Raquel Dutra
É quase impossível pensar em Coldplay sem associar o grupo às suas costumeiras melodias enérgicas, letras imaginativas e canções vívidas encaixadas dentro de um pop eletrônico que colocou arenas inteiras em estado de catarse nos últimos dez anos. Antes de desviar-se por essa direção, a banda fez seu nome com um rock alternativo sentimental, poético e igualmente atraente com seu álbum de estreia em 2000 e através dos outros dois que o seguiram, estourando com algo mais pop em 2008. O que veio depois disso é alvo de opiniões fortes, mas apesar das inconsistências que a arte de uma banda altamente vendável vivencia ao decorrer dos anos e das respostas conflitantes que podem surgir do público e da crítica, o sucesso que o grupo conseguiu construir em suas diferentes identidades é um fato inquestionável.
Só que o mundo que o Coldplay encontrou chegando nos seus 20 anos de carreira era diferente. O feito colorido de 2015, A Head Full Of Dreams, fez os fãs mais fiéis torcerem o nariz ao mostrar que os músicos não se entrelaçavam para criar canções como antes. Além disso, o otimismo e idealismo da banda – que sempre se envolveu com questões sociais e políticas – soavam calejados e plásticos, já que buscavam ressoar numa realidade que apresentava problemas cada vez mais urgentes e posicionamentos e ações cada vez mais concretos.
Então, em meio a boatos de um possível fim do grupo, a banda, sob a liderança sensível do vocalista Chris Martin, entendeu que o momento pedia menos pompa, mais pés no chão, novas perspectivas e quem sabe até uma volta do Coldplay às suas origens. O processo até a concretização disso tudo levou quatro anos e chegou com uma aura de comeback através do oitavo álbum de estúdio do grupo, o mais experimental, livre e político até o momento, Everyday Life.
“É tudo sobre ser humano. Cada dia é ótimo, cada dia é terrível e cada dia é uma bênção”, reflete Chris Martin sobre a principal matéria-prima de Everyday Life: o ordinário. Concentrando-se na vida do século XXI, a banda deixa de lado sua arte grandiosa e escapista para explorar temas, texturas e sonorizações do nosso dia a dia. Com o apoio de gêneros mais familiares e orgânicos, como o gospel, o blues e o folk, surgem reflexões sobre amor, fé, amizade, família, guerra, racismo, violência e mudanças climáticas em canções plurais, feitas não só entre o quarteto mas com a companhia de muitos outros artistas vindos de vários lugares do mundo.
Para amarrar as experimentações com o conceito do disco, há pontualmente a essência pop e rock alternativo característicos do Coldplay, que permite uma sonoridade mais ‘neutra’, além da própria sistematização do álbum. Everyday Life é um disco duplo, com o primeiro lado intitulado Sunrise, e o segundo, Sunset, que encontrou o mundo ao vivo pela primeira e única vez no dia 22 de novembro de 2019, em duas apresentações ao vivo na cidade de Amã, capital da Jordânia, transmitidas no YouTube e realizadas ao nascer e ao pôr do Sol.
Ao chegar para o início do oitavo disco do Coldplay, somos recepcionados à moda da casa, com uma abertura instrumental expressiva, assim como acontece no épico Viva La Vida or Death and All His Friends (2008), no apogeu pop Mylo Xyloto (2011) e no primo distante de Everyday Life, o synthpop soturno Ghost Stories (2014). Aqui, a vazão dos instrumentos é com uma música clássica, que flutuando entre a melancolia da noite avançada e esperança refrescante da manhã próxima, expressa a exata dualidade que Chris diz enxergar na experiência humana.
Céus abertos pela primeira faixa Sunrise, o sol brilha na diurna Church, e já no início, Everyday Life se transforma em uma experiência quase religiosa. As metáforas da letra junto aos sintetizadores e bateria sincronizados e os versos árabes da artista Norah Shaqur preenchem o ambiente e os nossos sentidos. Guiados pela voz familiar e singular de Chris, todos celebram: “Eu louvo na sua igreja, baby, todos os sete dias da semana”, em versos que podem ter uma conotação romântica, simbolizando santuário espiritual que Martin encontra em quem é o alvo de seu amor, ou, pensando mais além, que pregam a harmonia entre religiões, línguas e nações diferentes.
E então, como alguém que reserva um tempo de manhã para trabalhar o espiritual antes de encarar a dureza do mundo externo, a aura celestial da abertura de Everyday Life se choca com a firmeza de Trouble In Town. Na faixa, Coldplay usa seu espaço para denunciar o racismo, violência urbana e policial numa canção que, embora nem um pouco neutra, é suave, metamorfa, decisiva para o disco e marcante para a discografia da banda. Tomada pela calmaria conformada da voz e pianos de Chris Martin, que guia solos tímidos de guitarra, ela é repentinamente atravessada por uma gravação em que a polícia dos EUA é pega abusando de sua autoridade. A partir daí, a canção cresce e se transforma em algo sério, perigoso e urgente, desembocando num industrial obscuro muito usado por Twenty One Pilots que remete ao som do Coldplay de 2002.
