Vitor Evangelista
O negócio é o seguinte: High School Musical virou série. Mas nada de reboots preguiçosos ou remakes nada inspirados, High School Musical: The Musical: The Series vai além do comum na hora de dar sequência à trilogia de filmes dos anos 2000. Cheia de metalinguagem, recursos de pseudodocumentários e um humor afiado na bobeira, a produção original do Disney+ é diferente de todos os revivals sem graça que pipocam toda semana na Netflix.
Numa East High atual, conhecemos esse novo time de Wildcats. Eles estudam na exata escola que serviu de locação para os filmes originais e, não obstante, são obcecados pelos dramas e amores de Troy Bolton e Gabriella Montez. Com a chegada de uma nova professora de teatro, os adolescentes de agora, fascinados pelo musical de Kenny Ortega, são influenciados a encenar o enredo do primeiro HSM como a peça da temporada.
Nada interessada em recriar moldes engessados de Troy, Gabriella e companhia, a série de Tim Federle adentra no microcosmo da adolescência escolar, nos apresentando uma dupla protagonista recheada de carisma, e que não deve nada à Zac Efron e Vanessa Hudgens. A mocinha da vez é Nini, interpretada por uma Olivia Rodrigo voando na onda do talento e da qualidade de estrelato. Introspectiva, ridiculamente boa cantora e ótima personagem catalisadora de emoções, é claro que Nini dá o pontapé em As Audições com o coração partido.
O responsável por magoar a garota é nada mais, nada menos que Ricky. Sem nenhum traço de badboy ou boy lixo, o jovem encontra na atuação de Joshua Bassett uma fonte de vitalidade. Depois de não retribuir um ‘eu te amo’ para a então namorada Nini alguns meses atrás, Ricky acabou terminando o romance. Agora, semanas depois, a menina volta para a escola namorando E.J. (Matt Cornett), aluno mais velho, com pinta de atleta mas que não hesita em soltar a voz no teste de elenco para o papel de Troy Bolton no tal musical que nomeia a série.
Testes são feitos, músicas clássicas são cantadas. Nini acaba com o papel de Gabriella, e é claro que Ricky interpretará Troy, assim nascendo o climão que ruma os primeiros dos dez capítulos da temporada inaugural. A grande qualidade de High School Musical: The Musical: The Series é seu jogo de cintura na hora de prosseguir com a trama que, além de ser moldada em clichês já usados à exaustão no passado, ainda se baseia num filme conhecido do grande público.
O que poderia cair num marasmo desgraçado e ficar no lenga-lenga do triângulo amoroso, contrastando com o embate Gabriella versus Sharpay do HSM de 2006, nas mãos da Disney atual, acaba se reinventando vez após vez. A curta duração dos episódios dá o ritmo ideal para o seriado nunca pesar na autorreferência ou no drama descabido. O formato de mockumentary, ou falso documentário, é a brecha para o humor inteligente dos personagens, sempre com boas colocações e tiradas genuinamente divertidas.
De tanto acompanharmos a rotina de ensaios do grupo, nos aproximamos deles. Sentimos seus medos e anseios, torcemos para que se beijem e declarem o amor eterno da adolescência um para o outro. A toada de leveza e companheirismo da série é tocante ao ponto que, assim como os filmes originais, molda um ambiente nada tóxico ou degradante para esse povo estranho que adora o teatro e ama cantar quando der na telha.
Na verdade, a aura de ‘proteção’ do mundo real vai mais além do que no passado. Dentro das paredes de East High, não existe homofobia ou racismo. Nossos protagonistas e coadjuvantes enfrentam percalços que, embora de fácil resolução, pesam na mesma medida à quem assiste. São aflições momentâneas, dores passageiras e relacionáveis ao mundo fora de um set de gravações. O coração partido de Nini, a insegurança de Carlos quanto ao talvez namorado Seb, os flertes escorregadios de Big Red e Ashlyn. Ao assistir High School Musical: The Musical: The Series, é facilmente possível encontrar suspiros onde o público ri quieto, gargalha com entusiasmo e até chora junto com eles.
Tudo isso ocorre pela honestidade do texto e da sensível direção, que assume o amor imensurável ao universo do High School Musical original e não tenta emular o sentimental. Um receio que sempre vem à tona quando discutimos a onda de reboots, remakes e revivals, a todo custo imperando o plástico e nada verdadeiro sentimento de verdade ou importância. Dessa vez, assistimos uma série criada e idealizada pela homenagem, mas alçada ao paraíso pela coragem de amar sem pudores.
E High School Musical: The Musical: The Series pode ser publicizada como o novo berçário de talentos da Disney, mas a produção vai muito além disso. Os atores se encontram nos papéis que encenam, mas não ficam confortáveis com a comodidade. Se existir o repentino receio do seriado só repetir os toques narrativos do filme, pode jogá-lo pela janela. Os arquétipos do atleta gato, da nerd cantora e da patricinha vilã em oportunidade alguma se transformam em cubos de gelo limitadores.
