“Aprendi desde cedo que fazer higiene mental era não fazer nada por aqueles que despencam no abismo. Se despencou, paciência, a gente olha assim com o rabo do olho e segue em frente.”
– Lygia Fagundes Telles
O mês de Abril de 2022 marca a data de falecimento de Lygia Fagundes Telles, uma das maiores escritoras do país. A autora é considerada uma referência na Literatura pós-modernista, e usou as vozes de personagens femininas e suas múltiplas nuances como protagonistas em muitos de seus escritos. Lygia foi a terceira mulher a ocupar uma cadeira na ABL (Academia Brasileira de Letras), recebeu o Prêmio Camões em 2005 e chegou a ser a primeira mulher brasileira indicada ao Prêmio Nobel de Literatura, aos 96 anos de idade.
Ciranda de Pedra, Verão no Aquário, As Meninas e Seminário dos Ratos são alguns dos títulos mais conhecidos da escritora, e apesar de sua destreza como romancista, os contos foram o grande destaque de sua carreira. Diante da grandeza de Lygia Fagundes e seu recente falecimento, a atual leitura do Persona não poderia ser diferente. Por isso, o escolhido da vez foi o compilado de contos A Estrutura da Bolha de Sabão. Publicado pela primeira vez sob o nome de Filhos Pródigos em 1978, o livro junta oito contos narrados por personagens variados, em que a grande brincadeira fica por conta das transições entre realidade e pensamento.
No único encontro do mês, os membros do Clube discutiram as entrelinhas do texto e tentaram desvendar os encantos por trás do ar enigmático da linguagem utilizada pela autora. Entre os comentários, a sutileza ao emparelhar o intrínseco dos personagens e o mundo externo a suas individualidades, os leitores do Persona destacaram a objetividade com a qual Lygia especulava a complexidade humana.
A capacidade de organizar as palavras como charadas condutoras de uma narrativa particularmente imprevisível e aberta a tantas possibilidades também foi um dos destaques da discussão. Além disso, as reflexões sobre o fator que unia tantas histórias diferentes em um produto só deu espaço para os leitores criarem suas próprias teorias. E seja pela tensão que ronda as relações interpessoais e intimistas ou pela certeza dos desenlaces decepcionantes, a conclusão foi que, se Lygia descobriu os segredos da estrutura da bolha de sabão, ela não pretendia deixá-la às claras.
A política e discussões socioculturais abraçadas pela obra não foram esquecidas, e os retratos de conflitos, preconceitos e desigualdade reafirmaram a imagem de uma autora ousada e sabiamente desafiadora. Ainda, a leitura de A Estrutura da Bolha de Sabão resgatou nas memórias as narrativas de Hilda Hilst e Clarice Lispector, mostrando como mesmo seus pontos em comum se exprimem com uma singularidade incomparável.
A leitura do mês expulsou a temida Lygia dos vestibulares e deu a sua obra um passe para a imortalidade. Nesse cenário tomado por despedidas e eternização, a Literatura não pretende deixar saudade, então fique agora com as indicações dos membros do Clube do Livro para o Estante do Persona de Abril.
Livro do Mês
Lygia Fagundes Telles – A Estrutura da Bolha de Sabão (184 páginas, Companhia das Letras)
A Estrutura da Bolha de Sabão é uma coleção de contos da escritora símbolo do movimento pós-modernista, Lygia Fagundes Telles. Guiada por um clima de tensão, não há como relaxar durante a leitura que se faz genialmente desconfortável a todo o momento. Publicada pela primeira vez em 1978 sob o título Filhos Pródigos, a obra ganhou o nome do seu conto homônimo para o relançamento em 1991. Àquela época, o texto que encerra a seleção já havia se tornado um destaque na carreira de Telles.
Se a dama da literatura brasileira é uma romancista realista, quando ela se apropria da persona contista, não falta espaço para o fantasioso. Afinal, nos oito contos, através da sua constante abordagem da consciência humana, a autora aproveitou para usufruir sem medo algum do intenso fluxo de pensamentos das personagens. Para além, a sua característica visão sobre as grandes cidades e os vícios que acarretam a humanidade permaneceu singular e atraente para o leitor, sem esquecer da tradicional sinestesia da cor verde que marcou presença em alguns trechos do livro.
