Diretora de Medusa relembra o processo de produção do filme e comenta sobre a experiência no Festival de Cannes
Caroline Campos e Vitor Evangelista
Em formato híbrido, a 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo possibilitou oportunidades de ouro para a equipe do Persona. Entre cabines de imprensa de filmes com sonho de reconhecimento no Oscar e um esperado encontro presencial dos membros da Editoria, tivemos a oportunidade de não apenas conferir a vibração descomunal de Medusa, como também de entrevistar sua realizadora, a majestosa diretora Anita Rocha da Silveira.
Narrando a história de Mariana, uma jovem que se rebela frente a um ambiente conservador e tóxico marcado pelo extremismo religioso, o segundo longa da carioca se pauta na revolta e na reverência às figuras femininas que povoam os quatro cantos da tela. O roteiro começou a ser escrito em 2016, conta Anita, iluminada pelo sol do fim de tarde. “Toda essa onda conservadora que ocasionou na eleição dele, já tava tudo desenhado lá”, confidencia, referindo-se ao presidente e às consequências do processo de impeachment de Dilma Rousseff que vêm se acumulando nos últimos anos.
A ideia primária era desenvolver a relação do conceito de bela, recatada e do lar, com o sentimento de submissão pelo qual as mulheres religiosas, nesse caso neopentecostais, se viam inseridas. Anita queria cutucar o ideal de “um certo modelo de mulher submissa ao homem como algo positivo, algo a ser seguido”. Mas tudo começou um pouco antes do processo de escrita, em 2015, quando leu uma história de um grupo de meninas que se juntaram para bater em uma colega por conta de fotos vulgares.
Com isso, a diretora acabou se deparando também com o mito da Medusa, figura mitológica amaldiçoada por Atena depois de se deitar com Poseidon – em algumas versões, ser estuprada pelo deus dos mares –, eternizada a viver com cobras no lugar de cabelo e transformando em pedra qualquer um que ousasse cruzar olhares consigo. “Fiz o filme para falar do machismo estrutural, como ele é parte da sociedade e como ele é projetado em todos nós de alguma maneira”, resgata Anita.
Entre Medusa e Mariana, a letra M vira constante nesse conto moderno de terror. “É o M de Mulher, né? Como se cada uma fosse uma parte, onde uma se reflete na outra. E no final passa a mensagem de uma certa união feminina, como se todas fossem parte de um todo”, comenta a diretora, revelando sua inspiração em Suspiria, de Dario Argento, que envolve uma complexa relação entre mulheres e alguns trocadilhos com a letra S.
E como se tornou costume nas entrevistas que detalham os processos criativos do Cinema nacional, a questão de financiamento e verba não foi fácil na concepção de Medusa. Com dinheiro reduzido, a equipe resolveu prosseguir mesmo assim, rodando todo o longa em apenas 28 dias. A resposta imediata veio em uma cidadezinha francesa que atende por Cannes e respira Arte todo meio de ano.
O retorno para o Festival de Cannes foi também o momento de entrar em uma sala de cinema, sentar na poltrona e ser fisgado pela catarse coletiva. Para isso, a equipe precisou ficar em quarentena por duas semanas, mas tudo valeu a pena, de acordo com Anita, que sorria ao detalhar a aclamação de Medusa no antigo continente. Depois de lá, o longa foi prestigiado no Festival de Toronto, fez uma passagem exclusiva com direito a ingressos esgotados na Mostra de São Paulo e, agora, está fincando sua máscara branca no Festival do Rio.
Quando tocamos na tecla do ar distópico de Medusa, a diretora prefere definir sua criação como ambientada em um universo paralelo, porque tem muitos exageros óbvios, mas baseados no mundo real. As falas ditas pelo personagem de Thiago Fragoso são todas retiradas de sermões existentes e disponíveis em vídeos na internet. Consciente de como transmitir sua mensagem, a diretora define que Medusa se passa num lugar isolado, mas que reflete o Brasil como um todo.
Em seu filme de estreia, Mate-Me Por Favor, Anita optou por inundar a conclusão em melancolia, e quase repetiu a fórmula na produção de 2021. No esboço inicial, o final era pessimista, mas a realidade brasileira se tornou tão sombria que ela quis fazer algo positivo. Quando evoca uma libertação física e emocional das mulheres protagonistas, o filme sublinha a imagem de Medusa no imaginário popular, uma figura berrante, que dá um grito de raiva e não de medo. “Para mim, é um final de mudança, de transformação. Como despertar e liberar tudo aquilo que está reprimindo”, ela complementa. A cicatriz é elemento de transformação, não de vergonha ou prisão.
E, infelizmente, Medusa bebe das mais pútridas águas dessa tal realidade. Assistindo ao avanço neopentecostal para dentro das entranhas da política brasileira, movimento responsável por grande parte do diálogo com a atual onda conservadora, a cineasta ressalta o quão perigoso essa relação íntima pode vir a ser. O problema, segundo Anita, está em interpretar a Bíblia a seu bel prazer, de uma maneira machista, homofóbica e que leva apenas o ódio ao diferente. Se a nossa libertação vier assim como nos momentos conclusivos de Michele e as Preciosas, só nos resta esperar pelos créditos finais.
Se você pudesse escolher 3 mulheres para trabalhar junto em um filme, vivas ou mortas, quem seriam e por quê?
Anita: “Vou ter que parar para pensar agora. A Madonna, por que não? Se pode sonhar alto, por que não a Madonna? Que está aí inovando desde sempre. Quem mais? A primeira que me veio à mente foi a Madonna. Adoraria trabalhar um dia com a Fernanda Montenegro, que eu acho uma grande atriz. E com a Viola Davis, sonhei alto, hein”.
Se você pudesse adaptar outro mito histórico, qual seria?
Anita: “Não sei agora (risos), acho que vou por outro caminho”.
Quais são seus próximos passos depois de Medusa?
Anita: “Estou começando a desenvolver dois projetos ao mesmo tempo, mas muito embrionários. Um já mais caro, então acho que na situação atual do Brasil, que os lançamentos são quase inexistentes para o Cinema, seria complicado. Eu comecei a desenvolver um outro, mas de momento eu estou, enfim, tentando me estabilizar como diretora, alguns outros trabalhos como diretora, porque até então eu tenho trabalhado mais como roteirista e agora, com o segundo longa, vou também tentar conseguir trabalhos em séries e pros outros, dirigindo, porque a minha paixão está mesmo no set. Enquanto isso estou desenvolvendo esses dois projetos, mas o financiamento é complicado no Brasil e, para mim, ter liberdade criativa é algo essencial. Daqui a pouco eu vou escolher qual dos dois eu vou tocar, mas eu sou uma pessoa que não consigo fazer mais de um projeto ao mesmo tempo não. Só faço um de cada vez”.
Depois de passar por Cannes, Toronto e pela Mostra de SP, Medusa está em exibição no Festival do Rio.