Vitor Evangelista
Na Colômbia, uma família mágica vive de forma próspera, ajudando a comunidade que a cerca e mantendo a infraestrutura do local em perfeito funcionamento. Tudo muda, porém, quando a única neta sem poderes se encontra em uma sinuca de bico: se não remendar os buracos internos da fundação, todo o alicerce desabará. O principal obstáculo, obviamente, se encontra próximo demais do coração, na figura de uma Abuela impassível e imperturbável. Nasce assim Encanto, 60º filme da Disney, nada envergonhado em enfrentar o trauma geracional.
Não é segredo para ninguém que o setor de animações da Disney é expert em criar histórias envolventes, chamativas e terrivelmente identificáveis. Após a retomada dos contos de princesas, ao lado da sagacidade de Rapunzel em Enrolados, a empresa tem investido para além do maniqueísmo. Se em Frozen, Elsa e Anna precisam passar por cima de Hans, o grande vilão daquela história parece ser muito mais o monstro que habita a mente da loura gélida, e não apenas o cavaleiro em armadura brilhante.
O mesmo vale para a aventureira Moana, personagem que não se acanha frente aos temores de uma deusa de lava que outrora já atendeu por Mãe Natureza, porém só ascende ao título de vitoriosa quando entende que será necessário repensar toda sua conduta. Zootopia foge dos contos de fadas, mas desmascara a desigualdade sendo o grande capataz da paz e da prosperidade. Assim como Raya e o Último Dragão, longa que divide a categoria de Melhor Animação com Encanto no Oscar 2022, e se constrói mais na ideia da desinformação como mal do mundo do que qualquer outra coisa.
Também não é surpresa que com Encanto, primeiro filme ambientado em uma arejada e arbórea América do Sul, a casa do Mickey tenha decidido turbinar sua aparentemente simplória trama com requintes da dualidade que domina o Cinema nessa virada de século. De cara, conhecemos a simpática Mirabel (Stephanie Beatriz), uma jovem com sede de ajudar a família Madrigal, composta por indivíduos extraordinários, todos abençoados com dons provenientes de uma vela mágica que salvou a vida da avó anos atrás.
A primeira problemática é que Mirabel, diferente de sua mãe, seus tios, irmãs e primos, não recebeu presente divino nenhum. Pelo contrário, quando completou a idade padrão para a cerimônia, a chama que queima a mágica da casa não hesitou em negar Mirabel à porta que lhe daria, além de um quarto irado, a possibilidade de se provar à Abuela Alma (María Cecilia Botero) e aos demais que vivem junto dela. Com esse fardo nas costas, a protagonista de Encanto já inicia sua jornada com um pesar gigantesco no peito, e uma espécie de bolor encardido que, não importa quantas esfregadas de sabão leve, insiste em continuar ali.
Mas não se acanhe, Encanto não tem nada de lúgubre ou baixo astral. Tanto é que o prólogo musical, ao som da vibrante The Family Madrigal, faz questão de nos apresentar a cada um dos rostinhos da vez. Da avó estátua-viva ao atrevido primo Camilo, à bondosa mãe Julieta, ao desastrado pai Agustín (Wilmer Valderrama) e ao misterioso tio Brun… Não! Não falamos do Bruno! (Pelo menos, ainda não). Comandada pela dicção atropelada e quase impossível de entender sem uso das legendas de Mirabel, a canção que abre Encanto dá o tom da empreitada.
A periculosidade de pisar fora das linhas delimitadas e desapontar a família ronda a personagem, e o ápice desse sentimento ruim acontece na cerimônia de iniciação do pequeno Antonio, o Madrigal caçula. Afoito e ligado à prima, o filho mais novo de Pepa (Carolina Gaitán) e Félix (Mauro Castillo) acaba com o dom de falar com os animais, mas ao passo que a casa toda vibra em celebração da continuidade do encanto, Mirabel sobe e desce as escadas, pedindo aos céus e à vela um milagre. Nesse momento, Stephanie Beatriz mostra a que veio e solta a amargura e a pitada de inveja dormente que a garota cultiva em Waiting on a Miracle, que como boa balada para chorar as pitangas, serve de catalisadora para a jornada da heroína de Mirabel pelo filme.
