Nome por trás do fabuloso e singular AGROPOC, o cantor fala sobre as origens de sua Música, parcerias dos sonhos e o papel do sertanejo no mundo de hoje
Raquel Dutra e Vitor Evangelista
Dono de um dos Melhores Discos de 2021, Gabeu tomou conta do ano passado no cenário do queernejo. Como parte do Especial do Mês do Orgulho, o Persona retoma o quadro de entrevistas e inaugura a editoria de conversas musicais para receber a estrela em ascensão, em um papo que viaja de suas raízes no gênero musical até as mais diversas influências que fizeram de AGROPOC, seu trabalho de estreia, um dos destaques musicais mais instigantes e criativos da cena atual.
“Eu sempre tive a certeza de que eu queria fazer Música de alguma forma”, começa Gabeu, que conversa conosco sorridente, frente a um cenário composto pelo saudoso vinil do AGROPOC, um cavalo de brinquedo que serviu de companheiro na composição visual do disco e uma máscara com estampa de vaquinha malhada. Filho do cantor Solimões, ele sempre encontrou no sertanejo a base de toda sua formação, mas o trajeto até o gênero em que hoje triunfa não foi tão simples quanto pode-se pensar.
Seja frequentando os shows do pai ao lado de Rio Negro ou mesmo ouvindo canções em casa, o jovem artista sempre se sentiu deslocado ali, e demorou a aceitar que poderia trabalhar na mesma linha que cresceu consumindo, incrementando-a com a expressividade e a bagagem que ele, como homem gay, carrega. “Então, isso é uma coisa muito recente”, ele define, sobre a ideia de entender que o sertanejo, um local carregado por padrões de gênero, masculinidade e heteronormatividade, poderia também ser um espaço de atuação seu.
Como foi o seu caminho até a Música? Você teve contato pessoal com o meio desde criança? Sempre quis ser músico? Ou foi uma vontade que só surgiu depois?
Gabeu: “Eu sempre tive a certeza de que eu queria fazer Música de alguma forma. Acho que uma das coisas que eu mais brinquei na minha infância era de pegar o microfonezinho lá e ficar horas e horas fazendo show, então eu sabia que de alguma forma a Música ia estar presente na minha vida, seja como um hobby ou como uma coisa mais profissional.
Mas eu acho que essa coisa também de ter o meu pai como a principal referência, sendo ele um cantor sertanejo, e ocupando esse lugar de um homem hétero, coisas que eu não me identificava muito, foi decisivo para eu tentar explorar outras coisas e achar durante um tempo que a Música não era realmente uma possibilidade profissional pra mim. Porque eu pensava, ‘ah, eu não quero fazer sertanejo, porque eu acho que não tem nada a ver’, mas a Música pop que eu gosto, a Música pop gringa, também não é uma coisa que rola muito no Brasil, na época, quando eu era criança, não era uma coisa muito expressiva, aí depois que veio a Anitta, a Pabllo, aí eu falei ‘hum, acho que existe uma possibilidade’.
Então quando eu comecei a pensar de fato em me profissionalizar e me lançar como cantor, ainda não era assim com o queernejo. Eu até cheguei a entrar no estúdio, gravei uma música popzinha, mas que hoje eu escuto e falo ‘nada a ver, ainda bem que eu realmente fui por outro caminho, porque não ia rolar’. Mas passei por esses processos, de pensar ‘vou me lançar como cantor, mas vai ser pop? Será que eu tento fazer alguma coisa sertaneja?’. Então eu fiquei meio nessa, durante muito tempo, pensando e pensando pra de fato chegar nessa ideia de Amor Rural”.
Amor Rural, sua faixa de estreia, foi lançada há apenas 3 anos, provando que essa jornada está apenas no início. “Eu fui crescendo, fui passando por esse processo de descoberta da sexualidade, fui, enfim, me encontrando em outros rolês, me encontrando num rolê mais de Música pop, num rolê LGBTQIA+ e fui me desprendendo, me desprendendo desse universo sertanejo”.
Na adolescência, Gabeu chegou a renegar esse espaço: “eu tive um tempo de parar um pouco de ir nos shows do meu pai e agora, um pouquinho antes de Amor Rural, que eu venho fazendo esse processo de fazer as pazes com as minhas raízes e olhar com um pouquinho mais de carinho, de ver o quê desses lugares, desses ambientes, dessa musicalidade, eu consigo aproveitar, transformar e fazer com que faça sentido pra mim”.
É uma coisa que ele ainda está entendendo, toda essa ideia de se apropriar de um gênero que antes ele não se via representado, “e eu acho que isso é gostoso também, de eu não ter uma resposta pronta”. Considerando estar em um período fértil de criatividade, Gabeu enxerga com otimismo esse “início do queernejo”, com as ideias borbulhando e a Música tomando vida nesse processo criativo aflorado.