O que é gritado na nossa cara quando no último episódio, Segundo Ato, Ricky abandona a peça e E.J. corre para vestir a regata vermelha com o 14 branco nas costas. As figuras originais de High School Musical evocam o espiritual para que as novas figuras de HSMTMTS possam, sozinhas e cientes dos ovos em que pisam, crescer, quebrar a cara e aprender a lidar com o terrível mundo do Ensino Médio.
É com rapidez que o roteiro entende que o foco deve ser no presente, para não cansar a audiência e, até mesmo, os personagens, que desencanam de banalidades para focar no fresco, no próximo jogo ou coreografia. Gina (Sofia Wylie) passa de vilã à aliada sem pressa ou necessidade de correr com a trama. O mesmo com E.J., uma figura irritante de primeira mas que cresce para além do molde de babaca manipulador.
Para quem acompanha a arrojada abordagem de Euphoria e o sarcasmo viril de Sex Education, esse original do Disney+ pode ter gosto de cereal infantil. O que não significa que é melhor ou pior, e, para quem cresceu assistindo às febres da Hannah Montana, dos Jonas Brothers e dos Feiticeiros de Waverly Place, encontrar algo como HSMTMTS na vida adulta é quase como dormir com o cobertor da infância ou almoçar na casa da vó, não existe nada mais proveitoso que provar o passado por alguns minutos e se sentir bem com isso.
Mesmo tendo saído no fim de 2019, a série passou quase que batida no catálogo do Disney+, que focou quase que todo o material de divulgação em produções como The Mandalorian. Todavia, HSMTMTS voltou à boca do povo por conta de algo extra: o possível rolo e término de Olivia Rodrigo e Joshua Bassett, os protagonistas do show. Tudo começou com o namoro dos atores e seu eventual término.
Logo no começo de janeiro, Olivia lançou sua música de estreia: drivers license, e foi aí que a coisa explodiu. Narrando uma relação acabada, o eu lírico da canção sofre muito, referenciando o ex e sua nova parceira, uma loira mais velha que ela. Acontece que Joshua está envolvido com Sabrina Carpenter, outras dessas atrizes e cantoras da nova geração que, adivinhem, é loira e 4 anos mais velha que a intérprete de Nini.
drivers license estourou. A letra composta por Rodrigo, em harmonia com o arranjo simples e os vocais agradáveis, alavancou a jovem e, dia após dia, a faixa quebra recordes gigantescos para alguém tão nova e que, teoricamente, ‘surgiu do nada’. Se o drama é real, só o tempo dirá, mas para os fãs que cresceram com notícias do mundinho Disney e sua troca de casais, até nisso a série de HSM consegue acender a chama da nostalgia.
Chega a ser suspeito que a música de Olivia tenha saído agora, alimentando o burburinho da série. Ainda em janeiro, Joshua lançou Lie Lie Lie, uma canção anunciada em 2020, e que fala sobre mentiras e desconfiança. Fora isso, com a segunda temporada confirmada, High School Musical: The Musical: The Series muito se beneficiou da fagulha da fofoca propiciada pela dupla de atores. E, antes desses lançamentos solo, a produção deu espaço para os dois comporem uma canção para o show.
Just for a Moment é o dueto romântico da temporada, e encontra Nini e Ricky no precipício da vulnerabilidade. De fato, as regravações dos clássicos do primeiro filme são blasé comparadas às músicas originais da série. I Think I Kinda, You Know, que é cantada toda hora com contextos diferentes, demonstra no couro o tipo de trama de High School Musical: The Musical: The Series, interessada em ressignificar para evoluir.
A adição de uma música para a Senhora Darbus, papel de Ashlyn na peça, entrega o melhor momento musical da série: a macia e avassaladora Wondering, na voz de Julia Lester. Com a promessa divina de adaptar os outros dois filmes, High School Musical: The Musical: The Series pode durar por anos e anos. E eu peço aos céus que dê mais tempo de tela para os quebradores de barreiras, destruidores de padrões e encharcados de carisma, Carlos (Frankie Rodriguez) e Seb (Joe Serafini), esse segundo aparecendo pouco, infelizmente, mas hipnotizante no papel de Sharpay.
As saídas fáceis na hora de desenvolver o possível romance dos meninos cansa bastante, mas, considerando questões de censura dentro do catálogo da Disney, a mera inserção de personagens gays (a série nunca fala sobre isso diretamente), com histórias que não envolvem se assumir ou sofrer homofobia, já é um avanço dos filmes. Onde Ryan (Lucas Grabeel, que retorna numa pequena participação na série) foi escondido no armário por muitos anos
A sensação de assistir e vibrar com High School Musical: The Musical: The Series é a mesma de remexer em armários velhos e encontrar o álbum de figurinhas do primeiro filme, ou dar de cara com alguma revista da época que contava t-u-d-o sobre os romances de Zac Efron, Vanessa Hudgens e Ashley Tisdale. É um abraço no nosso eu do passado, aquele eu receoso de dançar ao som de We’re All In This Together, com medo de sofrer por isso. Os dez episódios acabam rápido demais, mas ainda dá tempo certinho de perguntar: “Qual é o time?”.