“O amor é teatral, intui Scherezade, que, à mercê do Califa, jamais se apaixonou. O espectáculo amoroso, como o concebe agora, junto ao leito do Califa, requer ilusão, artifício, máscaras coladas aos rostos dos amantes enquanto copulam.”
Fechando as cortinas de 2022 com uma trajetória de leituras diversas e debates entusiasmados, o Clube do Livro do Persona encerrou o ano homenageando o legado de Nélida Piñon. A autora carioca publicou mais de 20 livros e foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL). Nélida faleceu em 17 de dezembro, em Lisboa, aos 85 anos, durante uma cirurgia de risco; seu corpo foi enviado ao Brasil para o sepultamento no Mausoléu da Academia.
“A maior escritora viva do país”, como afirmou Merval Pereira, presidente da ABL, Nélida Piñon foi pioneira na Academia, mas também no cenário literário nacional. A escritora se formou em Jornalismo, mas seguiu o caminho da Literatura: publicou Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, seu primeiro romance, em 1961, estreando uma trajetória próspera na ficção. Depois, a autora ampliaria ainda mais seus horizontes, explorando contos, ensaios, crônicas e livros de memórias, que, entre diferentes formatos, sempre perpassa por sua visão política e humanista do mundo, características que marcaram a carreira e as obras da carioca.
Em Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, Mariella, a protagonista, e o arcanjo Gabriel são colocados frente a frente para discutir a relação do homem com Deus, pecados e a existência de acordo com os dogmas católicos. O primeiro lançamento de Piñon já indicava para o que viria a oferecer: o caráter questionador se fez presente no restante da bibliografia da carioca, colocando personagens femininas no posto das indagadoras.
A Casa da Paixão, de 1972, confirmou a tendência transgressora de Nélida para a época. Na obra, Marta reflete acerca de suas vivências com o pai abusivo e a ama submissa, em um romance marcante pela forma como trata a sexualidade feminina. Aqui, a autora prova a busca pela renovação de sua própria linguagem, que persistiria no restante de sua carreira e tornou sua Literatura tão distinta e atual. O livro, considerado um dos melhores de Nélida Piñon, venceu o Prêmio Mário de Andrade.
Adiante, o romance Tebas do meu coração, de 1974, coloca personagens diversos em uma cidade do interior para construir uma crítica à rica e nada homogênea sociedade brasileira. Em A república dos sonhos, de 1984, Nélida novamente examina a composição social do país e seus processos de formação, agora sob a lente de imigrantes galegos chegando aos portos do Rio de Janeiro, como sua própria família uma vez fez. Nas obras, além de se aprofundar nas contradições de seus personagens, a escritora questiona o panorama social dos respectivos momentos, inclusive com duras críticas à repressão e à ditadura. Por A república, a brasileira venceu os prêmios de Melhor Livro do Ano de 1985 da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e do Ficção PEN Clube.
Pelo conjunto de sua obra, traduzidas para mais de 30 países, Nélida Piñon ganhou o Prêmio Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de Janeiro e do Conselho Estadual de Cultura, em 1990, e o Prêmio Bienal Nestlé na Categoria Romance, em 1991. Por Vozes do deserto, romance sobre a postura transgressora que uma mulher pode ocupar no sistema patriarcal em que vive, a autora recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Romance e na de Melhor livro do ano na categoria geral, em 2005.
Somando a sua carreira arrebatadora, Piñon assumiu a cadeira 30 na Academia Brasileira de Letras em 1986, sendo a primeira mulher a conquistar tal feito no Brasil e no mundo, segundo a ABL. Ela sucedeu o crítico literário e ensaísta Aurélio Buarque de Holanda. Agora, a cadeira que marcou a história de Nélida e da Literatura brasileira entrará em disputa a partir de Março – esperançosamente, passando para uma mulher igualmente de referência no cenário literário e cultural nacional.
Concluindo 2022 com um leque diverso de obras literárias discutidas, a Editoria relembra suas referências. Agora, você confere as leituras de final de ano indicadas no Estante do Persona.