“Não conte a ninguém, mas descobri, a bolha de sabão é o amor.” Lygia Fagundes Telles nos deixou no mês de abril e, assim como ela demorou para compreender a existência de um físico que estudava a bolha de sabão, há ainda muito a desvendar sobre uma das autoras mais importantes que o Brasil já teve. Se A Estrutura da Bolha de Sabão significa algo, esse algo é a infinitude e a eternidade do poder de suas palavras que causam sentimentos tão fortes quanto o amor.
Dicas do Mês
Letícia Lanz – A Construção de Mim Mesma (112 páginas, Objetiva)
Um dos nomes de maior relevância para a comunidade trans no Brasil, Letícia Lanz decide por contar sua própria história no sincero A Construção de Mim Mesma. Com o subtítulo Uma história de transição de gênero, a obra de não-ficção transita entre o espaço e o tempo para que Letícia, uma mulher já na terceira idade, se apresente ao mundo da maneira que sempre o fez no individual.
A honestidade se junta à brevidade da escrita da autora, sempre buscando situar quem lê na mente de alguém que nasceu em estado de discordância do gênero a que foi atribuída no nascimento. Do apoio que recebeu da esposa até a parceria que firmou com diversas amigas da comunidade queer, Lanz faz sua rede de apoio se estender para além das páginas. – Vitor Evangelista
Lúcia Machado de Almeida – O Escaravelho do Diabo (128 páginas, Ática)
Nos meados da década de 70, a Editora Ática lançou no Brasil a Coleção Vaga-Lume, uma série de livros voltada para o público infantojuvenil. Facilmente reconhecidos pelas artes de capa emolduradas, grande parte dos títulos se tornaram clássicos que marcaram gerações. Entre eles, O Escaravelho do DiaboI, da autora mineira Lúcia Machado de Almeida, foi e ainda é um dos principais responsáveis por despertar o interesse pelo suspense policial na literatura nacional.
Ambientada em uma pequena cidade do interior, a narrativa sobre a sequência de assassinatos de pessoas ruivas e a sua relação com besouros é repleta de mistério. Por se tratar de uma obra de leitura simples e por marcar presença nas estantes de leitura jovem das bibliotecas, O Escaravelho do Diabo sempre entrou em contato com os leitores mais precoces. Por isso, não é exagero admitir que os escritos de Almeida formam e ensinam desde a sua primeira publicação. – Nathalia Tetzner
Tobias Carvalho – As Coisas (144 páginas, Record)
O livro de estreia do porto-alegrense Tobias Carvalho é uma abertura ao universo de encontros e desencontros de seus personagens, homens gays, moradores de Porto Alegre e engajados na negociação de suas afetividades na internet. Em seus contos, Carvalho traz momentos da vida cotidiana enclausurados em texto, levando o leitor até mesmo a se perguntar o que ocorreu realmente ao autor ou o que foi simplesmente uma conversa de bar guardada com um preciosismo digno de um item de colecionador.
Em As Coisas, o que pulsa é a vida desses homens em relação ao mundo exterior que os abraça e hostiliza simultaneamente. Desde uma discussão de relacionamento em mensagens de texto a sucessivas transas mediadas pelo Grindr em um dia de tédio, as experiências gays são contempladas e esmiuçadas como pequenas joias de uma realidade muitas vezes escondida na Literatura queer, que parece ainda negar as formas que pessoas homossexuais se relacionam fora da ficção, assim construindo a mesma e velha estória amparada na descoberta sexual e do jogo sedutor do sigilo. – Enzo Caramori
Ava Dellaira – Cartas de Amor aos Mortos (344 páginas, Seguinte)
Publicado em 2014, Cartas de Amor aos Mortos é o romance de estreia da norte- americana Ava Dellaira. Escrito em narrativa epistolar, o texto nos guia pelas palavras de Laurel, uma adolescente desestabilizada lidando com o luto gerado pela misteriosa morte de sua irmã mais velha, May. Tentando se reinventar, a protagonista começa o Ensino Médio em uma escola nova, e em suas aulas de Inglês recebe a curiosa tarefa de escrever uma carta para um morto.
