Thrice Upon a Time: o fim de Evangelion e o início da Neon Genesis

Cena do filme Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time. Imagem Asuka, Mari, Shinji, Rei e Kaworu usando roupas colegiais, em pé, sobre a areia, com suas pegadas espalhadas pelo chão. Todos estão sorrindo e fazendo poses como se estivessem sendo fotografados, menos Rei, que permanece séria.
Uma das mais marcantes características de Evangelion é sua tendência abstrata de tratar a história e as reflexões que a acompanham, brincando constantemente, por exemplo, com símbolos cristãos (Foto: Amazon Prime Video)

Elisa Romera de Freitas

Quando Shinji abre os olhos, encontramos um mundo estranho em Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time. Quatorze anos atrasado, a realidade apocalíptica envolve o protagonista; enquanto nós, do outro lado da tela, mais de duas décadas após a estreia de Neon Genesis Evangelion, contemplamos o novo final para a história do anime, que há muito tempo demonstra nada ter a ver com um remake, afinal, o Rebuild é utilizado por um motivo.

Reconstruída em todos os possíveis âmbitos, a mais nova finalização traz uma visão de Tóquio-3 — assim como todo o seu mundo — completamente destoante daquilo que observamos em The End of Evangelion. Isso é trabalhado no filme a partir de uma espetacularização nunca antes vista nas obras dirigidas e escritas por Hideaki Anno, com direito a lutas intensas entre anjos e EVAs, estes que até mesmo manusearam os restos da Torre Eiffel como uma arma de combate.

A grande encenação, porém, não retira o protagonismo da abstração ferozmente colocada sobre a narrativa. Mesmo após diversos atos de violência e vandalismo sofridos pela produtora por parte de fãs frustrados com o fim do anime em 1996, a essência de Evangelion permanece imutável. Todas as agressões explicitamente expressadas em Thrice Upon a Time não têm como objetivo hiperestimular seu público, mas sim trazer à tona a verdadeira discussão da obra, explicada, com todas as letras, por Misato:

“Os ouriços têm dificuldade em compartilhar o calor com outros ouriços. Quanto mais perto eles chegam, mais se machucam com seus espinhos. As pessoas também são assim.”

 

Uma visão otimista

Apesar de parecer confuso, as cenas dolorosamente explícitas retratadas neste filme, ironicamente, trazem mensagens de paz e esperança: às vezes, a dor do crescimento pode ocasionar o apocalipse, mas a capacidade humana de reconstrução é tão intensa quanto o seu poder destrutivo. 

As explosões de sangue que mancham nossas telas e causam dores em nossos estômagos são a materialização da violência inerente às relações humanas mas, também, uma demonstração da nossa capacidade de renovação. Esperança, o fundamento do ser genérico, é aquilo que possibilita a imortalidade da nossa espécie por meio da sobrevivência e evolução.

Somos repletos de transformações que ocorrem constantemente em nossa volta e, principalmente, dentro de nós, todas compostas por degradações e reconstruções, por brutalidade e perseverança. E assim, Thrice Upon a Time é constituído, mostrando o contraste contínuo entre a morte e a vida, algumas vezes com cenas de massacre e outras com imagens belas de uma vila que remanescia ao Terceiro Impacto, permeando a vida humana.

Cena do filme Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time. Imagem da Asuka, usando um tapa olho e vestida com seu uniforme de pilotagem vermelho, azul, preto e verde, segurando um celular marrom em sua mão direita, enquanto encara-o séria. O cenário é constituído por um céu azul com algumas nuvens brancas.
Asuka é uma das personagem que melhor exemplificam o complexo do porco-espinho na vida de Shinji, já que eles têm um relacionamento extremamente conturbado em que um é destinado a torturar o outro, mesmo quando lutam contra isso (Foto: Amazon Prime Video)

O fim da obra-prima de Hideaki Anno é, primordialmente, uma batalha entre esperanças contrapostas em uma desesperada procura pelo amadurecimento. De um lado, Gendo Ikari, ao ter transcendido a humanidade, lutava pelo cessar dos espinhos e, com eles, da individualidade. De outro, a liderança ficava sobre Misato Katsuragi, compondo a resistência da nossa espécie que, mesmo imersa em um mundo dominado pelo mar vermelho (aquele que rejeita qualquer vida manchada pelo pecado inicial), permanecia forte. Ambos igualmente imortais.