Livro do Mês
Nélida Piñon – Vozes do Deserto (400 páginas, Record)
Publicado em 2004 e vencedor do prêmio Jabuti de 2005 nas categorias de Melhor Romance e Livro do Ano, Vozes do Deserto, de Nélida Piñon, retoma, como um mito, uma das mais célebres histórias da Literatura: As mil e uma noites. Para salvar as futuras jovens das garras do poderoso Califa – que, inconformado pela traição da antiga esposa, casa-se todos os dias com uma jovem do reino para matá-la após a noite de núpcias –, Sherazade decide se casar com esse ser “desprezível”, prendendo-o através de suas histórias, determinada que o fim de sua imaginação e liberdade jamais seriam controladas por alguém.
De forma interessante, o romance mostra o domínio narrativo de Piñon ao evocar o cuidado na escolha das palavras, em que apodera-se da história original apenas como pretexto para narrar a situação da mulher no mundo contemporâneo. Dessa maneira, através da protagonista feminina mais famosa da Literatura universal, a intenção é elucidar e propulsionar seu protagonismo, bem como a importância do papel da fantasia na vida humana, criando uma linda metáfora sobre a resistência.
Dicas do Mês
Craig Thompson – Retalhos (592 páginas, Quadrinhos na Cia)
Retalhos – traduzida no Brasil por Érico Assis – é a autobiografia do autor e ilustrador Craig Thompson. Na história, o leitor embarca em uma viagem pelas partes mais íntimas e singulares do protagonista de maneira sensível e avassaladora. Entre os traços em preto e branco, a vivência do personagem em Wisconsin, nos Estados Unidos, é explorada a partir das relações que o marcaram ao longo da vida. As peças se desmontam na criação rígida e na opressão familiar, no afastamento com o irmão, na convivência dentro da escola, na religião e até em um relacionamento amoroso.
É no primeiro amor que as cenas se tornam um pouco mais doces, com Raina – a garota que poderia ser um antônimo de Thompson –, o personagem se permite ousar e se desamarrar de certos nós. O relato é um misto doloroso de como a existência pode ser cruel e ao mesmo tempo deixar tantos aprendizados. Ao fim, todos os retalhos – sejam rasgados ou imaculados – formam o que há de mais singular no mundo: o próprio ser. – Jamily Rigonatto
Camille DeAngelis – Até os ossos (296 páginas, Suma)
Maren quer ser uma adolescente normal com um vida igualmente comum, mas não consegue desviar de seus instintos canibais. Quando é abandonada pela mãe e decide rumar ao norte do país para, sozinha, encontrar o pai, conhece Lee, um jovem com quem divide semelhanças. Em Até os ossos, publicado em 2015 e que rendeu uma adaptação cinematográfica homônima dirigida por Luca Guadagnino, o coming of age canibal de Camille DeAngelis mergulha nas camadas mais profundas da mente de Maren e vai além do horror para pincelar os anseios mais genéricos e universais de jovens adultos.
Anseios esses que nada têm a ver com o canibalismo. Apesar do fator efetivamente mover a narrativa, levando Maren e Lee de uma ponta a outra dos Estados Unidos e chamar a atenção para a produção como um todo (ambas a literária e a cinematográfica), os peculiares hábitos alimentares dos dois servem mais como um subtexto. Juntos, o casal desvenda a solidão, amor e amizade, avalia o futuro e a ética versus necessidade do que fazem, enquanto embarcam em uma aventura na caminhonete de Lee. Para eles, há futuro que não seja fugindo de cidade em cidade ou estão condenados a sobrevivência por se renderem aos seus instintos? Como qualquer jovem adulto, Até os ossos continua, sem chegar a uma resposta definitiva. – Vitória Gomez
Ana Claudia Quintana Arantes – A morte é um dia que vale a pena viver (192 páginas, Sextante)
Em A morte é um dia que vale a pena viver, quem narra a história é uma médica especializada em cuidados paliativos: Ana Claudia Quintana Arantes traz parte de sua jornada profissional em busca de uma reflexão sobre a morte e o medo que a cerca. Em uma sociedade que vê o óbito como fim absoluto, a profissional explicita as dificuldades que sofreu até se encontrar em sua individualidade – lidar com o falecimento nunca foi algo fácil, mas, na profissão escolhida, que outra opção ela tinha?