Ao fim, Trouble In Town se reduz outra vez e é finalizada por crianças que cantam juntas em tom de brincadeira a palavra “jikelele”, traduzida do idioma zulu como “mundialmente”, numa demonstração de uma violência universal da qual nem os pequenos escapam. E se a música não for explícita o suficiente, o vídeo clipe desenha todas críticas sociais para não restar nenhuma dúvida quanto às intenções do grupo. “E eu não tenho refúgio/E eu não tenho paz/E eu só recebo mais polícia, é/E eu não tenho consolo/E eu não tenho nome” se transforma no roteiro perfeito para o curta da diretora Aoife McArdle, que coloca personagens orwellianos para viver a letra de Martin e até encenar o diálogo da gravação.
No desespero dos conflitos cotidianos e na sensação de sofrimento iminente, nada mais comum à nossa realidade do que recorrer a quem acreditamos estar além dela. Assim, junto de um coral, Coldplay cria um apelo aos céus com o gospel de BrokEn. “Senhor, quando eu estiver enfraquecido/E estiver em necessidade/Quando eu sentir esse oceano/Me engolindo/Cabeça baixa/Tão cheia de tristeza/Oh, Senhor/Venha acender Sua luz sobre mim”, canta o vocalista seguido dos contracantos do coral junto da banda, que se sente em casa nos arranjos acústicos.
Aprofundando-se na sensação sufocante da dor, Everyday Life segue com mais um hino de clamor, dessa vez mais secular, íntimo, minimalista e com um alvo muito bem definido. Daddy é a música mais triste do álbum, construída com um eu-lírico que foi tirado do convívio de sua família, sinalizando sutilmente uma das causas que mais mobiliza a banda e que é tema recorrente nas canções do disco: a crise humanitária dos refugiados. Ali, o piano de Chris Martin implora por respostas para o personagem, se comunicando através das melhores e mais melancólicas melodias que as teclas do instrumento podem expressar.
Entretanto, o canto dos pássaros ao final sugere uma progressão otimista para Everyday Life, e assim é. Ainda nos ritmos acústicos e íntimos, a transição espontânea WOTW/POTP (iniciais em inglês para ‘Maravilha do Mundo/Poder do Povo’) soa como uma voice memo e vem junto de um violão mais contente para reforçar ideais democráticos e internacionalistas num realismo que ainda alimenta a esperança de dias melhores.
Para encerrar o lado Sunrise, todos os caminhos que Everyday Life traçou até então se encontram na monumental Arabesque. A faixa é o segundo single e peça central do álbum, que se fundamenta na certeza que Coldplay tem de que “todos nós compartilhamos o mesmo sangue”. Nos cinco minutos da canção, estão combinados os metais destemidos de três gerações descendentes do precursor do afrobeat Fela Kuti; as cordas do trio palestino Le Trio Joubran; e os vocais do artista belga Stromae Etterbeek, junto da bateria marcada de Will Champion e o violão das mãos famintas de Johnny Buckland.
A mistura toda se transforma em uma das canções mais atípicas, surpreendentes e perfeitas do Coldplay, explodindo em um rock progressivo psicodélico que faz a célebre frase profética de Fela Kuti, repetida em meio ao ápice dos instrumentos, existir quase palpavelmente. “A música é a arma do futuro”, profetizou o lendário ativista nigeriano. E ali, em meio à potência dos artistas que corre pelo ar sem qualquer barreira e de tudo o que eles representam, tudo faz sentido.
À medida em que o Sol desaparece no horizonte e as cores noturnas de Everyday Life começam a tingir o céu, o lado Sunset se inicia enquanto Chris Martin deixa sua suavidade de lado e canta com a garganta a denúncia de Guns. Sob um violão nervoso referenciando o country-blues icônico de Johnny Cash – que, infelizmente, por pouco não concluiu uma colaboração com a banda -, ouvimos versos rápidos e irônicos sobre violência, guerras e política pró-armas. O único defeito é seu acabamento, encontrado também nas outras canções mais espontâneas do disco. Numa tentativa de demonstrar organicidade com canções rápidas, elas acabam parecendo um mero capricho ao invés de algo realmente intencional, decepcionando ao não empregar a atenção que seus temas de importância e execuções interessantes mereciam.
O potencial desperdiçado se destaca ainda mais quando notamos que os singles, que também carregam temas políticos, são intencionalmente trabalhados com mais atenção. De uma forma mais poética, Orphans volta a abordar a temática da migração forçada, dessa vez com mais energia, junto de um coral jovem que questiona “Eu quero saber quando eu posso voltar/E ficar bêbado com meus amigos/Eu quero saber quando eu posso voltar/E ser jovem novamente”. Um típico hit do Coldplay é muito bem-vindo depois de 10 canções diferentes, agridoces e experimentais, limpando nosso paladar com o pop dosado da banda – que por si só não tem nada de neutro, mas é muito familiar.
