Estante do Persona – Abril de 2022

Arte retangular de cor rosa pastel. Ao centro há uma estante branca com três prateleiras. A primeira prateleira é dividida ao meio, a segunda prateleira é dividida em três e a terceira prateleira é dividida em três. Na parte superior lê-se em preto 'estante’, na primeira prateleira lê-se em preto 'do persona', à direita nessa prateleira está a logo do Persona, um olho com íris magenta. Na segunda prateleira, ao meio, está a capa do livro “A estrutura da bolha de sabão”. Na terceira prateleira, à direita, está o troféu com a logo do persona. Na parte inferior lê-se em branco ‘abril de 2022'.
Em abril, o Clube do Livro do Persona se debruçou sobre os conscientes e inconscientes da antologia de contos A Estrutura da Bolha de Sabão, da eterna Dama da Literatura brasileira, Lygia Fagundes Telles (Foto: Reprodução/Arte: Ana Clara Abbate/Texto de Abertura: Jamily Rigonatto)

“Aprendi desde cedo que fazer higiene mental era não fazer nada por aqueles que despencam no abismo. Se despencou, paciência, a gente olha assim com o rabo do olho e segue em frente.”

– Lygia Fagundes Telles

O mês de Abril de 2022 marca a data de falecimento de Lygia Fagundes Telles, uma das maiores escritoras do país. A autora é considerada uma referência na Literatura pós-modernista, e usou as vozes de personagens femininas e suas múltiplas nuances como protagonistas em muitos de seus escritos. Lygia foi a terceira mulher a ocupar uma cadeira na ABL (Academia Brasileira de Letras), recebeu o Prêmio Camões em 2005 e chegou a ser a primeira mulher brasileira indicada ao Prêmio Nobel de Literatura, aos 96 anos de idade. 

Ciranda de Pedra, Verão no Aquário, As Meninas e Seminário dos Ratos são alguns dos títulos mais conhecidos da escritora, e apesar de sua destreza como romancista, os contos foram o grande destaque de sua carreira. Diante da grandeza de Lygia Fagundes e seu recente falecimento, a atual leitura do Persona não poderia ser diferente. Por isso, o escolhido da vez foi o compilado de contos A Estrutura da Bolha de Sabão. Publicado pela primeira vez sob o nome de Filhos Pródigos em 1978, o livro junta oito contos narrados por personagens variados, em que a grande brincadeira fica por conta das transições entre realidade e pensamento. 

No único encontro do mês, os membros do Clube discutiram as entrelinhas do texto e tentaram desvendar os encantos por trás do ar enigmático da linguagem utilizada pela autora. Entre os comentários, a sutileza ao emparelhar o intrínseco dos personagens e o mundo externo a suas individualidades, os leitores do Persona destacaram a objetividade com a qual Lygia especulava a complexidade humana. 

A capacidade de organizar as palavras como charadas condutoras de uma narrativa particularmente imprevisível e aberta a tantas possibilidades também foi um dos destaques da discussão. Além disso, as reflexões sobre o fator que unia tantas histórias diferentes em um produto só deu espaço para os leitores criarem suas próprias teorias. E seja pela tensão que ronda as relações interpessoais e intimistas ou pela certeza dos desenlaces decepcionantes, a conclusão foi que, se Lygia descobriu os segredos da estrutura da bolha de sabão, ela não pretendia deixá-la às claras. 

A política e discussões socioculturais abraçadas pela obra não foram esquecidas, e os retratos de conflitos, preconceitos e desigualdade reafirmaram a imagem de uma autora ousada e sabiamente desafiadora. Ainda, a leitura de A Estrutura da Bolha de Sabão resgatou nas memórias as narrativas de Hilda Hilst e Clarice Lispector, mostrando como mesmo seus pontos em comum se exprimem com uma singularidade incomparável.  

A leitura do mês expulsou a temida Lygia dos vestibulares e deu a sua obra um passe para a imortalidade. Nesse cenário tomado por despedidas e eternização, a Literatura não pretende deixar saudade, então fique agora com as indicações dos membros do Clube do Livro para o Estante do Persona de Abril.

