Raquel Dutra
O legado na música brasileira não é o suficiente para eu me conformar. Vez ou outra, ainda me pergunto como é que alguém conseguiu convencer o sofrido povo brasileiro de que “viver é melhor que sonhar”. O sentido ensaia desenhar-se segundos depois, quando eu me lembro que quem cantou isso foi a sonhadora que é a concretização da ideia mais pura e completa do que pode vir a ser a vida. Mas mesmo assim, ainda é instigante, já que ela, em toda sua grandiosidade e relevância, ainda acrescenta que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”.
Quer profundidade mais condizente com a maior artista do Brasil do que a que ela mesma cria na obra que conta a sua história de vida, realiza seus maiores sonhos e desmistifica sua própria arte? Muito significado, muita intensidade e muita pulsão de vida: assim foi Elis Regina, e assim foi Falso Brilhante, cuja riqueza era autoexplicativa em 1976 e assim permanece até os dias de hoje – e muito provavelmente, assim será por todo o resto da nossa história.
Há 45 anos, o disco é responsável por confirmar a preciosidade da artista e abrigar algumas das canções mais atemporais da música brasileira. Considerado um dos álbuns mais importantes dentre todas as coletâneas mais maravilhosas que um dia já surgiram dos nossos artistas, Falso Brilhante é também a obra mais relevante da vasta discografia e carreira de Elis.
O projeto Falso Brilhante nasceu no coração e mente de Elis misturando influências circenses com a sua história de vida e uma carga política sagaz em plena ditadura militar. Ainda bem, a pisciana nunca teve medo de apostar em seus sonhos e nas ideias mirabolantes que surgiam dos seus botões de artista. Ela investiu tudo o que tinha, armou o circo e colocou no mundo um espetáculo grandioso, que permaneceu em cartaz no Teatro Bandeirante na cidade de São Paulo entre dezembro de 1975 e fevereiro de 1977, em mais de 300 apresentações apreciadas por cerca de 280 mil pessoas, que ocupavam as mil cadeiras do teatro de quarta à domingo.
O ponto chave não era o conteúdo em si, já que a estrela havia crescido junto com o Brasil e sua história, origem humilde e percalços até engatar a carreira eram de conhecimento do público tanto quanto suas mais bem-sucedidas canções. Para contar sua trajetória em Falso Brilhante, Elis foi além. Não buscando uma narrativa de ascensão e realização plena de sonhos, mas subvertendo as expectativas e obviedades para ser, como sempre, verdadeira com o que sentia. E naquele momento, a dimensão sensível da artista era tomada pela decepção.
Como todo fenômeno conduzido por uma alma vivaz, a relevância de Falso Brilhante, que ainda tinha a direção cênica de Myriam Muniz e musical de seu esposo, o pianista Cesar Camargo Mariano, superou todas as expectativas e transcendeu qualquer rotulação possível. O que de início tratava sobre os sentimentos pessoais de Elis quanto ao país e sua profissão se tornou um registro histórico e denunciante da situação do artista brasileiro e da sociedade como um todo da década de 70, que ainda sentia o reverberar dos anos de chumbo do regime militar.
O show era impossível de se parar, e quando a ideia de registrar parte do repertório de Falso Brilhante em estúdio surgiu, o tempo que Elis e sua equipe encontraram para gravar e mixar o disco foi um dos intervalos de folga das exibições, com a produção de Marcos Mazzola. E a aura do disco é especial desde sua mais inicial concepção. Gravado sob a produção entre as apresentações do espetáculo, o álbum tem o gosto raro da energia de Elis nos palcos.
Um dos maiores triunfos acaba por ser também um dos seu único defeitos. A rotina pesada do show obviamente desgastou a artista e a disposição da banda, e é por isso que, numa análise unicamente técnica, o álbum é considerado inferior às obras anteriores – o maravilhoso Elis & Tom, de 1974 – e posteriores – o memorável Elis, de 1977, que carrega a canção que inspirou seu próximo espetáculo, Transversal do Tempo.
O repertório também estava longe de ser leviano e exigia tudo e mais um pouco da artista. As 42 canções do show dividiam-se em dois atos, passeando entre diferentes gêneros, tons, arranjos, performances e línguas. Para o disco, a lista se condensou em 10 canções escolhidas a dedo para resumir perfeitamente o que era a ideia e execução de Falso Brilhante, contando ainda com algumas inéditas. Delas, surgem cantos de amor e versos apaixonados, protestos políticos, hinos de resistência evocando irmandade e expressões de sonhos e idealismo, ritmados no samba, bolero e rock e interpretados em português e espanhol.
