Diretor de Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente conta de seu trabalho com a obra do cartunista Angeli, e explica porque o punk permanece relevante até hoje
João Batista Signorelli
Raro exemplar de longa-metragem realizado com a técnica de stop-motion no Brasil, Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente foi um dos grandes destaques da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, chegando ao Brasil já com um prêmio em mãos, da Mostra Contraponto do Festival de Cinema de Animação Annecy. O Persona assistiu ao filme, e com muito prazer retoma o quadro de entrevistas para conversar com o diretor César Cabral, que também é sócio-fundador da Coala Filmes, produtora paulistana focada em produzir animações em stop-motion.
Antes de explorar a obra do cartunista Angeli em vários de seus projetos, antes de fundar uma produtora de animação, e antes mesmo de receber o seu diploma em Cinema pela Universidade de São Paulo, Cabral estudou Física por cerca de três anos. Foi o tempo que levou para perceber que não era aquilo que queria levar como trabalho e profissão, o que o fez largar aquela graduação e prestar para o curso de Cinema (atualmente chamado de Audiovisual), onde teve aula com excelentes professores e grandes nomes como Jean-Claude Bernardet e Ismail Xavier. Ainda sem recursos digitais, César Cabral iniciou seu primeiro experimento em stop-motion com um rolinho de película que recebera da faculdade para um exercício de filmagem.
“É engraçado como as coisas dão voltas: eu lia muito histórias em quadrinhos, gostava muito de desenhar, mas nunca imaginava trabalhar diretamente com (…) o universo da animação.” Da animação em stop-motion brasileira, dois curtas marcaram e influenciaram o seu trabalho: Frankenstein Punk e Garota das Telas, ambos realizados por Cao Hamburger e Eliane Fonseca. “‘Se eles fizeram isso lá nos anos 80’, eu pensava assim – a ingenuidade – ‘eu consigo fazer isso nos anos 90’” relembra o diretor. Procurando pessoas que gostavam de modelar, ele acabou conhecendo Olyntho Tahara, seu futuro sócio na produtora Coala Filmes. Já nesse primeiro exercício que se tornou um ‘curtinha’, César começou a explorar o mundo dos quadrinhos da Chiclete com Banana que lia em sua adolescência, criando um duelo de faroeste entre os palhaços mudos, criação da cartunista Laerte.
Durante o final do curso, ele já começou a ir atrás de trabalhos em publicidade, onde, prestando serviços de assistência em produtoras, encontrava espaço para a construção de maquetes, cenários, bonecos, ou até mesmo animação. Foi um período para aprender e descobrir como fazer stop-motion, uma área que não tem mercado e poucos profissionais atuantes. Entre 2004 e 2005, começou a se desenvolver a Coala Filmes, onde escreveu o projeto para o curta-metragem Dossiê Rê Bordosa. “O Dossiê é o início do que virou o Bob Cuspe de certa maneira.” E foi ali que César Cabral enveredou para o audiovisual, se afastando da publicidade e acompanhando a alavancada que a ANCINE iniciava naquele momento. “Foi um período que o fundo setorial entra e começa a fomentar toda a produção audiovisual, acabou possibilitando que a gente fizesse séries e o longa. A gente vai fazer um segundo mas… estamos no primeiro” sinaliza o diretor, já gerando a expectativa para uma sequência.
Somando referências que vão dos blockbusters americanos que cresceu assistindo, aos lançamentos que acompanhou nos cinemas como Pulp Fiction, além de clássicos da Nouvelle Vague que via na Cinemateca na época da faculdade, César Cabral recheou Bob Cuspe de homenagens de forma consciente e inconsciente. Se citações a filmes como 2001 – Uma Odisseia no Espaço e O Iluminado são mais explícitas, o diretor se surpreendeu ao re-assistir Poltergeist – O Fenômeno e descobrir um zoom com travelling em um corredor muito igual ao que fez na cena em que Angeli se aproxima de uma porta para encontrar Laerte. “É engraçado como essa coisa inconsciente que a gente vai construindo na nossa cabeça – o nosso repertório (…) – fica, e acaba saindo de um modo natural, sem um planejamento óbvio.”