Livro do Mês

Capa do livro A Estrutura da Bolha de Sabão, de Lygia Fagundes Telles. Na imagem, vemos diversas formas geométricas coloridas, que se sobrepõem. As cores predominantes são verde, rosa, azul, branco e amarelo. Existem quatro flores desenhadas à direita. Abaixo, mais à esquerda, está um retângulo vertical de cor branca. Dentro dele, está escrito Lygia Fagundes Telles, em fonte de cor preta, abaixo está escrito A estrutura da bolha de sabão, em fonte de cor rosa, seguido pela palavra contos, em fonte de cor cinza. Mais abaixo, ainda dentro deste retângulo e de forma centralizada, está o logo da editora Companhia das Letras.
Na obra, Lygia Fagundes Telles retrata a vida como algo frágil, fugaz e misterioso, tal qual uma bolha de sabão (Foto: Companhia das Letras)

Lygia Fagundes Telles – A Estrutura da Bolha de Sabão (184 páginas, Companhia das Letras)

A Estrutura da Bolha de Sabão é uma coleção de contos da escritora símbolo do movimento pós-modernista, Lygia Fagundes Telles. Guiada por um clima de tensão, não há como relaxar durante a leitura que se faz genialmente desconfortável a todo o momento. Publicada pela primeira vez em 1978 sob o título Filhos Pródigos, a obra ganhou o nome do seu conto homônimo para o relançamento em 1991. Àquela época, o texto que encerra a seleção já havia se tornado um destaque na carreira de Telles. 

Se a dama da literatura brasileira é uma romancista realista, quando ela se apropria da persona contista, não falta espaço para o fantasioso. Afinal, nos oito contos, através da sua constante abordagem da consciência humana, a autora aproveitou para usufruir sem medo algum do intenso fluxo de pensamentos das personagens. Para além, a sua característica visão sobre as grandes cidades e os vícios que acarretam a humanidade permaneceu singular e atraente para o leitor, sem esquecer da tradicional sinestesia da cor verde que marcou presença em alguns trechos do livro.

“Não conte a ninguém, mas descobri, a bolha de sabão é o amor.” Lygia Fagundes Telles nos deixou no mês de abril e, assim como ela demorou para compreender a existência de um físico que estudava a bolha de sabão, há ainda muito a desvendar sobre uma das autoras mais importantes que o Brasil já teve. Se A Estrutura da Bolha de Sabão significa algo, esse algo é a infinitude e a eternidade do poder de suas palavras que causam sentimentos tão fortes quanto o amor.


Dicas do Mês

Capa do livro A Construção de Mim Mesma. A capa é branca e tem uma borboleta roxa no centro. No topo da imagem, lemos o nome da autora, Letícia Lanz, e abaixo da borboleta está o título do livro: A Construção de Mim Mesma. Abaixo, está o subtítulo, em fonte menor: Uma história de transição de gênero. Abaixo, vemos o logo da editora Objetiva.
Autora de A Construção de Mim Mesma, Letícia Lanz é psicanalista, palestrante, ativista e foi candidata à prefeitura de Curitiba em 2020 (Foto: Objetiva)

Letícia Lanz – A Construção de Mim Mesma (112 páginas, Objetiva)

Um dos nomes de maior relevância para a comunidade trans no Brasil, Letícia Lanz decide por contar sua própria história no sincero A Construção de Mim Mesma. Com o subtítulo Uma história de transição de gênero, a obra de não-ficção transita entre o espaço e o tempo para que Letícia, uma mulher já na terceira idade, se apresente ao mundo da maneira que sempre o fez no individual.

A honestidade se junta à brevidade da escrita da autora, sempre buscando situar quem lê na mente de alguém que nasceu em estado de discordância do gênero a que foi atribuída no nascimento. Do apoio que recebeu da esposa até a parceria que firmou com diversas amigas da comunidade queer, Lanz faz sua rede de apoio se estender para além das páginas. – Vitor Evangelista


 Imagem da capa do livro O Escaravelho do Diabo. A arte de capa consiste em um fundo amarelado na parte superior e em um fundo verde a partir do meio da altura do livro. No fundo amarelado na parte superior, está escrito o nome da escritora, Lúcia Machado de Almeida, seguido do título da obra, O Escaravelho do Diabo. Ambos os nomes estão em caixa alta na cor verde. No fundo verde a partir do meio da altura do livro, está um desenho de um besouro de cor vermelha. Na parte inferior do livro, também de fundo verde, estão localizados os logos da Editora Ática em tom amarelado.
O Escaravelho do Diabo foi adaptado para as telas do Cinema em 2016 (Foto: Editora Ática)

Lúcia Machado de Almeida – O Escaravelho do Diabo (128 páginas, Ática)

Nos meados da década de 70, a Editora Ática lançou no Brasil a Coleção Vaga-Lume, uma série de livros voltada para o público infantojuvenil. Facilmente reconhecidos pelas artes de capa emolduradas, grande parte dos títulos se tornaram clássicos que marcaram gerações. Entre eles, O Escaravelho do DiaboI, da autora mineira Lúcia Machado de Almeida, foi e ainda é um dos principais responsáveis por despertar o interesse pelo suspense policial na literatura nacional.