Aprender a enxergar a vida – ou a sua antítese – com outros olhos foi o caminho que Ana preferiu seguir. Contando suas vivências pessoais e profissionais, a doutora mostra o quão importante é a valorização da morte, o direito do indivíduo de partir com dignidade e a minimização do sofrimento de quem vai e de quem fica com a dor da despedida. A forma com que Ana trata do assunto, ainda considerado um tabu, é admirável – compartilhando casos de alguns pacientes, o objetivo principal é concluído: causar ponderação sobre o que ainda aflige grande parte da população e a busca pelo propósito de vida de cada um. Tomara que, quando acabar de ler, veja o fim de seu ciclo na Terra de uma forma diferente. – Amábile Zioli
Nicholas Pileggi – Os Bons Companheiros (271 páginas, Darkside)
Amplamente conhecido nas telas, a versão literária de Os Bons Companheiros também nasceu um clássico. Nela, acompanhamos a história de Henry Hill, um jovem garoto americano com descendência italiana e irlandesa que começa a fazer parte do dia a dia de uma máfia de seu bairro. Após 3 décadas convivendo com a família Lucchese, uma das cinco famílias que comandavam Nova York no século passado, Hill é preso por tráfico e entra no Programa Federal de Proteção à Testemunha, onde decide contar sua vivência para o jornalista Nicholas Pileggi, conhecido pelo seu trabalho cobrindo o mundo do crime organizado e da máfia.
A obra é um retrato extremamente fiel das máfias que dominaram os Estados Unidos no século XX. Além de abdicar de todo o glamour característico desses grupos, a narrativa é contada pelo ponto de vista de alguém vindo de fora, que aos poucos subiu nos negócios da família e conhece todos seus meandros e corrupções. Extremamente brutal e visceral, o livro passeia pela violência, loucura, golpes, roubos e relações familiares de maneira fascinante e instigante, quase que nos inserindo e nos tornando parte da família Lucchese. – Guilherme Veiga
Jane Austen – Orgulho e Preconceito (421 páginas, Martin Claret)
Orgulho e Preconceito é um clássico da literatura inglesa e o favorito de muitos – não por acaso, o livro, apesar de escrito no século XIX, é bastante visionário em algumas de suas pautas. A história foca principalmente em Elizabeth Bennet, uma das muitas filhas de uma família pobre, que sofre pressão da sociedade por já ter passado da idade casadoura. Lizzie é um exemplo e uma heroína para as mulheres e meninas da época porque em nenhum momento se obriga a acatar as regras patriarcais se submetendo a um homem e casando contra a sua vontade.
A mulher encontra seu interesse romântico ao longo da história: Senhor Darcy, um homem muito rico que também se interessa por ela. Os dois passam pelos seus próprios desafios pessoais para lidarem com seus sentimentos. Lizzie precisa passar por cima de seu orgulho para aceitar se relacionar e Darcy, superar seu preconceito para se juntar a uma companheira que vem de uma família pobre. Eles são diferentes, mas ao mesmo tempo similares e se complementam. Orgulho e Preconceito vai muito além de uma história de amor, é a narrativa de dois personagens que se esforçaram para sair de suas zonas de conforto e crescer como pessoas sem abandonar seus ideais. – Gabrielli Natividade
Pedro Bandeira – A Droga da Obediência (192 páginas, Moderna)
Existem livros que são eternamente marcados pela presença praticamente obrigatória na grade escolar e, na maioria das vezes, o que é uma tentativa de introduzir a literatura no cotidiano dos jovens estudantes, acaba se transformando na experiência nada agradável de se esforçar somente em busca de um boletim mediano. Contrariando o senso comum, A Droga da Obediência de Pedro Bandeira é aquela narrativa que encanta de primeira e te faz acreditar que todas as outras podem ser tão divertidamente viciosas como ela.