A noite de Everyday Life avança e a primeira coisa que Coldplay faz é nos oferecer uma canção de ninar. Graciosa, calma e bela, Èkó conta uma história de amor e sonhos nas paisagens perfeitas de um continente africano intocado pelo imperialismo através dos vocais suaves de Martin, sempre melodioso, dedilhados de violão e do apoio vocal divino de Tiwa Savage. Em sequência, vem Old Friend, que com as mesmas características, se manifesta como uma ode à amizade. No meio das duas, entretanto, a vibe é interrompida pelo jazz charmoso e convidativo da romântica Cry Cry Cry, que conta com vocais duvidosos e juvenis de outro indicado ao Grammy, Jacob Collier.
Essa turbulência na linearidade de Sunset revela o local que abriga as principais incoerências do disco. Com o pouco que resta do repertório, Coldplay comete o erro mais básico nas experimentações, que é a falta de amarração coerente entre uma coisa e outra. Para um álbum com essa exata premissa e falhas pontuais, isso não é grave e até mesmo esperado. Mas com a banda em questão, a história é outra, porque as consequências de seu passado megalomaníaco comprometem até mesmo a legitimidade de seus erros, que são cheios de boas intenções.
Exemplo perfeito disso é بنی آدم (‘filho de Adão’ ou ‘ser humano’), a sexta faixa do segundo lado de Everyday Life. Ela se inicia com o piano da banda em influências da música clássica e depois de um minuto e meio ensaia algo mais pop e eletrônico com uma bateria marcada e solos de guitarra, enquanto versos persas são declamados. Gradativamente, uma confusão se cria no meio de tantas mudanças de rumo bruscas de uma canção que poderia ser quebrada em até três diferentes. Coldplay só lembra que menos é mais ao final, quando a faixa menos bem-sucedida do disco se acalma com uma transição perfeita para a penúltima música.
Fiel ao ritual da rotina, o encerramento de Everyday Life é como se recolher em um lugar de conforto depois de viver os desafios, derrotas e vitórias de mais um dia. Encontramos um lugar de descanso, aceitação, felicidade e paz no single Champion Of The World, que com a riqueza lírica e metafórica de sempre e musicada pelo pop/rock do Coldplay, não deixa o grupo cair na sua própria mesmice de canções exageradas. Agora, eles estão juntos de uma orquestra de cordas pregando superação de desafios e aceitação de nossas limitações, num um mundo em que manter-se vivo não só é motivo suficiente de comemoração como também uma forma poderosa de trabalhar pelas mudanças que buscamos. Há ainda uma ponta de sonho e escapismo, que se antes nos repeliam, agora são funcionais e nos acalentam.
Todos esses sentimentos se expandem na última música, a faixa-título Everyday Life, que retoma o idealismo forte da banda e colore o álbum dominado por canções mais ‘sérias’ e cinzentas. As escolhas sonoras são similares às da anterior, resultado de uma diluição do Coldplay dos anos 2000 com o dos anos 2010, e depois de quinze faixas de ‘desintoxicação’, elas são bem recebidas. Exaltando nossas similaridades ao mesmo tempo em que adora nossa pluralidade, a canção compreende e incentiva: “todo mundo tem seus corações arrancados/Aguente firme para a vida cotidiana”.
A conclusão que resta ao ouvinte de Everyday Life não pode ser outra: Coldplay está no lugar certo e na hora certa desde o fim de 2019, quando se abriu para o mundo e se propôs a retratar nossa realidade cotidiana universal quase prevendo que o ano seguinte seria um dos mais atípicos e globalizados de nossa história recente. É fato que muitas injustiças foram cometidas pelo Grammy nesta temporada, mas ouso dizer que a controversa presença de Everyday Life dentre os Álbuns do Ano de 2021 certamente não é uma delas.
A obra realista, experimental e plural, repleta de altos e baixos e momentos de denúncia e esperança se transformou na arte irretocável para representar 2020 e o que existe até o momento de 2021. Everyday Life é a trilha e o roteiro mais precisos dos meses em que a nossa vida ordinária seria tirada de nós e nossas forças locais não seriam suficientes para vencer os desafios que surgiriam; um período em que nós dependeríamos do outro como nunca; que nossos problemas sociais seriam visíveis como nunca; que nossos sentimentos seriam confusos, saudosistas e inflamados e que, paradoxalmente, precisaríamos de conforto e novidades como nunca.
Transcendental à materialidade em que se firma, Everyday Life segue até aqui como um acontecimento religioso. Fonte de esperança e conforto mas também um espaço seguro para desabafar dores e revoltas, nestes contextos, nem sempre concordamos com tudo, mas o objeto da experiência religiosa é maior que qualquer coisa que possa destoar no meio do caminho. Assim, a banda mostra e faz coisas bem maiores que as inconsistências de sua trajetória. E quando cantos de “aleluia” surgem nos últimos segundos da última faixa do disco, nós temos a chance de atender ao apelo, dar mais uma chance e nos converter ao Coldplay novamente.