Seu primeiro contato real com o cartunista Angeli foi no mundo da revista Chiclete com Banana, que foi essencial para a formação do diretor ao trazer muito material não apenas de quadrinhos, mas de Música, Cultura e variedades, em um mundo onde a internet ainda não existia. Quando foi realizar o curta Dossiê Rê Bordosa, entrou em contato com o Angeli, que de início relutou, pois havia matado a personagem em suas tiras para justamente não precisar mais falar sobre ela, mas que ao final acabou topando. A partir de entrevistas com Angeli e outras pessoas, César Cabral realizou o curta animado documental, e temendo uma reação negativa do artista ao mexer com sua obra, foi surpreendido por uma reação positiva.
Enquanto se aprofundava ainda mais no mundo da Chiclete com Banana na série Angeli – The Killer, produzida para o Canal Brasil, Angeli comentou com Cabral que sempre achou que o Bob Cuspe renderia um longa. E ali foi lançada a sementinha do que viria a se tornar o longa Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente. “Pensar num longa-metragem de certa maneira é uma loucura (…) parece uma coisa impossível de acontecer.” Gravando uma série de entrevistas com Angeli, César foi se aprofundando em seu processo criativo. “O Angeli, como a gente sabe, é famoso por ser o Angeli em crise, né? (…) É um cara que nunca para no trabalho, ele quer ir à frente. (…) o processo criativo dele vem muito disso, de não se estabelecer com algo que já tá definido. (…) E de certa maneira, ele agora, com 60 anos, ‘tá’ nesse lugar de procurar e tentar encontrar um novo caminho pro trabalho dele.”
O ponto de partida da narrativa principal do filme veio do próprio Angeli, que tinha esboçado uma morte do Bob Cuspe devorado por mini Elton Johns. “Ele é meio que um símbolo do pop, do glitter, que de certa forma é o oposto à postura punk. Então o que melhor mata um punk? Qual é a pior morte que um punk pode ter? É o pop devorando ele, fisicamente ou metaforicamente.” A partir dessa ideia, a equipe desenvolveu um mundo pós-apocalíptico dentro da cabeça do Angeli, onde o Bob Cuspe, ao perceber que seu criador está desenhando sua morte, vai atrás dele para enfrentá-lo.
Um dos desafios da produção foi transpor o traço do lápis no papel em duas dimensões dos desenhos consagrados de Angeli, e transportá-lo para o stop-motion tridimensional, e nesse empreitada, César destaca o trabalho do diretor de arte Daniel Bruson, que também trabalhou no curta Dossiê Rê Bordosa. Sobre a técnica utilizada, ele destaca como sendo a que mais se aproxima do live-action, pois há o espaço físico do estúdio, a maquete que é o cenário, o set de filmagem, e os bonecos que são os atores do filme. A única diferença seria a captura quadro a quadro. “Não tem um ‘gravando’, tem ‘vamo lá, rodando o plano’, e esse plano vai levar dez, vinte horas pra ser produzido’, brinca o diretor. O ritmo da produção, realizada em 6 sets de filmagem, era de três/quatro segundos por dia, por set de filmagem.
Outro desafio foi construir uma estrutura para a produção do filme, com espaço físico e profissionais. A falta de um mercado consolidado de animação stop-motion no Brasil e no mundo fez com que houvesse um forte trabalho de formação na produção de Bob Cuspe, onde as pessoas aprenderam a fazer coisas como construir os bonecos, manipular a sua estrutura interna, e como animá-los. Da pequena produção de Dossiê Rê Bordosa, em que César Cabral animou sozinho com uma equipe bastante reduzida, ao longa de 90 minutos, a produção da animação tornou-se bastante complexa. “No stop-motion as coisas andam meio em paralelo, é tudo meio escalonado, sabe? A gente tá animando no set, mas a equipe já tá pós-produzindo o que foi animado. E a equipe de pré-produção já tá preparando o próximo cenário (…). Então é tudo muito amarradinho pra funcionar.”
Comentando a situação atual do audiovisual no Brasil e o que diria para alguém que está se introduzindo na área do audiovisual, com enfoque em animação, César chama a atenção para o momento difícil que o audiovisual tem passado com o governo atual, mas também destaca produções que vêm acontecendo apoiadas por canais de streaming e TV, sem depender de um incentivo governamental. Ressalta também os desafios de fazer Animação, o que a princípio pode parecer algo maravilhoso, “bonitinho”, mas que exige muito trabalho e dedicação, para muitas vezes apresentar um resultado final muito pequeno. “É um processo muito custoso. Ao mesmo tempo, é muito gratificante.”