Motivada pela atividade, Laurel passa a escrever cartas para artistas como Kurt Cobain, Janis Joplin, Heath Ledger, Judy Garland, Elizabeth Bishop e Amy Winehouse. Escrever para os mortos se torna um portal, não um que desvenda os segredos da morte, mas que guarda os da vida. Entre questionamentos sobre a trajetória das celebridades e reflexões geradas pelo seu próprio dia a dia, cada carta revela uma parte do consternante amontoado de angústias residentes na personagem.
Enquanto dedica seus monólogos letrados a uma celebridade ou outra, Laurel mostra a verdade, e seus medos, inseguranças, traumas, amores e individualidade ganham espaço nas grafias. Assim, dos dramas às conquistas, a autora entrega uma descrição moldada por palavras tão sinceras e palpáveis que permitem ao leitor a experimentação mais genuína e aflitiva da empatia. Em suma, Carta de Amor aos Mortos é apaixonante ao destrinchar a controversa dor do amor. – Jamily Rigonatto
Daniel Galera – Barba ensopada de sangue (424 páginas, Companhia das Letras)
Nascido em São Paulo, mas radicado em Porto Alegre, Daniel Galera foi um dos fundadores da editora Livros do Mal (2001-2004) – junto a Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Além de escritor de fôlego, é também ensaísta e tradutor literário, tendo vertido para o português obras de David Foster Wallace, Zadie Smith e Chris Ware. Em Barba ensopada de sangue – seu quarto e premiado romance, que completa 10 anos de lançamento em 2022 –, acompanhamos um protagonista sem nome (por vezes chamado de “nadador”), um professor de Educação Física que, após o suicídio do pai, se muda para Garopaba, cidade litorânea de Santa Catarina.
Esse personagem possui uma condição: não é capaz de memorizar faces. Dessa forma, se esquece também de suas próprias feições, percebendo posteriormente que são similares à do seu avô, assassinado no passado, cujas circunstâncias do crime seguem obscurecidas. Ao estilo das obras de Cormac McCarthy, vagamos através da história como espectros, guiados por narrações em terceira pessoa e diálogos reveladores.
Em alguns momentos, a observação excessiva sobre pequenos detalhes reafirma a condição do protagonista – única voz que nos apresenta a narrativa –, evidenciando aquilo que ele próprio vê: um emaranhado de acontecimentos cometidos por pessoas sem rosto, lembradas por seus gestos e particularidades. Barba ensopada de sangue é potente ao revelar as diversas situações e condições que se somam para constituir a identidade, além de apontar para uma certa hereditariedade de acontecimentos que sucedem nossas vidas. – Bruno Andrade
Carlos Drummond de Andrade – O Observador no Escritório (272 páginas, Companhia das Letras)
A medida que os fantasticamente ordinários contos de A Estrutura da Bolha de Sabão eram manifestos na linguagem crua e radical de Lygia Fagundes Telles, o fundo bruto de realidade da Dama da Literatura brasileira parecia evocar uma aproximação com a capacidade analítica criativa do nosso poeta de sete faces. O fenômeno ainda está em fase de compreensão, mas para compor a mais recente Estante do Persona, não pude deixar de atender ao clamor de Carlos Drummond de Andrade e de sua obra diarista, que ao construir suas observações de mundo com a perspicácia de sempre e um humor refresco, se coloca, de uma forma intrigante e bem específica, mais uma vez ao lado de sua querida parceira modernista com O Observador no Escritório.
É fato que a amizade entre Telles e Drummond já detém – literalmente – a licença poética necessária para esse tipo de referência. Mas algo especial acontecia quando Carlos encerrava seu hábito de tomar notas pessoais, mantido desde 1943, em setembro de 1977 – dez anos antes de sua morte e um ano antes do lançamento da referida obra de Lygia. Ela, emergindo suas palavras nas camadas profundas das relações humanas, recorria à ficção. Ele, atento e envolvido em um período de intensas mudanças no país, se encarregava de retratá-lo com sinceridade e riqueza de linguagem. E quando um dos auges da ficcionalização dela se relaciona com o centro da realidade dele, o resultado é um daqueles eventos celestes tão estrondosos quanto misteriosos, que só o universo da Literatura pode conceber. – Raquel Dutra