Davi Marcelgo
É muito difícil falar algo novo de Homem-Aranha 2 (2004) vinte anos depois de seu lançamento. Todo mundo já teceu algum comentário: sobre ele ser a adaptação definitiva de um quadrinho de super-herói, sobre suas cenas de ação de tirar o fôlego ou do enredo espetacular. De tudo já dito a respeito, pouco se fala – principalmente no meio nerd, que foca apenas em fidelidade para com a obra original – do melodrama. Para comemorar as duas décadas do filme que marcou e ainda marca gerações, ligue a Televisão e lembre-se do horário das nove, porque a sequência de Sam Raimi é um ‘novelão’.
Porém, é imprescindível falar sobre o responsável pela produção. Sam Raimi é um diretor muito autoral, é fácil identificar seus trejeitos e estilos desde seu primeiro longa lá no distante ano de 1981, A Morte do Demônio, com os close-up, câmera hiperativa e as longas sequências com poucos cortes. Na década de 1990, ele experimentou um pouco de tudo: um herói trágico com estética noir em Darkman – Vingança sem Rosto (1990); Um Plano Simples (1998), um thriller inquieto e silencioso; dirigiu um romance em Por Amor (1999) e, até mesmo, desbravou as terras do Velho Oeste com o bang-bang Rápida e Mortal, de 1995. Como consequência, a trilogia do Homem-Aranha, idealizada por Raimi, acaba sendo uma somatória de tudo que ele já havia feito antes.
Então, em 2002, depois de tantos esforços para fazer filmes, Sam Raimi foi chamado para comandar o primeiro grande blockbuster do aracnídeo da Marvel – o seu herói favorito desde a infância. Com orçamento e equipes maiores, o autor fez de Homem-Aranha, daquele mesmo ano, um belo retrato de Nova York. Os becos do município – espaços estreitos e normalmente sujos – são lugares para o amor, o tesão, a descoberta, o luto e o amadurecimento. São vias de transformação: Peter Parker (Tobey Maguire) passa por várias etapas da vida em vielas, o que mostra como a cidade é viva e presente. O peso entre a metrópole nova-iorquina e sua população ficou mais sensível depois dos ataques às Torres Gêmeas em 11 de Setembro de 2001. Por isso, ver um herói que veste as cores da bandeira americana cuidando do povo foi catártico.
Contrastando com a mansão de seu melhor amigo, Harry Osborn (James Franco), o público acaba frequentando pouco a residência. Raimi sempre filma ela de longe e nunca a encaixa inteira na câmera – diferentemente da casa de Peter que, em um quadro, já podemos vê-la por completo. Os objetos em cena, como máscaras tribais, quadros e assentos caros afastam a família Osborn do espectador, e o aproximam da simplicidade dos Parker. O cineasta registra as diferenças de classe através das imagens, afinal, Cinema é uma Arte Visual.
A partir disso, cria-se um personagem mais verossímil, que mora em bairros comuns e frequenta ambientes relacionáveis. Nos extras do DVD de Homem-Aranha (2002), o diretor de arte Neil Spisak conta que a ideia era realmente fazer da cidade um personagem, diferentemente das fictícias Gotham e Metrópolis. O Cabeça de Teia acaba por ser um ótimo herói para isso, porque além da intenção de filmar os lugares em comum da cidade, a produção quis levar os nova-iorquinos para regiões inacessíveis, como o pico de um prédio.
O longa perpetra seu protagonista como fruto da cidade e concentra elementos humanos no filme todo, tais como: ciúmes, ausência de dinheiro, escola, figuras paternas e “como toda história que se preze, é sobre uma garota”, cita Peter Parker (Tobey Maguire) em sua primeira fala. Com todo material-base estabelecido, qual era o caminho para Homem-Aranha 2? Sam Raimi responde: o melodrama.
Mas, afinal, o que é melodrama? Para entender a narrativa melodramática, é preciso voltar alguns séculos na história. Ela surge no fim do século XVIII com a Revolução Francesa e a popularização do Teatro para o povo. Neste movimento, a Arte afasta-se da aristocracia, então é preciso contar histórias que a população quer ouvir. A tragédia grega com seus heróis nobres e dignos de atitudes que dimensionam toda a humanidade não interessa à burguesia e às classes populares, daí surge o melodrama: histórias cotidianas e personagens identificáveis.
