Vitor Evangelista
Jules é a personagem mais interessante de Euphoria. São muitos os fatores que confirmam essa máxima, e o principal deles recai no carisma de Hunter Schafer, a jovem modelo que debutou atuando na série da HBO. Podendo ser facilmente ofuscada pelo estrelato e pelo nome de Zendaya, ela construiu sua adolescente fragilizada pelas beiradas, sempre mostrada pelos olhos de Rue. Tanto é que, quando Euphoria transmitiu seu final de temporada, Jules saiu como a vilã da coisa toda.
Num mundo ideal sem a pandemia e os atrasos de gravação, o ano dois da narrativa lidaria com o pepino de prosseguir sua estreia fenomenal. Para isso, além da escrita e direção precisas de Sam Levinson, a série precisaria sair do comum e cortar sua trama na carne. Para sentirmos a ausência de Jules como Rue a sente, a produção deveria tirar Hunter de vista. O que não aconteceu, é claro que estamos longe de viver num mundo ideal.
Tendo estreado no meio pro fim de 2019, Euphoria conseguiu se manter na boca do povo. A produção da segunda temporada tinha data marcada para março do ano seguinte, mas o coronavírus estourou uma semana antes, acabando com quaisquer planos de capítulos inéditos no futuro próximo. Meses adentro da pandemia, Zendaya ganhou o Emmy de Melhor Atriz em Drama, dando mais fôlego para o seriado da HBO. Então, Levinson anunciou que lançaria dois episódios especiais de fim de ano, esses que funcionariam como uma ponte entre os anos 1 e 2.
Assim nasceu a melhor solução para, como dito acima, Euphoria sair do padrão comum e sangrar na carne, como já havia se acostumado na estreia. Solução essa na forma de Part 1: Rue e Part 2: Jules, opostos complementares e irmãos de alma, episódios inventivos, refrescantes, aterradores e bem bolados. Filmados na pandemia, provando que o essencial para uma história ser contada é ela ser realmente boa. Técnicas de escrita e filmagem foram usadas para driblar as limitações do isolamento, e Sam Levinson dirigiu dois domos artísticos que não poderiam ser mais distintos um do outro e, ao mesmo tempo, cruelmente similares.
Trouble Don’t Last Always, focado inteiramente na figura de Rue, surpreendeu pela clausura da dependência e da solidão. Os vícios da personagem foram estudados com lupa e microscópio numa lanchonete em pleno dia de Natal. Zendaya foi fundo na hora de canalizar a depressão de sua protagonista, atestando o talento que fez história no Oscar da TV, se tornando a mulher mais jovem a vencer a estatueta e apenas a segunda atriz negra a bater tal feito.
Mais de um mês depois do balde de água fria sentimental, Euphoria estreou Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob. Mas esse não se trata somente de uma ‘resposta’ à aventura de Rue, ou apenas um cumpre cota enquanto a pandemia continua degradando os Estados Unidos. Coescrito pela própria Hunter Schafer, o capítulo natalino de Jules é um exorcismo da primeira temporada e do julgamento com que a personagem arcava.
Tudo começou com Hunter dirigindo pelo país, exausta mental e fisicamente do isolamento social. Ela cogitou se internar numa clínica psiquiátrica, até que Sam Levinson sugeriu que eles escrevessem um roteiro de Euphoria no lugar. Ela aceitou sorrindo, como contou numa entrevista à Jimmy Fallon, dias antes da HBO exibir Part 2: Jules. Na mesma conversa, Schafer agradeceu à Shonda Rhimes e seu Grey’s Anatomy, que ajudaram-na no processo de escrita.
O título do capítulo vem de um poema que a atriz escreveu na adolescência, e toda a pegada da trama ressoa tons poéticos e latentes de uma alma desacordada e, ao mesmo tempo, enérgica. Jules está na terapia, é sua primeira consulta e ela hesita em se abrir com a mulher do outro lado da sala. Quando perguntada sobre o que a levou àquela posição, a câmera se desloca para filmar o reflexo nos olhos claros de Jules.
Vemos então, finalmente, o seu lado da história, mas com o toque gourmet de Euphoria. A cena bota Lorde pra tocar, e sua sombria Liability é que conduz os eventos do ano de estreia da série. A música é cantada na íntegra, cores nascem e morrem na íris da garota, Jules não abre a boca para falar um ‘a’ e mesmo assim entendemos tudo. Ela se considera um fardo, como a letra da neozelandesa martela, ela se vê quebrada, remendada, atropelada.
E, sem prometer nada, a série desata a nos justificar os comportamentos de Jules. Hunter Schafer se apossa dos close-ups, ela abraça a vulnerabilidade reprimida de todas as deixas que roteirizou junto de Sam Levinson. Se Part 1: Rue certificava o talento digno do Emmy de Zendaya, Part 2: Jules coloca Schafer no mapa, e ela veio para ficar. A personagem chora, grita, assente e consente com os temores que a pressionam cada vez mais para baixo. Ela só gostaria de ser o mar, esse é seu maior sonho, por mais distante que esteja.
