua jornada, descascando cada vez mais seus medos e traumas. A interpretação de Yvonne Orji aposta, pela primeira vez, numa amplitude emocional inédita à personagem e, não à toa, ela recebeu a primeira indicação da carreira ao Emmy 2020.
O título dos episódios do quarto ano carregam o termo ‘Lowkey’, mantendo a tradição do seriado em categorizar as temporadas. Enquanto a primeira repete ‘as Fuck’, a segunda mantém um ‘Hella’ e a terceira ‘-Like’. Além de esteticamente agradáveis, essas escolhas casam com os dramas individuais de cada ciclo. Issa e cia começam a série em limites emocionais e, aos poucos, respiram de volta à realidade. O ano 2 é mais extremo nas esperanças e o terceiro soa adequado e comportado, mais manso até. Depois de tirar 2019 de folga, Insecure retorna usando o Lowkey como artifício narrativo, de pernas bambas, o seriado encara tudo meio que ‘mais ou menos’. Essa atitude para com a vida de seus personagens é adequada a partir do momento que Insecure assume ser uma série adulta, desde o tratamentos dos temas até a maneira de apresentá-los.
Muito mais que uma série sobre ‘nada’, Insecure é sobre a vida e os percalços de tentar se sair bem. Não vemos adolescentes ou jovens adultos errando a mão e comendo bola. Para cada meia hora de episódio, damos de cara com pessoas crescidas e que precisam arcar com os B.O.s que assumem. São criações fictícias que soam reais pra porra, como os títulos da primeira temporada sugerem. This Is Us (2016), outra produção sobre amadurecimento, já resolveu a equação da longevidade na TV sem cair na mesmice: precisamos de atrito.
Também em seu quarto ano, a série da NBC investiu pesado nos conflitos dos irmãos Pearson. A dramaticidade veio tão carregada que Sterling K. Brown papou outra indicação ao Emmy de Ator em Drama por um dos episódios de tensão. E esse mesmo efeito parece ter surtido em Insecure. A temporada abre com uma cena quatro meses no futuro, com Issa falando no telefone que ‘não se mete mais com Molly’, revelando um rompimento entre as duas. Reconstruindo a linha do tempo até a block party de Issa, os episódios cozinham a relação entre as amigas, adicionando pressão e mágoas internalizadas.
Mas nem só de rancor vive Insecure. A submissão de Issa Rae à categoria de Atriz em Comédia revela nuances felizes de sua personagens. Lowkey Happy foca numa conversa de Issa e Lawrence sobre sua relação e, por mais que ora ou outra caia no humor físico, com a mulher caindo de cara no chão no bar, a série é construída numa comédia de tonalidades. Personagens complexas demandam performances ricas em detalhe e em clímax, e Issa Rae entrega de bandeja.
Por mais que sua principal concorrente (e favorita) ao Emmy venha de uma série de humor mais ‘comum’, Catherine O’Hara de Schitt’s Creek, a Academia de TV pode repetir o feito de 2019, quando celebrou Phoebe Waller-Bridge e sua Fleabag, outra comédia de sutilezas e absurdos. Fora que premiar Rae e sua Insecure seria uma bem-vinda maneira de reconhecer artistas negros, nesse 2020 que respira a pauta racial, seja na política, seja nas artes.
O episódio escolhido para representar Yvonne Orji no Emmy é a season finale, Lowkey Lost. Nele, Molly se vê numa sinuca de bico com o namorado Andrew e no meio da confusão, sua amiga Tiffany desaparece. Insecure se diverte quando preenche seus capítulos com uma série de tramas minúsculas, que inflam à medida que a temporada avança. Tiffany, que acabou de ter um bebê, não aguenta e surta, indo parar sabe se lá onde. Essas leves penteadas em assuntos sérios enriquecem em demasia o miolo do seriado, que estuda com leveza e bom humor os traumas que nos constroem.
Nesse mesmo capítulo, Insecure insinua um momento de violência policial contra nossos protagonistas. É uma cena curta mas inflamada de emoção e relevância, nós assistimos o medo em seus olhos antes mesmo de algo acontecer, algo esse que no fim não acontece. Mas a sugestão é tão gráfica quanto o possível desfecho. Em 2020, com os protestos do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), a Academia do Emmy reconhecer Insecure em várias categorias é de grande importância, tanto por seus méritos como série de TV quanto por seus temas e abordagens, à frente e por trás das câmeras.
A valorização de profissionais negros não coroou apenas a comédia da HBO. Na parte de minisséries, Watchmen reina absoluta em 26 nomeações. Zendaya, Octavia Spencer, Laverne Cox, Don Cheadle e a própria Issa Rae foram alguns dos artistas negros indicados esse ano. É uma pena que, nas categorias de Drama, Pose tenha sido esnobada. A produção do FX só indicou Billy Porter, atual campeão de Ator em Drama, e negligenciou nomes como Mj Rodriguez e Angelica Ross. Na categoria principal, temporadas medíocres de The Handmaid’s Tale e Killing Eve roubaram a vaga da série de Ryan Murphy.
Insecure atualmente funciona como um laboratório de talentos. Sem necessidade de se provar ou conquistar audiência, a série, que é segura de sua marca e de seus personagens, não economiza nos malabarismos. Essa liberdade criativa abre espaço para os atores assumirem outro papéis. Regina King, estrela de Watchmen, dirigiu um episódio do terceiro ano e Kerry Washington, indicada por Little Fires Everywhere e American Son, foi diretora de Lowkey Trying, capítulo carregado pelas desavenças de Issa e Molly. A 4ª temporada ainda deu a chance do intérprete de Lawrence, Jay Ellis, dirigir o sétimo episódio e a atriz de Molli, Natasha Rothwell, escrever o oitavo.
A trilha sonora embala raps com R&B e pops certeiros. A ideia de usufruir da arte negra não fica restrita à trama, pois as músicas da produção usam e muito das vivências desses artistas, dando visibilidade à seus sons. Afinal, não existe prestígio maior do que ter sua faixa tocada na HBO. Essa conversa de sons e temas muito rememora o brilhante Ctrl, álbum de 2017 da cantora SZA (que faz uma ponta nessa temporada). Mesmo lançada 1 ano antes do disco, Insecure parece transformar as canções de SZA em série. Já tendo usado Supermodel no encerramento de um dos anos, a criação de Issa Rae desmistifica o amor e a solidão, de maneira rimada à escolhida pela cantora. Faixas como Garden (Say It Like Dat) e Normal Girl parecem ter sido escritas sob medida para a produção da HBO.
Aconchegante como uma boa amizade de anos, Insecure é uma das produções mais autênticas e de bem com a vida que passam na TV. Issa Rae pode e deve continuar trilhando seu sucesso e inovando na hora de contar histórias maduras e, por mais dolorosas que sejam, compatíveis às nossas aqui de fora. Mesmo que subestimada e esquecida, a série de 34 episódios sorri confiante ao horizonte e, quatro anos à dentro, não tem mais nada de insegura.
E como Issa já disse, ‘fuck feeling feelings’.