Publicado em 1984, o livro A Droga da Obediência segue os protagonistas na aventura de impedir o Doutor Q.I, vilão que deseja dominar o mundo com uma droga que causa a obediência. Miguel, Calú, Crânio, Chumbinho e Magri compõem o grupo que é “o avesso dos coroas, o contrário dos caretas”. Rebelde com o papel e o lápis na mão, Pedro Bandeira criou um clássico em meio as seis obras que fazem parte da coletânea investigativa Os Karas. – Nathalia Tetzner
Chico Felitti – Rainhas da noite (256 páginas, Companhia das Letras)
Quando se dedicou à confecção de Ricardo e Vânia, Chico Felitti mergulhou no mundo queer da São Paulo de décadas atrás. A maturidade e o extenso material na manga fazem com que Rainhas da noite chegue aliado ao pedigree do dono do podcast mais badalado do ano passado (também interessado em cavucar as minúcias de uma cidade em ebulição e seus residentes). As protagonistas da vez são três mulheres de pose e poder: acompanhando as jornadas e o amadurecimento de Jacqueline, Andréa e Cristiane, o leitor embarca nas sensações de um mundo passado, mas em demasia presente no cotidiano do Brasil.
Amplificando a voz de mulheres trans e travestis, pioneiras e verdadeiras ícones da comunidade LGBTQIA+, o livro investiga, suscita questões e problematiza o ecossistema da prostituição e dos jogos de poder da cidade que insiste em nunca dormir e virar o rosto para a parcela mais marginalizada de sua sociedade. Emocionante, elucidativo, grandioso, complexo e humano, o livro de Felitti, que nasceu como audiobook na voz de Renata Carvalho, ressuscita os sonhos e os amores dessas e de tantas outras figuras, apagadas à força, mas que, em trabalhos de memória e amor como este, aos poucos retornam aos lugares de direito. – Vitor Evangelista
Thiago Camelo – Dia Um (208 páginas, Companhia das Letras)
“Ele de costas, a porta batendo – essa é a última imagem que você tem de seu irmão”, escreve Thiago Camelo nas primeiras páginas de Dia Um. No livro, narrado em segunda pessoa, “você” é parte fundamental da história. Entender os motivos que levaram o irmão mais velho do protagonista a pular de um apart-hotel em Copacabana, desvendar as memórias e a tentativa de superação são essenciais neste que é o primeiro romance de Camelo. Com força e linguagem fascinantes – em parte porque o autor é também poeta –, a obra mantém o impacto da primeira à última passagem.
O mecanismo de utilizar a voz em segunda pessoa aponta para dois caminhos: 1) rememorar e entender o que levou o irmão a se suicidar, voltando ao passado; 2) desmembrar a vida fraturada daqueles que permanecerem. “Você”, levado pelo narrador a uma viagem no tempo, é a única pessoa presente em ambos os cenários. Porém, o narrador é também um indivíduo em depressão, e os relatos pouco confiáveis – como se pode sempre esperar na ficção – aludem a sua própria condição, agravada na morte do parente próximo.
As “memórias ficcionais” dessas páginas em muitos aspectos lembram as narradas em Erguei bem alto a viga, carpinteiros & Seymour: Uma Introdução, de J.D. Salinger, em que acompanhamos Buddy Glass tentando desvendar o sucídio do irmão genial, Seymour. A grande ponte entre essas obras, porém, é que ambos constroem uma narrativa na qual o protagonista parte em uma busca errática desde sua origem, tentando dar voz a uma consciência alheia. Dessa forma, o pulo do irmão mais velho é contrastado pela inflexão do irmão mais novo, que relembra a vida solar e os momentos gloriosos que compartilharam, nos fazendo contemplar aqueles segundos eternos por páginas a fio. Em Dia Um, há uma viagem pelo luto e pela depressão, narrados com delicadeza e paixão, na qual tudo se transforma em metáfora. – Bruno Andrade