Enzo Caramori
A simbiose entre a ficção com a representação da vida animal, não humana, poucas vezes se destitui da essência do bicho Homo sapiens. É como se não existisse, em uma contaminação da prática artística a um obrigatório humanismo, uma forma de evocação de sentimento e empatia senão por uma figura antropomorfa, ou então, uma figura humanizada por sua trajetória ou pelo próprio espectador. Daí nascem as fábulas e desenhos infantis com animais falantes e impasses morais, ou até mesmo A Grande Testemunha (1966), de Robert Bresson. Pela sua câmera minimalista, Au Hasard Balthazar, título original da obra, acompanha a tortuosa trajetória — análoga até mesmo à renúncia de Jesus Cristo — da vida de um burro; implicando em seu caminho as brutais relações de poder, classe, gênero, mas, acima de tudo, entre os humanos e animais.
No entanto, mesmo que as emoções, suscitadas por Bresson ao contar as aflições de Balthazar, se deem por seu caráter de comparação à figura histórica e cultuada de Cristo, ele também inaugura uma visão própria desse animal, acometido por castigos e maus tratos, ao imaginário dessas narrativas. É desse ponto que EO (2022), o mais recente filme do diretor experimental Jerzy Skolimowski, procura partir.
Ao retratar, no burro de circo Eo, uma travessia inspirada na de Balthazar, mas no contexto da Europa contemporânea — tomada de contrastes entre o tecnológico e o natural — Skolimowski constrói uma linguagem inovadora para equiparar as lentes do Cinema as de outras formas de vida. Sua tentativa é, em um filme vencedor em um empate no Prêmio do Júri em Cannes e indicado a Melhor Filme Internacional no Oscar 2023, de projetar essa narrativa não aos olhos humanos, mas sim, ao olhar de um burro e de outros animais que habitam o bioma de seu filme.
Contando com um papel coadjuvante da magnânima Isabelle Huppert, o longa não é exatamente uma masterclass de atuação de seu protagonista, um papel exercido por seis burros diferentes (não feridos na árdua trajetória da interpretação). Entretanto, o manifesto interespécie de Skolimowski é um exercício exemplar de montagem e pós-produção, principalmente no que concerne ao potencial da edição de Agnieszka Glinska em salientar os aspectos expressivos e conceituais de uma obra.
A perspectiva colocada pelo diretor e traduzida pela cinematografia, encabeçada por Michael Dymek, se materializa em imagens distorcidas, com a janela e o enquadramento cinematográfico comprometidos ou em tons de contraste: entre um azul anil, indicativo de pontos de calmaria na fuga de Eo, e um vermelho sangue que estardalhaça a tela e constantemente reconstrói o tom do filme. A sequência inicial, em que o burro ainda é o centro de atração de um espetáculo circense, é acometida por essa colorização, indicativa da violência do ato que poderia, por outros retratos, ser de grande singeleza e até mesmo passional ao que é, essencialmente, uma exploração da vida animal.
A uma filmografia contemplada pelo experimentalismo, EO funciona tanto enquanto um suspiro de leveza, — mesmo que carregue, em sua estrutura, esses momentos de brutalidade e tensão — quanto um gesto decisivo de maturidade de seu diretor. Afinal, com 84 anos, Jerzy Skolimowski parece se comprometer a uma ternura crítica, que busca tanto se colocar no espaço de um devir animal, um conceito amparado na teoria do filósofo Gilles Deleuze e da pensadora Donna Haraway, quanto denunciar o mundo contemporâneo e os arcabouços criados pela Humanidade.
É assim que segue Eo. Assim como no elogiado Okja, do diretor vencedor do Oscar Bong Joon-Ho, a trajetória animal, para além de pontos de reviravolta ou de suspense, dada a vulnerabilidade que lhe é atribuída, é feita desses instantes quiméricos e espontâneos de leveza ou de desterramento pela civilização. Na Europa em que são marcados os seus passos equinos, também habita um complexo vivo de tecnologias, onde até mesmo moinhos eólicos parecem monstros para os olhos de um burro.
O diálogo estabelecido por Skolimowski entre o naturalismo de Bresson e a transgressão de Haraway, fundadora de um pensamento ciborgue — no qual são desafiados os limites entre natural e tecnológico —, é constante na mensagem de EO. Representados nas filmagens como se fossem bichos, drones são personagens e técnicas dessa narrativa, por serem também utilizados para a captura de sequências do filme. O fluxo do natural ao artificial e mecânico se exalta na direção do som e da trilha sonora do filme (responsabilidade, respectivamente, de Radoslaw Ochnio e Pawel Juzwuk), em que a delicadeza de fundos musicais que parecem ter saído diretamente de um longa da Disney tornam-se pesadelos industriais, em batidas eletrônicas agressivas e metálicas.
Contra Close na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2023, EO também direciona seu olhar aos tumultos contemporâneos da atualidade. O ativismo contra a crueldade animal, a relação de poder entre homens e mulheres, o ambientalismo e até mesmo as tensões entre grupos políticos extremistas são como interlúdios à centralidade das relações dos animais com a exterioridade. Das cidades, passando pelas tralhas de um lixão tecnológico, até chegar às florestas, os cenários são percebidos em planos majoritariamente fechados e focados na figura de Eo, que tem seus olhos e corpo capturados com proximidade pela câmera. Que isso é uma tentativa máxima de se aproximar de sua experiência e subjetividade, é claro; mas até a presença de seus grunhidos e da maneira em que se comporta diante de outros animais abre, às lacunas obrigatórias de toda história, a possibilidade de se imaginar: ‘‘o que ele sente?’’
No terceiro roteiro de longa-metragem que escreve juntamente de sua esposa, Ewa Piaskowska, Jerzy Skolimowski não abandona sua tônica crítica, mas a desenvolve a partir de um padrão visual. São recorrentes as imagens do olho de Eo, deslumbrado pelo mundo que o cerca, distorcido e fantasioso. Essas imagens são uma abordagem radical, na forma do Cinema, ao treinamento linguístico que o filósofo Jacques Derrida se submeteu, ao se questionar da maneira como ele deveria retornar ao olhar ruminativo de seu animal de estimação, um gato. Nisso, o diretor polônes tenta se aproximar do ver e do sentir animal sugerindo, em suas passagens oníricas, até mesmo a possibilidade do sonho.
O que distingue EO da fábula e do conto moral de Robert Bresson, o qual se inspira, é nunca assumir certeza acerca dessa sensibilidade. Essa aproximação é um ato enigmático, um desafio que apenas as dúvidas e improbabilidades da metáfora, trazida pela Arte, é capaz de compreender. O burro de Skolimowski é um personagem enigmático, que revela uma filosofia própria de entendimento do mundo até em seu próprio fim, enigmático e brutal demais para ser uma simples coincidência ou fatalidade do destino. Na experiência de mergulhar-se em outra possibilidade de perceber o mundo, o cineasta não trai o seu objetivo. A opacidade do Cinema experimental, que ressalta o trabalho da técnica e da linguagem cinematográfica, cede lugar ao ilusionismo de uma perspectiva que renuncia o trabalho humano. EO é, para além de um filme, uma pesquisa sobre outras maneiras de representar e sentir.