Em uma entrevista, Daniel Oliveira Mayer — fã que busquei a fim de discutir as diversas teorias que o filme trouxe à tona — explicou que neste eterno looping entre o extermínio e o renascimento, estabelece-se o tempo cíclico dessa grandiosa obra. Assim, os filmes Rebuild aparentam ser a continuação do anime, alterando completamente a narrativa para um terceiro fim muito mais otimista em Thrice Upon a Time: o estabelecimento de uma realidade sem EVAs, criada a partir da inserção de Mari na história, quem deu luz a essa nova esperança. “The End of Evangelion é o final que o anime merecia, já o novo é o que ele precisava”, aponta, carinhosamente, Daniel.

 

Crescer é tão difícil quanto evitar o fim do mundo

Vamos para o que realmente importa” foram as palavras que brilharam nas telas daqueles que assistiam ao final do anime Neon Genesis Evangelion. Seguidas delas, surgiram cenas abstratas tratando com incômoda profundidade as mais íntimas angústias de Shinji. A produção da série estava passando por graves cortes financeiros e, por isso, precisou transmitir às pressas e com precisão a mensagem que propunha. Para o final, tudo o que importava era o protagonista.

Cena do filme Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time. Imagem de três homens, vestidos de macacões azuis e chapéus de palha, enquanto Rei Ayanami caminha atrás deles, com sua roupa preta e vermelha de pilotagem. No cenário, há o céu azulado e algumas vegetações.
Rei Ayanami é um clone da mãe de Shinji, construída por Gendo Ikari, que atua como uma figura materna para o protagonista, sendo extremamente alheia a sua individualidade e vivendo para servir aos outros (Foto: Amazon Prime Video)

Thrice Upon a Time tem muito a ver com esperança, como já venho comentando, mas, para além disso, aquilo que define o cerne de Evangelion é o processo de amadurecimento enfrentado pelo protagonista que, mais de uma vez, precisou destruir o mundo para, enfim, se reconstruir definitivamente neste último filme. Preferiria ele a dor dos espinhos ou o frio que passaria enquanto um ouriço solitário? 

Shinji Ikari sempre esteve disposto a fugir. Quando optava por aventurar-se, a dor do atrito de campos AT o mutilava. Então, neste último filme, quando quase causou mais um impacto e viu os interiores de sua paixão, Kaworu, explodirem diante dos seus olhos, escondeu-se por muito tempo para assimilar integralmente o ódio que sentia de si. Adotando completa passividade, deixou de se alimentar e entrou em estado de dormência. A partir de então, nem mesmo as mãos de Asuka empurrando alimentos para dentro de sua garganta foram capazes de despertar-lhe.

Sua vida retornou quando a de Rei chegou, mais uma vez, ao fim, de maneira cruelmente similar a de seu amado. Com gotas de sangue escorrendo pelas suas bochechas, Shinji acordou finalmente desvinculado de uma de suas figuras maternas, aceitando pela primeira vez a morte de sua mãe, assim como a das duas Rei Ayanami que passaram por sua vida. Dessa vez, porém, sabia precisamente quem era o autor dessas mortes e, então, levantou-se para cortar os laços com seu pai, o assassino.

“O Shinji poderia ter se tornado o pai dele, mas optou por não ser, mesmo tendo tudo para fazer o contrário”, explica Daniel. Somente com o embate direto, pai e filho conseguiram compreender-se e abraçar as crianças que habitavam ambos os Ikari para, enfim, amadurecer, Gendo com seu luto e Shinji com sua vida. Quebrando o complexo de Édipo, o protagonista escolhe preservar as individualidades e aceitá-las, reiniciando sua realidade. 

Nesse momento, a animação se transforma diante de nossos olhos, assim como o personagem, voltando ao rascunho e se reconstruindo em um mundo sem EVAs. Daniel sintetiza o sentimento em uma simples frase: “eu amo todos os personagens de Evangelion, mas também os odeio”, pois, neles, visualizamos tudo aquilo que nos torna humanos, cheios de dicotomias, ódio, amor, destruição e reconstrução.

O cuidado com cada detalhe simbólico é aquilo que torna Evangelion uma obra-prima, aproximando-a do íntimo de todo humano. A partir da migração para os estúdios Khara, esse filme foi repleto de investimentos e contou com a participação de grandes animadores, como Kazuya Tsurumaki, Katsuichi Nakayama e Mahiro Maeda, que permitiram revolucionar a arte visual do anime, trabalhando com uma incrível mistura entre técnicas bidimensionais e tridimensionais.

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