Repleto de misturas, o trabalho musical de Gabeu se inspira em artistas como a Banda Uó, precursores na arte de incorporar o queer à estética nacional. Além disso, o repertório de AGROPOC conta com canções narrando casos amorosos para lá de específicos e chamativos (caso de Esconde-Esconde). Quanto ao processo de composição, o cantor revela que percebeu que estava explorando a criação de histórias, portanto, os relatos não necessariamente aconteceram em sua vida.
Admitindo ter ouvido muita Música caipira, onde os intérpretes não viviam o que colocavam nas letras, ele destaca a ideia de “adotar um eu-lírico, um personagem, e cantar como se fosse aquele personagem”. Nenhuma novidade para quem tem aproximação e formação formal em Teatro e o Cinema: “é uma coisa até meio teatral, porque eu gosto muito. Então, em Bandoleiro e Atacante, por exemplo, não, eu nunca roubei banco com um cowboy, nunca tive um sugar daddy”.
No disco, você traz em Cowboy um cover da Banda Uó, que foram artistas muito marcantes para a cena nacional, levando uma roupagem queer para sonoridades tipicamente brasileiras. Você os considera uma inspiração para a criação do AGROPOC?
G: “Obviamente eles são uma referência muito grande, e eu acho que não só pra mim, mas eu acho que pra todos esses artistas pop LGBTs, que estão aí sabe, fazendo sucesso hoje. Eu acho que a Banda Uó é uma das principais inspirações, eu considero que todos esses artistas de hoje são os filhos da Banda Uó, porque é isso, eles foram muito pioneiros mesmo nessa coisa de misturar o pop com uma estética diferente, com coisas regionais, eles brincavam muito com os gêneros no geral, tem uma música deles sertaneja, Cowboy, eles brincavam com tecnobrega, forró, enfim, várias coisas que eles exploravam. Então eu considero muito eles uma referência, e eu escolhi Cowboy porque, enfim, era a faixa sertaneja deles, é uma das faixas que eu mais ouvi da carreira deles.
Quando eu descobri eu fiquei maravilhado, eu nunca tinha sentido aquilo, eu acho que foi o primeiro sinal de vida do queernejo de fato ali, sabe? Porque é isso, dois caras gays, uma mulher trans, fazendo Música sertaneja, se eu não me engano eles são do Goiás, então eles têm essa raiz também, por mais que eles não trabalharam isso durante toda a carreira, eles carregam isso também. Então, sabe, muitas coisas que me fazem olhar pra eles e falar ‘faz sentido essa música estar no meu repertório’. É uma música que eu cantava nos meus shows antes de pensar no álbum, e aí no meio desse processo de produção do álbum eu falei ‘ah, acho que ela cabe muito bem aqui no meio dessas faixas’, e aí eu regravei e coloquei, e a galera super curtiu, super achou que fez sentido também”.
Os diálogos com outras obras do universo pop não param por aí, já que ele também viveu a experiência de viajar pela sua capacidade de criação em plena pandemia. Agora, no entanto, o momento é de viver a sua música junto do seu público, que desde maio vem mantendo encontros com Gabeu em cima do palco: “eu tô vivendo esse momento de sair de casa pela primeira vez pra cantar o álbum, encontrar as pessoas e ver as pessoas cantando as músicas, e ter essa troca, das pessoas virem até mim e falarem que elas acharam do álbum, qual a faixa favorita delas, o que elas sentiram, como o álbum foi importante pra elas na pandemia… eu ouvi muito isso.”
Em época de celebrações essencialmente ligadas à cultura caipira, ele vivencia tudo o que sonhou para o disco, planos que, assim como todo o resto do mundo, foram paralisados pela crise sanitária advinda do covid-19: “Sinceramente, foi uma loucura lançar o álbum na pandemia. Produzir ele foi muito gostoso, mas eu tinha muitos planos grandes pra ele, obviamente não contando com a pandemia. Era pra ele sair no comecinho de 2020, e aí veio todo esse desastre, enfim, e aí agora reencontrar as pessoas e ter essa troca com elas é muito, muito, muito gratificante e me faz lembrar de como foi importante pra mim produzir e mergulhar nesse universo de fato e ter realmente a coragem de não abandonar a ideia do queernejo.”
O carinho pelo gênero que está no centro do seu seio familiar reluz no olhar de Gabeu quando ele avalia os ônus e os bônus de construir o seu lugar em um espaço que inicialmente lhe era hostil. Agora, ao ver um aspecto tão importante para a formação da sua identidade na boca da mídia por conta das recentes denúncias de superfaturamento em shows sertanejos pelas cidades do Brasil, a sua voz representativa, crítica e reflexiva não se desvia das polêmicas.
