Caroline Campos
Depois de WandaVision arriscar uma visão mais ousada e menos linear para a primeira experiência televisiva dos estúdios Marvel, as expectativas em cima de Falcão e o Soldado Invernal borbulhavam pelas cabecinhas conspiratórias dos fãs do Universo Cinematográfico iniciado em 2008. Ao longo de seis episódios lançados semanalmente pela Disney+, a série comandada por Malcolm Spellman dos dois maiores parceiros de Steve Rogers retrata as consequências humanitárias de um mundo pós-blip, despreparado para lidar com o reaparecimento de metade da população depois dos eventos de Vingadores: Ultimato, mas não foge da fórmula ação-comédia já conhecida das telonas.
Apesar do título indicar o protagonismo de Sam e Bucky, o já aposentado Capitão América de Chris Evans poderia facilmente integrar a equipe. O fantasma de Steve Rogers dita o tom de cada arco em Falcão e o Soldado Invernal, ressaltando o rombo emocional que a perda do queridinho dos EUA desencadeou no país e nos Vingadores que lá restaram. Não é à toa que o pontapé inicial do primeiro episódio foi dado por ele – o escudo. Nada poderia simbolizar mais o nacionalismo estadunidense do que o disco de vibranium azul e vermelho que Rogers empossou para derrotar de Caveira Vermelha até Thanos e que, agora, estava sem dono.
Sem dono em partes, claro. Mesmo que o Capitão tenha confiado seu legado nas mãos de Sam Wilson, o Falcão optou por entregá-lo ao governo por desacreditar na própria capacidade de empunhar o escudo, inaugurando a série com os dois pés no peito de quem esperava o herói repaginado de cara. O personagem de Anthony Mackie foi uma das bilhões de pessoas que viraram poeira com o estalo do titã e retornaram cinco anos depois em um mundo completamente reorganizado através de novas fronteiras e organizações mundiais.
Enquanto na série da Feiticeira Escarlate a crise populacional ficou de escanteio em decorrência do Hex, Falcão e o Soldado Invernal a utiliza como motor da narrativa e força-criadora de seus vilões. Qual o suporte que o governo forneceu às pessoas que voltaram? E às que ficaram? Ambas as respostas são ilustradas por conflitos com agentes da lei incapazes de lidar com as demandas recentes da nova configuração populacional. Da necessidade de impedir o governo de realocar e deportar pessoas, surge o grupo revolucionário encarado como terrorista pelos EUA e como vilão, até certo ponto, pela série dos heróis.
Os Apátridas, na verdade, nasceram do antagonista meia-boca do Capitão América nos quadrinhos – que possui o mesmo nome, mas no singular. De um único homem para um ideal revolucionário, a organização encabeçada por Karli Morgenthau e seus super-soldados foi tratada com a ambiguidade ética necessária para compreender as faces do movimento e suas consequências, mesmo que suas bandeiras fiquem bagunçadas por tempo suficiente para que compremos essa ideia de vilania do discurso estadunidense.
Com o mote de um mundo, um povo, o grupo monta seu exército de apoiadores pelo meio virtual e suscita discussões a respeito da crise de refugiados provocada pelos atos truculentos do Conselho Global de Repatriação, que enxota todos os que cruzaram as fronteiras durante o blip. A resposta do governo americano foi, como sempre, convocar a força-tarefa de seus heróis para lidar diretamente com Karli e sufocar sua revolução de apoio global. E como aparentemente Scott Lang estava tirando um cochilo e Bruce Banner curtia umas férias, a bola da vez ficou com Sam Wilson e Bucky Barnes.
A dupla que se conheceu em Capitão América 2: O Soldado Invernal e rendeu breves, porém hilárias interações em Capitão América: Guerra Civil ganhou a chance de aprofundamento que todos os coadjuvantes da Saga do Infinito disputam a socos. E, pela escolha dos personagens, a dose de coragem que a Marvel vem assumindo nas suas produções televisivas caiu como uma luva para inserir abertamente o debate racial e questionar o verdadeiro simbolismo ao redor da figura do Primeiro Vingador.
Como o país que assassina pessoas negras diariamente lidaria com um Capitão América negro? Se Steve Rogers não parou para refletir sobre o assunto, Sam Wilson definitivamente o fez. Ser um super-herói reconhecido mundialmente não evitou que o Falcão fosse parado pela polícia e visse sua família afundada em dívidas pela falta de um suporte financeiro que o resto dos Vingadores parecia ter. Apesar do título da série dividir os créditos, o carro-chefe de Falcão e o Soldado Invernal é Anthony Mackie, que finalmente sai da sombra de coadjuvante de filme do Capitão e passa a ter o devido protagonismo em uma narrativa própria.
A relação de Sam com o escudo põe em xeque a figura do ícone americano da Segunda Guerra Mundial, apresentando ao público o super-soldado Isaiah Bradley que foi apagado da história mesmo após uma série de vitórias na Guerra da Coreia e transformado em cobaia pela sua relação com o soro. As revelações do veterano negro interpretado por Carl Lumbly são a virada de chave para Sam assumir o manto azul e vermelho e subverter todas as versões da história por trás do título de Capitão, moldando a sua forma o novo herói.
Já para Bucky, a redenção veio aos poucos. Perdoado pelos crimes do Soldado Invernal, o sargento de 106 anos ainda procura se adaptar ao mundo moderno enquanto tenta acertar as contas com todos os atingidos pela sua versão nazista. Sebastian Stan, com um pouco mais de tempo de tela, encontra o tom de seu personagem na oscilação da personalidade tragicômica de Bucky, que se obriga a confrontar o próprio passado e o buraco que os experimentos da Hydra abriram na sua trajetória – tudo isso dentro da sala de uma terapeuta.
