“Quantos psicólogos me tomariam por louca se eu lhes dissesse que sou afetada pelo que acontece fora de mim? Que a aceleração do desastre me petrifica? Que tenho a impressão de não ter mais controle sobre nada?
– Nastassja Martin
Após acompanhar o melancólico Aos prantos no mercado, de Michelle Zauner, em Fevereiro o Clube de Leitura do Persona deu continuidade a nossa tradição de ler autoras – nesse caso, também com uma escrita melancólica. Escute as feras, de Nastassja Martin, foi a escolha da vez.
Mergulhando nesse relato autobiográfico, narrado e construído como um texto de ficção, Nastassja Martin nos prende do inicio ao fim em seu trágico relato de quando, durante uma pesquisa de campo, foi atacada por um urso e teve parte do rosto desfigurado. No entanto, a antropóloga entende que, em sua trajetória de cura, precisa perdoar o animal e retornar à vida.
No único encontro do Clube, aspectos da construção textual e uma possível ligação com a autossociobiografia de Annie Ernaux – sendo as duas autoras francesas – chamou a atenção. As referências culturais, antropológicas e místicas também foram abordadas: para alguns povos originários, os quais Martin estava se dedicando a pesquisar durante o ocorrido, ser atacado por um urso e sobreviver coloca o indivíduo em um estado de “entre-vida”, habitando duas dimensões simultaneamente – o texto da autora, que veio à Flip no final de 2022, se constrói um pouco nessa dimensão.
Enquanto os próximos conteúdos do mundo literário não chegam, o Estante do Persona de Fevereiro de 2023 segue com seus comentários e Dicas do Mês.
Livro do Mês
Nastassja Martin – Escute as feras (112 páginas, Editora 34)
A antropologia estuda o ser humano, suas origens e afirmação enquanto ser social, biológico e cultural. Para a antropóloga Nastassja Martin, a busca pelas respostas se alinhou a níveis acima do esperado. Viajando pelo leste siberiano para entender os costumes dos nativos evenki, a autora enfrentou um urso em um movimento que poderia ser descrito como um ataque, mas, ao longo do texto, a palavra se mostra um equívoco. Com a mandíbula despedaçada e o osso zigomático aos frangalhos, o rosto, vítima da mordida, se choca com uma verdade dolorosa: lutar com um urso parece um abraço quando comparado ao tratamento recebido dos próprios semelhantes.
Sentir a carne se desfazendo da própria face antecipa o movimento inesperado no qual o urso desiste de tê-la como presa. Sentido como uma quase empatia da parte daquele que chamam de fera, poupá-la tem um tom que foge à crueldade e é comparar isso com os eventos vividos depois da mordida que dão origem ao livro. Sendo cambaleada entre médicos e hospitais, a mulher assiste os profissionais da saúde em momentos de verdadeira selvageria, longe da tal habilidade pacificadora de conflitos supostamente detida por eles enquanto racionais.
É imerso nessa dualidade do ser e as reflexões do ponto que realmente diferencia os mamíferos chamados de homens dos demais, que Escute as feras se torna uma ruptura. Como uma epifania, a antropologia e a literatura se misturam em linhas descritivas e extremamente metafóricas para revelar que as verdadeiras feras são humanas. Virando a chave na cabeça de quem lê, Martin nos mostra que encontrar um urso pode não ser um sinal de azar.
Dicas do Mês
Franz Kafka – A Metamorfose (104 páginas, Companhia das Letras)
Ao despertar, Gregor Samsa nota uma metamorfose monstruosa ao observar seu corpo que, misteriosamente, havia perdido a humanidade. A narrativa da ficção kafkiana segue acompanhando a nova, drástica e angustiante rotina de Gregor, o jovem que teve sua dignidade roubada mas apenas conseguia se preocupar em não perder seu emprego e desapontar sua família.