Nesse momento em que o sertanejo passa por uma série de investigações e denúncias, como você, que tem tanto carinho, identificação e proximidade com o meio, mas também esse olhar mais crítico, se relaciona e encara essas problematizações?
G: “Eu acho que muitas coisas dentro do meio sertanejo nunca foram questionadas, em relação à qualquer tipo de pauta, à qualquer tipo de discussão mais séria e mais profunda, em relação à representatividade, à política, ao cenário que a gente está vivendo hoje. Eu acho que as pessoas não se aprofundam em muitas coisas nesse meio, e eu acho que o que tá rolando agora talvez seja um sinal para que a gente comece a debater alguns assuntos importantes no meio, como essa coisa mais contratual, mais financeira, bem polêmica que tá rolando, mas também de pautas identitárias, que é uma coisa que a gente vem reiterando no queernejo, vem tentando trazer as discussões, e não só em relação à comunidade LGBTQIA+.
No ano retrasado, a gente fez o Fivela Fest, o Festival de Queernejo, que rolou on-line também, e a gente propôs várias mesas de debate, sobre masculinidade tóxica no sertanejo, sobre negritude no sertanejo. E fazendo essa pesquisa, de ir mais a fundo no sertanejo raiz, a gente consegue encontrar mais cantores e artistas negros lá nos anos 20 e 30 do que hoje, então é uma coisa a se discutir também. Eu dou esses exemplos mais pra falar sobre isso: que o mercado sertanejo não gosta de se aprofundar em discussões, eles gostam muito de ficar na superficialidade, eles têm muito medo de se comprometer, têm muito rabo preso com várias questões políticas. Enfim, eu acho que o queernejo está aqui também pra questionar esse tipo de coisa.”
A mesma ponderação é expressa quando ele fala sobre a sua família, que foi assunto na mídia em 2018 por conta dos comentários carinhosos que o pai Solimões deixava nas publicações de Gabeu nas redes sociais. “Chamou muita atenção o fato de um pai ter uma boa relação com seu filho gay. Aquilo me deixou muito feliz pela repercussão, mas também, ao mesmo tempo, eu fiquei refletindo sobre isso, porque se chamou tanta atenção é porque de fato é uma coisa muito incomum. E aí eu parei pra pensar e voltar atrás no momento que eu me assumi, pra minha família, pro meu pai, pra minha mãe, pra minha irmã e eu fiquei lembrando de como foi.”
Sobre esse momento delicado, ele compartilha que foi tranquilo de forma externa e conflituoso de forma interna, mas que o pai foi a primeira pessoa da família a saber: “A reação dele foi muito natural, ele tava meio sem saber o que dizer, mas ele teve uma preocupação de demonstrar acolhimento. E foi a mesma coisa com a minha mãe, a minha irmã, depois de um tempinho que eu contei pro meu pai”.
Os conflitos geracionais, no entanto, não deixaram de aparecer no meio da aceitação familiar. “Às vezes rola uns embates de geração mesmo, de não entender o porquê de ficar sempre reiterando a sexualidade, a identidade de gênero, de estar sempre falando sobre isso, de estar sempre levantando essa bandeira”, ele compartilha, reforçando o carinho e acolhimento que encontrou dentro de casa.
Quais são os seus discos favoritos da vida? Um brasileiro e um internacional?
G: “Dois? Ai meu Deus. Só 2 é difícil. Bom, esse aqui tá bem aqui do meu lado, é o Born This Way da Gaga. Pra mim é o maior disco da História, tipo pra mim realmente é uma obra de arte. Eu gosto muito de um álbum recente que é um cantor country gay, estadunidense ou canadense se eu não me engano, ele chama Orville Peck, e ele lançou nesse ano, chama Bronco, e é um álbum muito, muito, muito bom, tipo muito countryzão raiz que eu me identifico muito. E brasileiros assim eu gosto muito do Rito de Passá, da MC Tha, sou muito, muito fã da MC Tha, gosto muito do Simulacre da Potyguara Bardo e, ah, enfim, eu poderia listar dez milhões de álbuns aqui. A gente pode depois fazer uma entrevista só de álbuns, só pra falar de álbuns dos outros”.
Nós também acompanhamos o Orville Peck, e quando alguém comenta que está ‘ouvindo um CD de um cowboy LGBTQIA+’ a primeira reação é perguntar se é o Gabeu. E esses dias você compartilhou que estava ouvindo uma música dele.
G: “Nossa é impressionante, quando eu descobri o Orville Peck eu fiquei embasbacado, eu fiquei tipo, não só pela figura dele, pela representatividade que ele traz pro country, que eu acho que a Música country também enfrenta muitas coisas como o sertanejo, num lugar parecido ali, mas pela estética dele, eu acho ele incrível, maravilhoso. […] Tem uma cena country queer lá na América do Norte, na Europa também tem uma galera. Enfim, será que vem aí uma carreira internacional?”