César destaca a preocupação em atingir um público mais amplo com o longa. “Eu não queria fazer um filme fechado só pro cara de 40, 50 anos que lia Chiclete com Banana. Então a gente foi tentando não ser didático, mas deixar palatável para que a pessoa entre e conheça quem é o Angeli (…) e esse universo dele. (…) Claro que é difícil a gente saber o limiar pra não passar a mão e fazer um filme que fica muito explicativo, mas tivemos um cuidado.” Foi quando o longa estreou no Festival de Annecy que ele recebeu o primeiro feedback de alguém de fora, que o fez saber que o filme havia dado certo. Foi de uma estudante vietnamita da Escola Gobelins, a maior escola de animação da França, que escreveu um texto para o diretor, que trocando ideia com ela, e vendo que tinha entendido a narrativa e quem é o Angeli, percebeu que o projeto tinha realmente dado certo.
Você tem alguma tira favorita do Bob Cuspe?
César: “Tem uma muito boa em que o Bob Cuspe ‘tá’ no meio do cinema, e que ninguém ‘tá’ perto dele, sabe? Acho que o Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente, representa um pouco essa imagem, porque as pessoas ficam meio com medo da figura dele na cena. (…) O Bob Cuspe não é um personagem que fala muito, ele vai lá e cospe, dá porrada nas pessoas, no sentido não-físico, mas tá sempre ali peitando, é muito boa”.
Se você pudesse escolher três pessoas para trabalhar em um filme, vivas ou mortas, quem você escolheria e por quê?
César: “Pergunta difícil essa hein…. Tim Burton é um cara que eu gosto muito, o universo que ele cria, pensando com foco em animação. (…) Gosto muito do Wes Anderson também, como diretor e com a aproximação com a animação que ele tá cada vez mais. É um cara que vem do live, e tem um universo muito particular na forma de filmar. Pô, quem mais? Acho que uma delas seria o Angeli mesmo, que eu me aproximei e que eu acho que de certa forma era uma grande referência sempre na minha formação, então eu acho que uma eu consegui assim que seria trabalhar com o universo dele. Gosto muito do Crumb também, que seria um deus desse universo underground dos quadrinhos”.
E se você pudesse levar três filmes para uma ilha deserta, quais seriam?
César: “Vou falar dos filmes que eu gostava e gosto muito ainda. Os Incompreendidos é um filme que eu gosto muito do Truffaut, vi muitas vezes… Claro que meu trabalho não tem nada a ver com ele, com esse universo do Truffaut, mas é um filme de formação. Falei do Cães de Aluguel, gosto muito de Pulp Fiction mas gosto muito de Cães de Aluguel, se fosse pra colocar um filme do Tarantino (…), Clube da Luta é um filme que eu gosto também. Gosto bastante. Mas falando sem pensar muito assim, certamente teriam outros tantos”.
Você tem algum filme nacional favorito?
César: “Tenho, alguns… Mas um que eu gosto muito é Bangue-Bangue, do Andrea Tonacci. Eu acho o filme foda demais. O Bandido da Luz Vermelha do Sganzerla também é outro filme que pra mim marcou muito, inclusive o próprio Dossiê Rê Bordosa bebe muito naquela construção de investigação de uma certa maneira jornalística, uma rádio que faz esse jornalismo espreme-sai-sangue, (…) o Dossiê é muito construído dessa forma, e veio muito do próprio Bandido da Luz Vermelha”.
Chegando ao fim da entrevista, o diretor falou sobre o espírito punk presente em Bob Cuspe, e sua relevância hoje. “A gente não quer falar só de um mundinho fechado que foi passado. Eu acho que o filme é pro jovem de hoje. A gente fala de punk, mas o punk é em um sentido amplo. O punk é uma postura do jovem perante esse mundo, perante o mundo que virá. A gente está sempre em um embate, o jovem tem esse papel de não aceitar esse mundo estabelecido. Se ali é o punk, talvez o punk hoje é essa postura que permanece. De certa forma, é universal. Estou muito feliz com o resultado, que é muito gratificante mesmo.”
E para a alegria daqueles que perderam as sessões do longa na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o filme estreou nos cinemas no dia 11 de novembro, levando sua postura punk para várias capitais do país, e permanece em cartaz até a publicação desta entrevista.