A simbologia da obra pende para a comédia ao passo em que o protagonista se adapta ao novo corpo e começa a agir com uma normalidade quase absurda diante do acontecimento. É assim que Kafka retrata o processo de transformação até sua conclusão, no qual a individualidade de Gregor é retirada de si completamente e o, agora, inseto gigante, deixa de ser filho e irmão e se torna apenas um animal. – Amábile Zioli
Gabriel García Márquez – O Amor Nos Tempos do Cólera (492 páginas, Record)
O próprio autor já afirmava que “todo bom romance deveria ser uma transposição poética da realidade”. Nessa obra, Gabriel García Márquez condensa suas vivências amorosas, mesclando com a história de como seus pais se conheceram. O Amor Nos Tempos do Cólera aborda a jornada de Florentino Avina, um telegrafista, violinista e poeta que se apaixona perdidamente por Fermina Daza. Devido a proibição do pai da garota, Florentino passa dois anos trocando correspondências com ela, e após um último bilhete sem resposta pedindo sua mão em casamento, espera mais de meio século na esperança de reencontrar seu amor.
A obra é uma quebra de paradigmas no seu próprio gênero. Quando se fala no romance literário, automaticamente se lembra daquelas obras que colocam borboletas no estômago e te fazem querer amar ainda mais. Em O Amor Nos Tempos do Cólera, o amor é cru, é nu, melancólico, demorado, angustiante, frustrante, inconstante e até não garantido. Mas, acima de tudo, ele é humano e nos faz lembrar que amar nos torna mais humanos. – Guilherme Veiga
Sylvia Plath – A Redoma de Vidro (280 páginas, Biblioteca Azul)
Sylvia Plath consegue, dentro de todos os futuros que nunca serão vividos e de todos os projetos que nunca irão sair do papel, encontrar as exatas palavras para definir algumas angústias do próprio viver. Em um relato com muitas referências autobiográficas, A Redoma de Vidro, único romance da autora, é um mergulho em todas as pressões sociais, os julgamentos, as expectativas e os fracassos de uma jovem nos anos 60.
Publicado semanas antes de sua morte, em 1963, é importante ressaltar que a história de Esther pode gerar gatilhos sobre depressão e suicídio. Ler Sylvia Plath é como vislumbrar todo o seu interior: seus pensamentos, tormentos, críticas, medos e felicidades que todos nós, em algum momento, já experimentamos, mas que não conseguimos encontrar as palavras exatas para definir. – Clara Sganzerla
College Oakes – Rainha de Copas (216 páginas, Universo dos Livros)
Alice no País das Maravilhas é um clássico da literatura e reconhecido no mundo todo pelas aventuras mágicas vividas pela garota loira que caiu no buraco do coelho. Mas como era o País das Maravilhas antes da chegada de Alice? É exatamente isso que Rainha de Copas explora, a vida da princesa Dinah antes de se tornar uma vilã sedenta pelo corte de algumas cabeças. A história é sombria e familiar na medida certa, faz o leitor mergulhar nos novos desafios e mistérios que fizeram a garota desenvolver sua personalidade explosiva.
Uma das partes mais interessantes do livro é notar como personagens tão famosos como o Chapeleiro Maluco, o Gato de Cheshire e o Coelho Branco se desenvolvem nessa nova versão do universo de Lewis Carroll. Todos esses indivíduos têm características e vivências totalmente inéditas, mas suas personalidades marcantes se mantiveram presentes honrando a história original. Rainha de Copas é o primeiro livro de uma trilogia intensa que promete muitas reviravoltas e um novo ponto de vista do conto que encantou gerações. – Gabrielli Natividade
Dan Brown – O Código da Vinci (432 páginas, Arqueiro)
Vinte anos após sua primeira publicação, O Código da Vinci se mantém como uma das produções literárias mais polêmicas já produzidas. Descrita como um mistério, a obra mistura os traços investigativos a uma versão remodelada da história de Jesus Cristo. Enfrentar uma instituição com tanta força quanto a Igreja Católica foi uma escolha ousada da parte de Dan Brown, mas ainda assim atingiu o alvo com perfeição e, entre críticas e retaliações, o texto se destaca pelo seu tom questionador e certeiro.
Sob as artimanhas de um bom suspense, o livro nos conduz pelo desejo de resolver uma incógnita que se mostra muito mais extensa do que o esperado. Através das pistas escondidas em obras do Leonardo da Vinci, toda a construção do catolicismo se revira sobre linhas ocultas. Assim, Brown foge das cadeias simplistas de detetives com charutos e bloquinhos para repousar em uma linha ficcional que quase beira uma sociedade secreta, mas ainda guarda seus graus de coerência. Em O Código da Vinci, a maior obra de arte é a exposição do mais bem sucedido sistema de dominação social já visto: a igreja. – Jamily Rigonatto