Ambientada em uma pequena cidade do interior, a narrativa sobre a sequência de assassinatos de pessoas ruivas e a sua relação com besouros é repleta de mistério. Por se tratar de uma obra de leitura simples e por marcar presença nas estantes de leitura jovem das bibliotecas, O Escaravelho do Diabo sempre entrou em contato com os leitores mais precoces. Por isso, não é exagero admitir que os escritos de Almeida formam e ensinam desde a sua primeira publicação. – Nathalia Tetzner


Reprodução da capa do livro As coisas de Tobias Carvalho. A capa é de um vermelho escuro e, por apenas um traço fino e preto, se forma um desenho de um rosto. Acima do título, que encontra-se no centro da capa, em letras brancas, encontra-se o nome do autor, escrito também em branco. Abaixo, informa-se que é um livro de contos e sua vitória no Prêmio Sesc de Literatura 2018. No canto inferior direito, o selo do Grupo Editorial Record.
As Coisas, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, tece, em inúmeros fios, as aventuras de homens gays na vivência do desejo e da identidade (Foto: Grupo Editorial Record)

Tobias Carvalho – As Coisas (144 páginas, Record)

O livro de estreia do porto-alegrense Tobias Carvalho é uma abertura ao universo de encontros e desencontros de seus personagens, homens gays, moradores de Porto Alegre e engajados na negociação de suas afetividades na internet. Em seus contos, Carvalho traz momentos da vida cotidiana enclausurados em texto, levando o leitor até mesmo a se perguntar o que ocorreu realmente ao autor ou o que foi simplesmente uma conversa de bar guardada com um preciosismo digno de um item de colecionador.

Em As Coisas, o que pulsa é a vida desses homens em relação ao mundo exterior que os abraça e hostiliza simultaneamente. Desde uma discussão de relacionamento em mensagens de texto a sucessivas transas mediadas pelo Grindr em um dia de tédio, as experiências gays são contempladas e esmiuçadas como pequenas joias de uma realidade muitas vezes escondida na Literatura queer, que parece ainda negar as formas que pessoas homossexuais se relacionam fora da ficção, assim construindo a mesma e velha estória amparada na descoberta sexual e do jogo sedutor do sigilo. – Enzo Caramori


Capa do livro Cartas de Amor aos Mortos. A capa apresenta um degradê de cima para baixo com as cores preto, azul escuro, tons de azul mais claro, roxo, lilás e coral. Entre as cores aparecem nuvens esbranquiçadas e estrelas de tamanhos variados, representando o céu. O título está centralizado e as palavras “Cartas”, “Amor” e “Mortos” tem fontes maiores em relação às outras. “Mortos” está grafado na cor preta e há uma menina sentada na primeira letra O com os pés apoiados na letra T, ela veste uma camiseta com short jeans e está escrevendo em um caderno. Na porção inferior da capa aparece o nome da autora e a editora, já na porção superior há um pequeno texto com a opinião de Stephen Chbosky sobre o livro.
“Ninguém pode salvar ninguém, não de verdade. Não de si mesmo” (Foto: Editora Seguinte)

Ava Dellaira – Cartas de Amor aos Mortos (344 páginas, Seguinte)

Publicado em 2014, Cartas de Amor aos Mortos é o romance de estreia da norte- americana Ava Dellaira. Escrito em narrativa epistolar, o texto nos guia pelas palavras de Laurel, uma adolescente desestabilizada lidando com o luto gerado pela misteriosa morte de sua irmã mais velha, May. Tentando se reinventar, a protagonista começa o Ensino Médio em uma escola nova, e em suas aulas de Inglês recebe a curiosa tarefa de escrever uma carta para um morto.

Motivada pela atividade, Laurel passa a escrever cartas para artistas como Kurt Cobain, Janis Joplin, Heath Ledger, Judy Garland, Elizabeth Bishop e Amy Winehouse. Escrever para os mortos se torna um portal, não um que desvenda os segredos da morte, mas que guarda os da vida. Entre questionamentos sobre a trajetória das celebridades e reflexões geradas pelo seu próprio dia a dia, cada carta revela uma parte do consternante amontoado de angústias residentes na personagem. 

