Davi Marcelgo
O primeiro álbum solo de Cazuza, Exagerado, exala a essência ultrarromântica e boêmia, cravando o status de poeta ao cantor. Em Ideologia, o eu-lírico estende a linguagem poética para criticar a sociedade – e a si mesmo. No disco, que completou 35 anos no dia 21 de Abril de 2023, o artista remove sua face e a costura nas linhas territoriais tupiniquins, marcando definitivamente a história da música brasileira.
Durante a segunda metade do século XX, houveram os movimentos da contracultura, mergulhados no desejo de desconstruir dogmas sociais a partir de ideais de liberdade – principalmente a sexual, que foi impulsionada pela invenção do anticoncepcional – e guiados por estrelas do rock. Em contrapartida, os ídolos se foram, o mundo era afetado por polarizações e a América Latina tomada por regimes ditatoriais. Nos anos 80, descobre-se o HIV e a Aids, freando a corrida do sexo libertino. De repente, tudo que se acreditava desmorona e as incertezas surgem: o que fazer? Cazuza respondeu.
O álbum se inicia com o eu-lírico incerto à realidade: na música Ideologia, ele questiona suas crenças, ídolos e estilo de vida em um Brasil quebrado pós-ditadura militar e carregado pelo ódio à comunidade de pessoas soropositivas, tecendo uma persona desconfigurada a procura de algo para acreditar. Porém, o cantor carioca assume o inerente Cazuza, fisgando seu ideal por todo resto do disco.
Mesmo após um período de vulnerabilidade física em que ficou entre a vida e a morte, o poeta não renega sua ideologia, apenas a afirma numa contínua exaltação da vida. Em certos momentos, comemora a existência com uma guitarra frenética e um incrível jogo de rimas metafóricas e contraditórias. Blues da Piedade escarra desprezo por “essa gente careta e covarde”, com a mescla do discurso hedonista aos arranjos instrumentais, enquanto alude os opostos do blues com o uso de corais – que lembram músicas cristãs – à maneira que faz uma prece a Deus para perdoar aqueles que não souberam viver de forma exagerada e efêmera.
Enquanto o mundo o condenava e desejava sua morte, Cazuza nadava contra a corrente. Ele entregou uma obra prima da música nacional. Ideologia é um álbum coeso e coerente, que brinca com opostos, seja na mistura de gêneros, ou na oposição de letras e ritmo – como o cinismo de Faz parte do meu show. Porque a vida de Caju – era chamado assim pelos seus amigos – foi feita de antagonismos: um cantor que não sabia cantar, compositor que chamavam de poeta, um burguês que queria frequentar endereços mais quentes, mas que depois sentiu-se como só mais um que mergulhou no egoísmo e não contribuiu em nenhuma grande mudança e que, ao fitar a morte, comemora.
Mas não ficou somente nisso. Para se tornar uma lenda na história da Música nacional, não basta cantar sobre si, é preciso berrar as dores da nação. Enquanto a faixa-título concilia pessoalidade com o geral, outras canções aprofundam a época, revelando a realidade proletária das classes pobres do país, o desamparo e a rotina exaustiva – que continua a mesma –, além do movimento Diretas Já e o processo de redemocratização brasileira. Sem abandonar o lirismo para fazer suas críticas ao governo brasileiro.
A faísca do estrondo que aconteceria no mesmo ano de 1988 com O tempo não pára, foi acendida nesse álbum e continua inflamando até hoje, seja em regravações das músicas de denúncia ou como os versos estão na ponta da língua e no imaginário brasileiro. O refrão “Brasil, mostra tua cara” virou hino de torcidas em jogos da seleção e “A tua piscina tá cheia de ratos”, pichado em muros.
Ideologia é um disco extremamente pessoal, embora ressoe gritos de uma geração inteira: é fruto de uma época vulnerável e de uma vida sem limites; o elixir do herói que o eterniza no palco e na memória. Não que os outros álbuns de Cazuza não sejam ótimos e de certa maneira íntimos, como Burguesia, mas o de 1988 é a sua persona do começo ao fim, com todas características que o definem e nos lembram quem é, pertencentes à obra também.
Cazuza foi o primeiro artista brasileiro a revelar que tinha o vírus HIV, sendo uma representatividade gigantesca para tantos que, se não bastasse o sofrimento gerado pela sentença de morte, ainda conviviam com o abandono e o preconceito. Sua ideologia foi não ficar em cima do muro, mas derrubá-lo e construir uma porta. Ele escolheu um lado da história e difundiu sua ideia pelo país, mostrando todas as suas facetas: o burguês, o amante pela louca vida e o romântico; eternizando suas letras no imaginário brasileiro e tornando seu amor palco de dedicatórias a tantos outros exagerados que abrem e fecham a geladeira a noite inteira.
Muito obrigado, Cazuza.