E tem algum filme ou série que você queira recomendar? Pode ser algo que tenha te inspirado na criação do disco.
G: “Olha, eu sou uma pessoa que não assiste muitos filmes e muitas séries, eu sou meio preguiçoso pra isso, e o que eu assisto geralmente não tem muito a ver com o que eu tenho feito na Música e se eu falar O Segredo de Brokeback Mountain vai ser muito clichê eu acho, mas é um filme que eu amo muito e já até fizeram um edit um dia de Amor Rural com as cenas do filme, eu achei uma gracinha, se bem que aquele filme é muito triste. Mas, deixa eu pensar, eu gosto muito dos filmes do Mazzaropi, os filmes antigos do Mazzaropi, por conta do meu pai.
Obviamente tem muitas coisas questionáveis hoje em dia, tem coisas muito machistas, muito homofóbicas, mas eu acho que é aquilo tipo, eu assisto algumas coisas hoje em dia do Mazzaropi e eu tento pincelar as coisas que me seriam úteis, para minha carreira e que são inspiradoras pra mim, sabe. Então os números musicais dos filmes eu gosto muito, quando ele canta, e o tom de comédia, o tom dramático também, porque ele vai do drama ao cômico, ele ia do drama ao cômico rápido e de uma forma que eu achava que era interessante. Enfim, não é um filme específico, mas é a filmografia toda do Mazzaropi. [..] Eu tô numa vibe de produções sul-coreanas da Netflix, eu tenho assistido umas coisas interessantes. Assisti uma que chama Profecia do Inferno, que eu amei muito. E tem outra que se chama Juvenile Justice, muito legal. Recomendo”.
E agora de volta à Música, se você pudesse escolher algum artista para trabalhar junto, quem seria?
G: “Um só? Uma coisa mais atual, mais do momento, eu gostaria muito de um dia fazer uma colaboração com a Gloria Groove. Acho que ela é o momento e ela é uma artista que consegue explorar bem vários gêneros musicais, eu acho que ela canta muito bem pop, acho que ela explora muito bem o funk e o rap. Acho que ela poderia fazer uma coisa meio sertanejinha. Ela fez né, ela cantou Marília Mendonça lá no programa, ela fez o cover de Marília Mendonça, e foi muito bom, ela canta muito bem, acho que ela cantando uma música sertaneja seria muito interessante. Comigo então, nossa senhora”.
Agora que o disco foi lançado como o primeiro passo da sua consolidação como artista de queernejo, quais são suas expectativas para o futuro?
G: “Em primeiro lugar, eu quero muito dar continuidade nisso que a gente começou mês passado com os shows. Eu quero muito fazer show, eu preciso estar em cima do palco, eu preciso subir e cantar o AGROPOC pra galera e ter essa troca com o público. Eu tô muito nesse estágio, então essa é a primeira coisa que eu penso quando as pessoas me perguntam o que eu quero pro futuro: fazer shows. Obviamente, eu tô sempre compondo, tô sempre tendo muitas ideias de próximas músicas, de próximos lançamentos, de próximos discos… Eu já tenho ideia para 10 discos diferentes na minha cabeça, que eu só preciso colocar no papel direitinho, porque às vezes vira uma bagunça.
Eu tenho planos também de começar a produzir algumas coisas novas, entrar em estúdio. Eu amo muito a energia de estúdio também, gosto muito de estar dentro do estúdio, de trocar experiências com quem tá produzindo comigo, de estar ali, enfim, pensando a música, pensando arranjos, essa é uma coisa que me dá realmente muito prazer, então eu quero muito voltar pro estúdio logo pra produzir coisa nova. Com isso tudo, eu quero também que muitas pessoas, mais e mais pessoas, se identifiquem com o queernejo, e eu gostaria muito de ver mais artistas surgindo, novos artistas queer fazendo sertanejo, pra cena crescer.
Eu acho que isso é importante porque a gente ainda é uma cena muito pequena se comparada aos outros gêneros musicais que tão rolando. Então, acho que quanto mais artista tiver mais fortalecimento a gente vai ter, e mais as pessoas de fora vão começar a levar a sério, porque uma coisa que eu vejo é que muita gente não leva a sério, encara como uma coisa engraçada, uma piadinha, enfim, uma galera LGBT querendo fazer graça, sei lá. Então eu gostaria que isso acontecesse, que a gente crescesse cada vez mais”.
Pouco menos de um ano depois de lançar o disco, Gabeu está viajando, cantando e realizando os shows da AGROPOC Tour.