Enquanto dedica seus monólogos letrados a uma celebridade ou outra, Laurel mostra a verdade, e seus medos, inseguranças, traumas, amores e individualidade ganham espaço nas grafias. Assim, dos dramas às conquistas, a autora entrega uma descrição moldada por palavras tão sinceras e palpáveis que permitem ao leitor a experimentação mais genuína e aflitiva da empatia. Em suma, Carta de Amor aos Mortos é apaixonante ao destrinchar a controversa dor do amor. – Jamily Rigonatto


Capa do livro Barba ensopada de sangue. Na imagem, há um fundo vermelho com pequenas manchas em cor branca, simulando fios de barba. À direita, está escrito “Barba ensopada de sangue” em fonte de cor branca. Abaixo, está o logo da editora Companhia das Letras, em fonte de cor branca, e à esquerda está escrito “Daniel Galera”, também em fonte de cor branca.
Barba ensopada de sangue é o 4º romance de Daniel Galera, e completa 10 anos em Maio de 2022 (Foto: Companhia das Letras)

Daniel Galera – Barba ensopada de sangue (424 páginas, Companhia das Letras)

Nascido em São Paulo, mas radicado em Porto Alegre, Daniel Galera foi um dos fundadores da editora Livros do Mal (2001-2004) – junto a Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Além de escritor de fôlego, é também ensaísta e tradutor literário, tendo vertido para o português obras de David Foster Wallace, Zadie Smith e Chris Ware. Em Barba ensopada de sangue – seu quarto e premiado romance, que completa 10 anos de lançamento em 2022 –, acompanhamos um protagonista sem nome (por vezes chamado de “nadador”), um professor de Educação Física que, após o suicídio do pai, se muda para Garopaba, cidade litorânea de Santa Catarina. 

Esse personagem possui uma condição: não é capaz de memorizar faces. Dessa forma, se esquece também de suas próprias feições, percebendo posteriormente que são similares à do seu avô, assassinado no passado, cujas circunstâncias do crime seguem obscurecidas. Ao estilo das obras de Cormac McCarthy, vagamos através da história como espectros, guiados por narrações em terceira pessoa e diálogos reveladores. 

Em alguns momentos, a observação excessiva sobre pequenos detalhes reafirma a condição do protagonista – única voz que nos apresenta a narrativa –, evidenciando aquilo que ele próprio vê: um emaranhado de acontecimentos cometidos por pessoas sem rosto, lembradas por seus gestos e particularidades. Barba ensopada de sangue é potente ao revelar as diversas situações e condições que se somam para constituir a identidade, além de apontar para uma certa hereditariedade de acontecimentos que sucedem nossas vidas. – Bruno Andrade


Capa do livro O Observador no Escritório, de Carlos Drummond de Andrade. A imagem tem fundo branco, que recebe uma fotografia em preto e branco do autor, ocupando a metade inferior da capa. Ele é um homem branco, usa óculos grossos arredondados e um terno escuro. Carlos está sentado à frente de uma mesa, com as mãos repousadas sobre uma máquina de escrever. Ele olha para o lado direito, fora da imagem. Na linha superior, está escrito o nome do livro, em fonte simples e caixa alta, num tom de verde médio. Embaixo do título, está o nome do autor, no mesmo estilo de fonte, porém em preto. No canto inferior direito da capa, existe o logo da editora, também em preto sob o fundo branco.
Reza a lenda que por pouco os diários pessoais de Carlos Drummond de Andrade perderam-se para sempre antes de se transformarem no livro lançado em 1985, sendo um alvo desejado e material quase findado pela tesoura crítica do autor (Foto: Companhia das Letras)

Carlos Drummond de Andrade – O Observador no Escritório (272 páginas, Companhia das Letras)

A medida que os fantasticamente ordinários contos de A Estrutura da Bolha de Sabão eram manifestos na linguagem crua e radical de Lygia Fagundes Telles, o fundo bruto de realidade da Dama da Literatura brasileira parecia evocar uma aproximação com a capacidade analítica criativa do nosso poeta de sete faces. O fenômeno ainda está em fase de compreensão, mas para compor a mais recente Estante do Persona, não pude deixar de atender ao clamor de Carlos Drummond de Andrade e de sua obra diarista, que ao construir suas observações de mundo com a perspicácia de sempre e um humor refresco, se coloca, de uma forma intrigante e bem específica, mais uma vez ao lado de sua querida parceira modernista com O Observador no Escritório.

É fato que a amizade entre Telles e Drummond já detém – literalmente – a licença poética necessária para esse tipo de referência. Mas algo especial acontecia quando Carlos encerrava seu hábito de tomar notas pessoais, mantido desde 1943, em setembro de 1977 – dez anos antes de sua morte e um ano antes do lançamento da referida obra de Lygia. Ela, emergindo suas palavras nas camadas profundas das relações humanas, recorria à ficção. Ele, atento e envolvido em um período de intensas mudanças no país, se encarregava de retratá-lo com sinceridade e riqueza de linguagem. E quando um dos auges da ficcionalização dela se relaciona com o centro da realidade dele, o resultado é um daqueles eventos celestes tão estrondosos quanto misteriosos, que só o universo da Literatura pode conceber. – Raquel Dutra 

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