Raquel Freire
Uma pequena colônia religiosa isolada. Apenas homens têm o direito de ser alguém. Durante a noite, tranquilizante de vaca. Ao amanhecer, quando o coração ainda bate, uma ferida que não cicatriza. Quem fez isso? Ou melhor, qual deles ainda não fez isso? Dali nove meses, uma vida – se for menino, um aprendiz; se for menina, uma vítima. Certa noite, um rosto. Enfim, custódia! Todos eles saíram da colônia para ajudar com a fiança (é claro que eles saíram). Isso significou 48 horas Entre Mulheres. Três famílias debateram o futuro de todas as outras. “Não fazer nada. Ficar e lutar. Ou ir embora”. Permanecer na comunidade que as violou? Ou se afastar de tudo o que conhecem, principalmente do Deus em quem ainda depositam sua fé? Ao mesmo tempo, tudo e nada a perder.
Imaginar um cenário assim é angustiante, ainda mais sendo mulher. Lamentavelmente, a narrativa que sustenta Women Talking (no original) não é fruto completo da imaginação. Entre os anos de 2005 e 2009, mulheres eram drogadas e abusadas sexualmente durante a noite em uma colônia menonita na Bolívia, independentemente da idade. Miriam Toews, que cresceu em uma dessas comunidades em Manitoba, escreveu um livro que não reconta esse caso, mas passa a ser uma resposta idealizada a ele, uma em que as vítimas realmente possuem a oportunidade de lutar. Com um intelecto feroz, uma força imensa e um senso visionário de como refazer o mundo sob o olhar feminino, Sarah Polley o adapta para a Sétima Arte e o coloca na disputa pela estatueta dourada de Melhor Filme – o único dirigido por uma mulher nessa categoria do Oscar 2023.
Os filmes são meios visuais e aqueles que possuem muitos diálogos geralmente são considerados como não cinematográficos, mas Entre Mulheres foge dessa premissa. A confiança da diretora no material e em seus atores permite que as performances floresçam, e as interpretações impulsionam a história juntamente com a barragem das palavras. Essa é uma obra que faz exatamente o que precisa sem se complicar demais e que permanece integralmente fiel à sua premissa, evitando reviravoltas e subversões que poderiam apenas desvalorizá-la. Pessoas conversando umas com as outras pode ser uma experiência cinematográfica se a interação for boa e a atuação for do interesse do telespectador – Ethan Hawke e Julie Delpy na trilogia Before são prova viva disso, e o grupo que dá vida a Entre Mulheres também.
Rooney Mara (de Carol e A Ghost Story) é capaz de interpretar uma mulher com um coração bom demais para ser verdade da maneira mais coerente possível, enquanto Jessie Buckley (de A Filha Perdida) se afasta controladamente da rispidez defensiva de sua personagem com tal precisão que é possível sentir o exato segundo em que ela realmente reconhece o peso de tudo. Claire Foy (de The Crown) tem o papel mais vivo e, consequentemente, carrega os momentos mais emocionantes. A atriz é uma das presenças mais poderosas do filme, e a fúria de sua personagem é incandescente. O nível de atuação dessas mulheres traz um grau incrível de imensidão em cada close-up, e permite que longas cenas de diálogo se desdobrem com a excitação e a destreza de um filme de ação.
Concorrendo com filmes como Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, Nada de Novo no Front e Os Banshees de Inisherin, já era de se esperar que Entre Mulheres estivesse longe de ser o favorito ao prêmio de Melhor Filme. Entretanto, não é à toa que o longa se juntou à disputa. A grosso modo, pode-se dizer que uma obra indicada à categoria mais importante da premiação é reconhecida pela excelência de seu conjunto, e Entre Mulheres atende isso sem esforços. Com os mesmos produtores de Moonlight e Nomadland, e com uma trilha sonora criada por Hildur Guðnadóttir, a direção de Sarah Polley possui todos os ingredientes que agradam o paladar da Academia.
Se as chances de sucesso do longa na categoria mais esperada da noite são baixas, o contrário acontece quando se trata de sua segunda indicação: Melhor Roteiro Adaptado. O ponto mais forte do filme é o seu roteiro, e Sarah Polley teve uma incrível capacidade de dar espaço para que suas personagens se expressem mais profundamente do que se vê em produções hollywoodianas, de modo a tratar questões complexas do universo feminino de maneira contundente e, ainda assim, com delicadeza e respeito. Grandes produções têm chances de saírem vitoriosas nessa categoria, como Top Gun: Maverick e Glass Onion: Um Mistério Knives Out, mas nenhum script possui tanta sutileza quanto o de Entre Mulheres.
Mesmo que pareça que a trama é desenrolada em outro século, uma cena específica deixa claro que a história se passa em 2010 e as pautas trazidas pelas mulheres deixa mais claro ainda o quão atemporal elas são. As discussões envolvem a moralidade da violência, a natureza do verdadeiro perdão, a questão da masculinidade, o medo do desconhecido e o ódio ao familiar. Cada pergunta atada se desdobra em outra, e as conclusões a que chegam são de fundamental importância. É o próprio pensamento que as liberta e abre o caminho para o que o texto de abertura do filme descreve como “um ato de imaginação feminina”.
Sensível e maduro, Entre Mulheres é uma história dramaticamente impactante de mulheres que se unem em corpo e alma por sua liberdade e proteção. Todos os elementos que a compõem criam uma sensação de desolação e isolamento; no entanto, trata-se mais sobre a cura do que sobre a dor que grita por uma mudança, e só uma direção feita sob o olhar feminino poderia entregar isso. Sarah Polley deposita todo o seu talento no longa e retrata com primor o que todas sabem: só uma mulher é capaz de oferecer refúgio para outra.