O primeiro contato que Falso Brilhante estabelece com o ouvinte já é irresistível de tamanha honra. Com o grande prazer que é ser chamado de “meu grande amor” por Elis Regina, somos convidados ao disco com uma das últimas músicas da setlist do show que se encaixa perfeitamente em sua abertura. “Não quero lhe falar (…) /Das coisas que aprendi nos discos/Quero lhe falar como eu vivi/E tudo que aconteceu comigo”, ela explica suas intenções com o projeto sob um acordes de um violão calmo e certeiro. Estamos na inconfundível Como Nossos Pais.
Não existe nada mais especial do que ser apresentado à obra da vida de Elis Regina – em todos os sentidos possíveis da expressão – do que através da canção que é uma das mais marcantes de sua carreira e de toda a história da música brasileira. Escrita por Belchior, o gênio que ela descobriu e impulsionou, a canção fez história na interpretação da artista, que externalizava suas maiores desilusões numa universalidade e identificação que só pode ser atingida pelo artista que é tomado de sinceridade e coragem.
Aqui, já é possível concluir a adoração que a artista mantinha pela vida – a sua, a do próximo, da arte, da música e do Brasil. A Elis refletida em Falso Brilhante é assim, fincada no presente, sempre visionária e nunca nostálgica. Seu inferno era o passado e o retrocesso, como ela continua a confessar “Minha dor é perceber/Que apesar de termos feito tudo o que fizemos/Ainda somos os mesmos/E vivemos (…)Como os nossos pais” em um dos versos mais conhecidos e atemporais da música brasileira.
Da sua maior paixão nasce seu maior protesto, residente nos versos mais marcantes de Falso Brilhante. A artista que não chegou a viver seu futuro ousava vislumbrá-lo e pregar as possibilidades como forma de incentivar as pessoas a enfrentarem a situação do país e jamais se curvarem diante dela. “Mas é você que ama o passado e que não vê (…)/Que o novo sempre vem”, “Vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação” e demais profecias esperançosas era o que mais se ouvia da obra da vida de Elis.
Tudo continua em Velha Roupa Colorida, mais uma composição de Belchior que decolou na voz da artista. Desafiada por um arranjo numa escala um pouco mais alta que o comum e com os vocais já arranhados da rotina intensa dos espetáculos, a Pimentinha canta com rouquidão “Você não sente, não vê/Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ Que uma mudança em breve/Vai acontecer” em um dos rocks de Falso Brilhante.
Mudanças essas que se não acontecessem por si só, ela fazia acontecer, como foi com a sua existência vasta embora curta no planeta Terra e com Falso Brilhante. Elis ia atrás do novo. Inaugurar gêneros, descobrir artistas, impulsionar carreiras… Sua potência criativa já era conhecida e fascinante, então, quando ela propôs inverter a lógica do mercado musical – que primeiro pensava no disco e depois nos shows e não o contrário, como ela fez ao arquitetar primeiro o espetáculo sem ter um material sonoro em processo de divulgação – o público, ou melhor dizendo, o grande amor de Elis, comprou a ideia de imediato. Juntos, eles transformaram o projeto sobre a sua vida no sucesso que foi, um recorde de bilheteria e até hoje o maior espetáculo do Brasil.
Ecoar sua verdade, denúncias, coragem, história e pulsão de vida pelo Brasil inteiro ainda não saciava a sede de justiça e de verdade de Elis. Enxergando a amplitude e complexidade da situação política da América Latina naquele momento, ela sentiu a dor dos outros países que também vivam um dos momentos mais sombrios de suas histórias protagonizadas por regimes militares através de Los Hermanos, a primeira das canções em espanhol de Falso Brilhante. Nela, a artista veste um flamenco cheio de identidade da resistência popular latino-americana e canta com sua força característica pelos muitos irmãos que se perdiam entre a repressão, exílio e a morte.
No português, Elis disse o que tinha que dizer em Um Por Todos. Além de incentivar a união que a sociedade brasileira e a classe artística tanto precisavam exercitar naquele momento, ela também reconhecia o fatídico dia em que sucumbiu ao medo e abaixou a cabeça para a ditadura militar. Ligando isso com a decepção da vida de artista que é o tema central de Falso Brilhante, ela canta quase em tom de confissão e arrependimento: “Eu te conheço, sei o preço da fama/E não esqueço/Que deitei em tua cama, em teu berço/Eu sei teu preço, eu te conheço” e revela a forma como lidou com seus próprios erros, reconhecendo sua responsabilidade e o apoio que encontrou: “Lavo as mãos e prossigo adiante/Eu por mim mesma/Todos por mim”.
A arte de Elis sentia tanto a vida e enxergava a realidade com tanta lucidez que, às vezes, sua criadora precisava escapar. E ciente de seu inferno, ela também sabia muito bem como era o seu paraíso, dividindo as paisagens dos seus sonhos em Quero. Guiada por flautas doces e coros suaves, a artista flutua na imaginação dos seus desejos, construídos em “um mundo sem portas ou vidraças” e com “floresta no lugar da cidade”, incluindo “beijar a face da lua” e acabar com tudo de ruim ao “cobrir com flores campos de aço”.
