Caroline Campos
O mundo natural pode ser palco de horrores muito mais tangíveis do que qualquer assombração maligna que os Warren seriam capazes de oferecer. Apesar da natureza não poder ser medida com nossas próprias réguas morais, é impossível não reparar na peculiaridade e na diversidade das interações entre animais, plantas, fungos e outros organismos vivos que habitam os confins do planeta Terra – fêmeas devoram machos, vespas depositam seus ovos dentro do corpo de um amigo inseto desavisado, baratas são comidas vivas por vespas-esmeralda. E é partir dessa loucura ecológica que Silvia Moreno-Garcia revira a terra para dar vida ao seu Gótico Mexicano, lançado pela DarkSide Books em 2021.
Revisitando a melancolia da Literatura gótica originalmente inglesa, Moreno-Garcia constrói uma atmosfera densa e enevoada pelos mistérios que cercam Noemí Taboada, socialite da Cidade do México na década de 1950 que precisa deixar sua vida de festas e namoros de lado para ir atrás da prima Catalina que, após se casar e se mudar para o interior, envia uma carta desesperada para a família. Sem fazer ideia do que a espera, Noemí viaja até a pequena cidade de El Triunfo para buscar respostas de Virgil Doyle, o homem que levou Catalina para longe de casa com um anel de casamento no dedo.
Vinda de um centro cultural movimentado, a protagonista sente nos ossos a mudança de ares – El Triunfo é uma cidadezinha decadente que estampa apenas os resquícios de um passado glorioso, quando a mina da região jorrava prata e os britânicos se estapeavam pela mão de obra local. No entanto, no alto do morro vizinho àquele conjunto de casas mortas-vivas, os Doyle se escondem na própria história e dentro de High Place, a mansão vitoriana que abriga os quatro membros da família, três criados importados da Inglaterra e a jovem enferma Catalina, com seus olhos vazios e seu espírito assombrado.
“A casa pairava sobre eles como uma gárgula enorme e silenciosa. Se não estivesse tão desgastado, o lugar teria parecido agourento, evocando imagens de fantasmas e casas assombradas, com sarrafos faltando das venezianas, o ébano do alpendre rangendo à medida que eles subiam a escada até a porta, que exibia uma aldrava prateada no formato de um punho que pendia de um círculo.”
Se não fosse pelo carisma infinito e o humor irreverente da protagonista, Gótico Mexicano seria engolido por uma tensão sufocante do início ao fim, mas é a socialite quem encaminha a narrativa a um balanceamento ideal entre o sombrio e o cômico. Acostumada a ter tudo o que quer, Noemí se depara com uma família inglesa fria, eugenista, excepcionalmente pálida e para lá de suspeita quanto ao tratamento de Catalina. Escuras e sem vida, as paredes de High Place esmagam a visitante indesejada como que tentando descobrir se ela é uma ameaça. Diante desse cenário, não é preciso muito para que a desconfiança invada o coração da jovem.
Como um bom romance gótico, o livro de Silvia Moreno-Garcia abusa das assombrações e dos cemitérios cheios de nevoeiros enquanto dispensa resoluções previsíveis aos seus mistérios. No entanto, o que refresca a narrativa da mexicana é a releitura decolonial do gênero e a escrita obstinada em enfrentar a opressão colonizadora que pairou sobre a América Latina ao longo da História. El Triunfo e seus moradores nunca esqueceram de seus mineiros desprezados, inferiorizados e despejados em valas coletivas – seja por mãos espanholas ou inglesas. O acerto de contas pode se materializar na presença de Noemí, mas é a caneta por trás da personagem que dá o verdadeiro passo dentro dessa longa batalha cultural.
E é por isso que, durante as 288 páginas de Gótico Mexicano, a sensação de perigo iminente se intensifica quando algum Doyle está por perto. Com ideias racistas e um sorriso predatório, é Howard, o ancião da família e pai de Virgil, quem mais desperta o incômodo e a náusea de Noemí. Apesar de pouco aparecer em cena, sua figura parasita persegue a protagonista em seus sonhos, tão palpável quanto a casa que o patriarca trouxe diretamente de sua terra natal, e é ao redor da sua carcaça podre e decrépita que o plot fúngico do livro dá as caras.
“Uma mulher que não é querida é considerada uma megera, e uma megera não pode fazer quase nada, pois todas as portas estão fechadas para ela.”
Por integrar a alta elite mexicana, Noemí ainda foca em manter a pose diante dos confrontos em que se insere. Suas visitas obstinadas até El Triunfo em busca dos rumores que cercam High Place são recebidas com reprimendas violentas e insultos misóginos por parte da governanta Florence, assim como sua insistência em fornecer a Catalina tratamento psiquiátrico adequado desperta a fúria do marido da prima. Apesar de um ótimo personagem, Virgil se segura pelas beiradas para manter com firmeza o título de vilão – título esse que seu pai carrega sem muito esforço. A relação ora cordial ora arisca entre Noemí e o severo Doyle se torna cansativa às vistas, sempre entregando os mesmos conflitos e incorporando os argumentos anteriormente utilizados.
Apesar de um romance mal engatado e de um ou outro personagem sem final, Gótico Mexicano consegue manter uma estabilidade temática que surpreende e encanta os apaixonados pelo gênero. Noemí, que ganhou o sobrenome em homenagem a Carlos Enrique Taboada, cineasta mexicano de Terror dos anos 70, é uma protagonista a altura da história em que está inserida, dialogando com a autonomia das presenças femininas na Literatura de Shirley Jackson. Ciente da sua própria força e com confiança de sobra em sua inteligência, nem mesmo a visão de High Place no melhor estilo A Queda da Casa de Usher a levou de volta para casa.
“A criação de uma vida após a morte fornecida a partir da medula, dos ossos e dos neurônios de uma mulher feita de caules e esporos.”
Silva Moreno-Garcia cria um universo coerente e representativo, salpicando elementos da cultura mexicana de forma que os acostumados com a visão estereotipada do país amarelado e árido dos filmes estadunidenses se espantem com a chuva fina, a neblina e os montes de lama que castigam os pobres saltos-agulha de Noemí Taboada. Graças a tradução de Marcia Heloisa e Nilsen Silva, os termos utilizados para descrever o vestuário, a culinária e até as figuras latinoamericanas citadas pela mente antropóloga da protagonista são devidamente esclarecidos pelas notas de rodapé para os que não são familiarizados com a vastidão de espaços presentes no México.
Com série confirmada pelo Hulu e produção-executiva da própria autora, Mexican Gothic mistura discussões raciais e coloniais com uma narrativa repleta de incesto, canibalismo e cogumelos – tudo isso sob uma escrita tenaz e uma gama de descrições assustadoramente deliciosas. Renovando e subvertendo os clichês dos romances góticos, o sexto livro de Moreno-Garcia é uma criação astuta e determinada sobre o que os vários passados têm a contar a respeito da grande, colorida e pulsante cicatriz que é a América Latina. E que fique claro: seja utilizando caravanas, intervenções militares ou bloqueios econômicos, os intrusos são, e sempre foram, eles.