Algo que transformou Jules num ícone instantâneo, fora as tendência de guarda-roupa e maquiagem, foi sua posição de personagens trans que não tinha um arco narrativo modelado em volta de sexualidade, aceitação ou incertezas. A questão de seu gênero ou preferência sexual quase não é verbalizada na série, o que chama atenção no aspecto narrativo e também no plano maior, reafirmando que é muito possível retratar minorias na TV sem prendê-las em labirintos limitadores.
E a vibe despojada de Jules se reflete piamente no ritmo de Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob, bloqueando a monotonia de ambientes únicos e da câmera transitando sem vigor. Assistimos flashbacks da primeira temporada sobre sua perspectiva, conhecemos momentos de seu passado antes de transicionar, suas questões com a mãe viciada e com o pai desesperado em remendar os buracos da família. Mas o melhor de tudo fica à cargo das fantasias de Jules.
Sua imaginação é a responsável por construir as sequências mais ferozes do capítulo, a fantasia do homem da internet, as cenas de intimidade e de prazer. A escalação de Jayden Marcos, ator de filmes pornográficos, apenas evidencia o caráter disruptivo da série de Sam Levinson, sempre interessada em trazer o bruto e o carnal para os holofotes, denunciando temas tabus no percurso. Ao lado das partes românticas e sexuais, as fantasias irreais de um futuro não tão próximo ao lado de Rue colocam Jules em uma posição melindrosa, de cautela e culpa.
A culpa, de fato, é o motor de Part 2: Jules. Fossilizando os medos, traumas, remorsos e atitudes da menina, ela própria se ataca involuntariamente. Algo diagnosticado logo de cara pela Dra. Mandy Weedman, papel de Lauren Weedman, que entrega todas as deixas para Schafer brilhar. O momento em que Jules admite querer parar com os hormônios e com os bloqueadores é equivalente à personagem se despir frente às câmeras. Ela não fica literalmente pelada (como faz alguns minutos depois no capítulo), mas admite que, para seguir em frente, ela precisa deixar parte da bagagem de pesar pelo caminho.
Se tratando do flamboyant de Jules, todos os aspectos construtivos do episódio despejam esse caminho para quem assiste. Os figurinos de cores lavadas são sinônimo de sobriedade e vulnerabilidade, ela não usa maquiagem e tem nos olhos uma tristeza transmissível. A câmera opera em respiros chorosos, vemos o mar de longe, vemos seus cabelos molhados, vemos-na deitada no meio de uma bagunça do quarto, vemos-na sentada com as pernas abertas. Pela primeira vez, entramos em contato com a Jules de verdade, sem camadas falsas, interpretações de mentira ou olhares moldados pelos homens. Apenas a Jules.
A trilha sonora é a vacina para o mal que assola a personagem e, se não a curar de fato, é o momento perfeito para criar seus anticorpos. Abrindo com o mais indefeso que Lorde ousou ser, somos transportados pelo vácuo sentimental de Lo Vas A Olvidar, parceria inédita de Billie Eilish e ROSALÍA, encomendada para o Especial de Euphoria. A composição é mestra em encontrar um intervalo entre pensamentos, com a voz das artistas se abraçando no exílio da felicidade. Perto do clímax, Part 2: Jules ainda dá voz à Arca e sua recém saída do forno Madre Acapella, uma graúda ópera moderna.
Euphoria está subindo pelas paredes, aguardando o momento seguro de voltar à grade de domingo à noite na HBO. Os episódios especiais mostraram ser tira gostos essenciais e muito bem cozinhados, mas ainda recheados de propósito. Se tratando de Sam Levinson, Zendaya e Hunter Schafer, nada é por acaso. Acompanhar o desenrolar de nós narrativos da primeira temporada serem corrigidos e desatados nos capítulos extras apenas atiça a curiosidade para o que está guardado para o futuro.
Trouble Don’t Last Always e Fuck Anyone Who’s Not A Sea Blob, acima de tudo, nos deram saudades do elenco de apoio que faz a série alcançar, semana após semana, seu máximo potencial. O atrevimento de Maddy (Alexa Demie), a fúria moral de Kat (Barbie Ferreira), os olhares complacentes de Lexi (Maude Apatow) e, Deus me perdoe, fez sentir falta até dos dramas, ataques e birras do rato do Nate (Jacob Elordi). Para os próximos meses, nos resta assistir às sessões de terapia que a série escreveu no Especial, enquanto lidamos com nossos próprios demônios, sejam eles palpáveis, como o vício de Rue, ou etéreos, como a resistência de Jules. Qualquer que seja o diagnóstico, com Euphoria estamos bem acompanhados.