Nem toda a vida e fisicalidade do mundo era o suficiente para Elis. Ela precisava atingir o que estava além, e dentro das canções oníricas, ela também criava algo a mais e desenhava algo muito belo sobre as almas sonhadoras. As imaginações de Falso Brilhante abraçam uma imensidão de pessoas que não são menos determinadas, corajosas ou firmes por ousar ir além da realidade, e O Cavaleiro E Os Moinhos comprova a tese.
A composição dos consagradíssimos Aldir Blanc e João Bosco, dupla frequente na música de Elis Regina, é um retrato de quem está pronto para ir à luta pela revolução porque já imaginou como tudo vai ser. Exaltando a capacidade de olhar além e imaginar o futuro, a artista defende a relevância do ser sonhador, que consiste, como ela mesma bem representou, em contar as possibilidades para as outras pessoas, torná-lo um pouco mais palpável e assim, motivar a luta por ele.
Voltando à vida, Falso Brilhante também a adora. As músicas profundas em significado e vivacidade eram a forma que os artistas encontravam de se opor aos governos e políticas de morte, e em Gracias a La Vida, que abria o segundo ato do show, Elis explode a paixão que sentia por viver com uma riqueza enorme nas estrelinhas. A canção foi escrita e originalmente interpretada pela chilena Violeta Parra, fundadora da música popular chilena e compositora de muitas das canções de resistência que ecoaram pelo país na época.
Sem separar suas celebrações de seus protestos, Falso Brilhante geniosamente aniquila qualquer noção de oposição que pudesse surgir entre os dois elementos e grita da melhor maneira que nossa mera existência é política. Até brincando, Elis conseguia espalhar sua mensagem, inovando nas maneiras de driblar a censura. A canção mais divertida do repertório, Jardins De Infância, critica o governo de forma teatral e narrativizada, camuflada em um toque de jazz.
A militante só descansava no amor. Ali, não tinha jeito, Elis se derretia na presença daquele que acordava sua veia romântica, sempre marcada na paixão das interpretações e nos arranjos musicais. A primeira declaração de Falso Brilhante é Fascinação, popular valsa francesa traduzida para o português por Armando Louzada para que Elis e Cesar pudessem dançar entre as notas doces que cada um expressava à sua maneira, sob o cenário rico preparado pelos instrumentos clássicos.
Em Tatuagem, o deleite é ainda mais especial. Nela, Elis só conversa com o piano do amado, numa profunda intimidade e marcante sensualidade. “Quero brincar no teu corpo feito bailarina/Que logo te alucina, salta e te ilumina quando a noite vem/E nos músculos exaustos do teu braço/Repousar frouxa, farta, murcha, morta de cansaço”, ela canta a letra de Chico Buarque olhando nos olhos de Cesar ao piano, de modo a deixar qualquer um que assistisse a cena constrangido por tamanha intensidade. Elis, no entanto, por nada conservava timidez. Muito menos da arte, muito menos do amor.
A intensidade que a viagem pela vida e sentimentos de Elis trazia era numa narrativa por si só disruptiva. A mensagem de Falso Brilhante era clara, e o glamour e a idealização – que não fosse de um sonho revolucionário – não cabiam na verdade de Elis. Os que esperavam assistir algo melodramático sobre as lamentações de uma artista arrependida eram surpreendidos, já que a decepção, matéria-prima principal do projeto, não era algo romantizado, exaltado ou pintado como paralisante. O que Elis queria era superá-la, com a urgência de quem sentiu na pele e viu de perto as ameaças contundentes ao que ela mais valorizava: a vida e a arte.
O que ela criou como forma de se opor a isso tudo é o que se vê em Falso Brilhante. Com sua história de plano de fundo, ela desabafa, profetiza, imagina, desmente, celebra, denuncia, cuida, representa e sente. Vasta, ativa e complexa, ela mudou pra sempre a arte ao criar dentro de sua música algo que ilustra a própria vida, motivada pela coragem, que nos faz continuar mesmo com o arrepio na espinha de medo do que virá pela frente, e na ousadia de tomar o coração como razão, de assumir sua personalidade, sua identidade, acertar e errar, se desculpar e continuar.
“Eu queria morrer sendo eu” ela disse em sua última entrevista em janeiro de 1982, seis anos depois de Falso Brilhante e duas semanas antes de um dos eventos mais tristes que o calendário brasileiro já viu, o dia de sua morte. Nunca se contentando com nada menos do que ela tinha exatamente em mente, esse foi o maior feito que Elis Regina atingiu: ficar marcada na nossa história sendo ela. Sendo presente, sendo atemporal, sendo relevante, sendo transformadora, sendo corajosa, sendo expressiva, sendo sonhadora e sendo viva. E se ela disse que viver é melhor que sonhar, é melhor a gente acreditar.