Misturado ao drama moderno altamente subjetivo, muitos autores vão definir algumas características ao melodrama. Além da natureza trivial, há a forte presença da visualidade, uso de móveis e objetos habituais, assim como um tratamento maniqueísta do ‘mocinho’, ‘mocinha’ e vilões. As atuações tendem ao exagero, são corporais e expressivas. No Cinema contemporâneo, a forma de contar uma história, dificilmente é ou será purista, não seguirá à risca a cartilha dos elementos que fazem de um texto parte de um gênero. Um filme de terror pode ter fragmentos do coming-of-age, assim como um suspense pode ser pitoresco. Em Homem-Aranha 2, é possível identificar características do melodrama, das peças gregas, francesas de outrora e das novelas brasileiras.
De partida, as personagens da sequência não são unidimensionais. Peter Parker (Tobey Maguire) enfrenta dilemas e assume erros. O antagonista, Doutor Octopus (Alfred Molina), é composto de complexidades dificilmente presentes em filmes de quadrinhos. Apresentado ao público como homem nobre, de filosofias altruístas e ideias científicas que ajudarão a humanidade, a faceta do personagem vai sendo subvertida com a rolagem dos minutos do longa, indo de benfeitor a vilão que despreza a vida e vai cometer crimes para realizar seu sonho, e de benevolente a egocêntrico.
O ‘mauricinho ‘favorito dos fãs do Teioso, Harry Osborn, também tem suas próprias motivações. Crédulo de que seu pai, Norman Osborn (Willem Dafoe), foi morto pelo Homem-Aranha (Tobey Maguire), o jovem fica obcecado na ideia de matar o herói. O amor paterno sempre lhe foi negado e agora ele acredita que vingar a sua morte trará orgulho para ele. Mary Jane (Kirsten Dunst) também continua vagando por relacionamentos com homens de sobrenome importante para impressionar o pai. A trilogia de Sam Raimi é um grande daddy issues.
Outro elemento do personagem também se equipara à tragédia grega. Quando Peter desiste de ser herói, todo o peso dos crimes, acidentes e calamidades que decorrem em Nova York é atribuído à escolha dele. A cena do incêndio ilustra a presença do gênero grego na história; após salvar (como cidadão comum) uma ‘garotinha’ de sua casa em chamas, o protagonista descobre, pelos bombeiros, que um homem ficou preso e morreu queimado. Parker, então, faz recair a culpa sobre seus ombros. Como Homem-Aranha, ele poderia ter salvado todos ter feito mais. A cena se contrapõe a um outro incêndio que ocorreu durante os eventos do primeiro filme; na ocasião, o herói salvou todo mundo.
Isto posto, onde as novelas que nossas mães e avós assistem se encaixam nisso tudo? Em telenovelas brasileiras, podemos fazer um checklist de elementos melodramáticos: as tramas do cotidiano, ‘mocinha’ e vilão definidos com exatidão, núcleos populares e de alta identificação – ‘olha só, aquela personagem lembra nossa vizinha, nossa tia’ como também a direção, já que a cenografia da teledramaturgia é muito visual, expressiva e corporal, bem diferente do Cinema Hollywoodiano. E todas essas referências estão em Homem-Aranha 2 e, além de todo mérito solo do filme, essa semelhança pode ser um grande fator os brasileiros terem tanto afeto por ele.
‘Correria’ do trabalho, festas de aniversário, atrasos em compromissos importantes, humilhação no banco, relações familiares, ida ao médico, faculdade, problemas amorosos e ‘grana’ curta. Todas essas cenas são da sequência de 2004. Quantos desses uma pessoa brasileira se identifica? E quantos desses já não se tornaram arcos de personagens de novelas? Sam Raimi e os roteiristas compreendem o conceito do aracnídeo é ser esse personagem que qualquer um poderia vestir a máscara – como repercutido em Aranhaverso (2018) – e enxergam no melodrama, no Teatro popular, o estilo narrativo ideal.