Ao trazer o Barão Zemo de Daniel Brühl de volta às telas, a Marvel não só se gaba de um dos seus melhores vilões como também revira a autoconfiança de Bucky quanto a sua regeneração. Saudade, enferrujado, dezessete, amanhecer, forno, nove, benigno, retorno, um, vagão de carga – as palavras podem não surtir mais o efeito ativador, mas ainda carregam o peso das ações do Soldado Invernal que tanto assombram o Lobo Branco, alcunha que recebeu no período em Wakanda que ficou de fora dos longas. Como em Guerra Infinita apenas vislumbramos seu retiro sabático no país, a série dedica um pouco de seus episódios para destrinchar o processo de reabilitação do sargento com a ajuda das Dora Milaje, lideradas por Ayo (Florence Kasumba).
Não demorou muito para Brühl roubar a cena e garantir o carisma de Zemo. Retomando os eventos de Vingadores: Era de Ultron, o personagem cutuca o rastro de destruição dos super-heróis durante suas tentativas de salvar o mundo e questiona se, no meio disso tudo, sobra algum respeito por cidades arrasadas como Sokovia e suas vítimas. O Barão ainda é responsável por fazer a ponte que apresenta Madripoor e retoma o papel de Emily VanCamp como Sharon Carter, foragida depois de resgatar o escudo de Steve em Guerra Civil.
Que a Marvel não sabe o que fazer com suas personagens femininas, isso nós já sabemos – Viúva Negra não tem paz nem depois de morta. Agora, cair novamente na simplicidade de vilã duas-caras que envolve toda a trama da ex-agente 13 com o Mercador do Poder foi de sair berrando pelado na rua. Apesar da participação de Carter ter sido tediosa como um todo, a conclusão rasa de seu arco e as dúvidas acerca do futuro da personagem não causaram nada além de uma grande revirada de olhos. Madripoor ainda vai render muito plot para o estúdio.
Se nomes já conhecidos do universo retornaram, novas caras também foram apresentadas em Falcão e o Soldado Invernal – e nenhuma rendeu mais burburinho e especulações do que John Walker. Quando o governo estadunidense se deu conta de que o mundo não conseguiria sobreviver sem a esperança ufanista do Capitão América, foi correndo procurar outro militar branco para assumir o escudo que Sam tinha doado como parte do memorial de Steve. Walker, de cara, já causou a repulsa das viúvas que não haviam superado a saída de Chris Evans do papel, mas o novo Capitão conseguiu superar todas as expectativas de quem esperava um desastre.
Dono da melhor atuação da série, Wyatt Russell entregou tudo e mais um pouco com John Walker, o militar condecorado que transita pelo desequilíbrio total com respingos de psicopatia na tentativa de fazer jus a seu antecessor. Abandonando de vez o maniqueísmo em seus vilões, o estúdio encontrou em Walker um homem traumatizado pela guerra e incapaz de lidar com a responsabilidade que assumiu. Se Steve Rogers representava a idealização dos EUA, John Walker é a verdadeira face do país – agressivo, impulsivo e autocentrado.
E a prova está no quarto episódio da série, intitulado O Mundo Está Vendo. Pela primeira vez na história da Marvel, uma cena verdadeiramente violenta chocou os olhos dos seguidores do estúdio tão desacostumados com sangue e momentos de fúria extrema. Infelizmente, utilizaram a morte do promissor Lemar Hoskins como ponto de partida para a loucura de seu parceiro, abandonando o potencial do Estrela Negra antes mesmo de começar a desenvolvê-lo. Com um escudo manchado de sangue inocente, John Walker, muito comparado com o Capitão Pátria da série vizinha, parece gritar “não há mais Steve Rogers por aqui”.
Mesmo que estejamos lidando com uma trama de mocinhos, a relação de Falcão e o Soldado Invernal com seus vilões – com exceção da babaquice que fizeram com Sharon – é coerente de acordo com os ideais de Sam e Bucky. Não há espaço na série para tratar Karli e John como monstros irredutíveis, e o Falcão é essencial nesse diálogo. Sam Wilson é o sucessor natural de quem ele sempre admirou, revitalizando a figura batida do Capitão com suas lutas aéreas e seu novíssimo uniforme vindo direto das terras do Pantera Negra.
Anthony Mackie assumindo o manto e ganhando um filme solo com seu novo título é o gás que a Marvel precisava para se adaptar aos novos tempos. O que a gente conhece ainda está lá – as cenas de luta perfeitamente coreografadas, o humor besta e divertido, a ação herói versus vilão. Mas nem mesmo o maior Universo Cinematográfico do cinema pode parar no tempo e cometer os mesmos erros do passado; os mesmos erros que cometeram com Isaiah Bradley. Se Elizabeth Olsen e Paul Bettany encabeçaram essa nova era para o mundo de Kevin Feige, Mackie e Stan reciclaram a fórmula mágica adotando uma roupagem política e certeira para os heróis mais poderosos da Terra.
Para quem está com saudades da cota anual de super-heróis nos cinemas, Capitão América e o Soldado Invernal não decepciona. Agradando desde os fãs mais cri-cris até os de mente aberta doidinhos por um filme de gênero, a química hilária da dupla de atores mostra que o título de protagonistas finalmente veio, e veio por merecer. Apesar do escorregão na reta final (um discurso, sério?), os seis episódios da nova empreitada televisiva do estúdio tem gostinho de tela gigante, pipoca com manteiga e daquele escuro com mais outras cem pessoas ao seu redor.