Para além da explosiva cena no trem ou a de terror no hospital, outros momentos são marcantes na produção. Dois se referem à família do protagonista e outro a uma banalidade da vida. Neste, Ursula (Mageina Tovah) oferece um bolo a Peter em um momento delicado da vida dele, esta pequena cena humaniza e nos aproxima da história. As outras duas são protagonizadas pela Tia May (Rosemary Harris), em uma é negado um empréstimo no banco e na outra ela dá dinheiro como presente de aniversário ao sobrinho, mesmo que momentos antes eles tivessem dialogado sobre atrasos na hipoteca. É muito difícil ver um filme de super-herói fazendo algo semelhante, o que torna a obra singular e atemporal.
É comum vermos familiares se dobrar para deixar sobrinhos, netos, filhos felizes, ainda que somente em datas comemorativas. O filme coloca Peter Parker em um problema financeiro que superpoder algum consegue resolver – claro, ao menos que ele usasse-os para seu benefício. Desenvolvendo assim, o arco do personagem incapaz de solucionar os contratempos da vida comum, seguindo na proposta de fazer o espectador se ver na tela.
Em Avenida Brasil (2012), Carminha (Adriana Esteves) revela a Tufão (Murilo Benício) que Nina (Débora Falabella) é Rita. O efeito de congelamento foca em Tufão e, assim, se encerra o 152º capítulo – e todos os outros 178 – da novela: com um gancho. O suspense dos rumos que a trama vai seguir é o grande chamariz que vai fazer o público querer ver o episódio do próximo dia. O cliffhanger, no inglês, é um recurso de roteiro comum no melodrama e faz parte da arte de contar novelas. Mas não só delas, Homem-Aranha 2 também se encerra (ou quase) assim.
A penúltima cena se dá em um grande gancho para a terceira parte da trilogia. No final do antecessor, Harry diz a Peter – no enterro de Norman – que a única coisa que resta a ele é Parker e o Aranha, este como objeto de vingança e o outro como família (que, ironicamente, são a mesma pessoa). O remanescente da família Osborn fica todo o segundo filme fissurado no herói, até que descobre a sua identidade secreta: é o seu melhor amigo. Na sequência disso, ele descobre o arsenal do Duende Verde e o alter ego do vilão: seu pai. Então, é inserido um efeito de fade out, passando para outra cena. O que não passa é a ansiedade em saber quais serão as decisões de Harry Osborn.
Em telenovelas, os monólogos de vilões contando planos maléficos ao espelho já são marca registrada. As personagens divagam sozinhas e, curiosamente, o protagonista do épico de quadrinhos também faz isso. Assim como a presença de núcleos narrativos, de humor, da roça, do salão de beleza, novelas possuem tramas que podem ou não se encontrar, é comum seguirem paralelas. E não é que toda trilogia do veterano de terror também tem isso? O Clarim Diário é um núcleo de humor que não tem tanta interferência na trama, mas que está sempre presente na vida do protagonista. Ver uma cena na redação do jornal é se preparar para o riso, assim como quando vemos o Leleco (Marcos Caruso) em Avenida Brasil.
Sam Raimi consegue lidar com todos esses dilemas na primeira uma hora de Homem-Aranha 2, momento que Parker não tem sossego e sua vida parece uma sucessão de desgraças – até no seu aniversário –, sem deixar o filme denso e cansativo. O humor autodepreciativo suaviza as cenas, exemplo é a sequência no planetário em que Peter apanha de seu melhor amigo, precisa tirar foto de pessoas ricas, leva um fora de Mary Jane ao mesmo tempo que vê ela sendo pedida – e aceitando – em casamento. No passo de tantas desventuras, há uma piada acontecendo: Peter não consegue pegar um drink. Quando a taça não está vazia, alguém pega antes. É um humor que continua a narrativa de pobre coitado, mas que equilibra o tom do filme.
O cineasta sempre foi muito fã do personagem e quis relembrar o porquê amamos tanto aquela história; por meio das personagens e cenários que podem nos espelhar. O filme é para quem cresceu com a trilogia criada pelo mestre do terror, que na infância sonhou em escalar paredes e atirar teias por aí, mas, quando se tornou adulto, percebeu que é muito mais Peter Parker do que Homem-Aranha. No Brasil, os longas ganharam mais carinho por serem tão próximos da nossa realidade e das obras que crescemos assistindo. Em 20 anos de Homem-Aranha 2, o Cinema de Herói mudou, as novelas mudaram, mas o amor por essa obra e ela por nós continua sólido.