Entre as lamentações, ela nota rachaduras na fundação da Casita (uma versão mágica, em terapia e medicada da Casa Monstro). O terror, que antes era sinônimo de monstros e de rocas de fiar, agora se materializa na literal demolição de tudo que foi construído no passado. O medo do hoje é pior que o de ontem, pois vilões podem ser derrotados com espadas cintilantes e poções cozidas, mas a falta de uma casa não pode ser combatida com super poderes.
De onde vem esse medo de perder o lar, se não de dentro de si? Como sutilmente nos apresenta entre o número de abertura e o comportamento dos coadjuvantes, o filme da Disney concentra sua figura antagônica na Abuela. Ela não é propriamente uma vilã, mas nessa era dúbia e cinza das aventuras animadas, a idosa serve como antítese ao que Mirabel crê como correto e justo. O trauma geracional, passado como uma canção de ninar por essa família, é co-protagonista da história.
Em Julieta (Angie Cepeda), encontramos a proatividade de sempre estar a postos e acudir qualquer um que precise de ajuda. Em Pepa está a força da natureza em metamorfose: emotiva, a mulher enfrenta tempestades e nevascas para ter seus sentimentos validados. À maneira como criou seus filhos, sem pai e sem o auxílio de ninguém, Abuela traumatizou e implantou sensações de sabotagem, pavor e desonra frente a qualquer mínimo erro ou confusão.
E, sendo parte fundamental da infância dos netos, o mesmo se repetiu. Isabela (Diane Guerrero) repele qualquer ação fora do comum, Luisa (Jessica Darrow) precisa da validação contínua, Dolores (Adassa) escuta todo mundo mas ninguém a ouve de verdade, Camilo (Rhenzy Feliz) muda tanto de forma que mal reconhece a seu eu verdadeiro no espelho, e Antonio (Ravi Cabot-Conyers), o mais sortudo do bando, provavelmente não precisará encontrar em seu dom uma maldição interna, já que o filme trata de sanar, pelo menos por ora, a passagem constante de abalo emocional.
Claro que muitas dessas suposições são exatamente isso, ideias germinadas ou sugeridas pelo texto de Charise Castro Smith, Jared Bush, Byron Howard, Jason Hand, Nancy Kruse e Lin-Manuel Miranda, mas que não se encarregam de tomar forma, com ação, reação e consequência. O charme de Encanto, talvez até mesmo o grande e valoroso dom do filme, seja a economia: instigar a curiosidade quanto às motivações de personagens coadjuvantes, suscitar pequenas discussões e focar no plano maior, o que envolve o tio, a avó e a neta.
No momento em que tudo da cultura pop é potencializado à enésima vez, as ambições de Encanto são, por incrível que pareça, mundanas. Com os X-Men latinos da Disney em mãos, o foco foi mínimo nos poderes. O enfoque é a história, é o seguimento dos atos que resultam no coro de All Of You. Por enquanto, tirar o leite das habilidades de Pepa, Julieta ou Camilo não é prioridade. Mas, se tratando da empresa que deu sinal verde a uma série focada no Gastón, podemos esperar mudanças nebulosas no futuro.
Quando o assunto é Oscar, Encanto chegou com força de campeão. Além de figurar em uma lista de Melhor Animação com três quintos de representantes da Disney, o filme atravessou a barreira do formato e se firmou na disputa de Melhor Trilha Sonora Original, com créditos à compositora Germaine Franco, primeira latina a disputar o prêmio e primeira mulher a compor canções para um filme do estúdio. Quando desafiada a encontrar a Música que moveria a trama, ela relata que buscou “o som do realismo mágico”.
Indo em total concordância ao tema do filme, é realmente notável a construção de mundo aqui. Partindo do barulho emitido pelos pisos e telhas de uma Casita em constante estado de euforia até o bater das asas de uma borboleta recém-nascida e o farfalhar de mãos de ratos maquiavélicos, o ecossistema de Encanto respira o ar livre da Colômbia e o transmite com eficácia a quem assiste atônito as cores e as flores. Em What Else Can I Do?, epítome narrativo de Isabela, a tela fica pequena para o campo áureo e afrodisíaco produzido pelos impulsos da garota.
A ambiguidade de “Que Mais Vou Fazer?”, que pende para o lado do mistério para o futuro (uma contemplação e dúvida do que o amanhã guarda para si e seus poderes) e também para uma aceitação do âmbito atual (afinal, não há nada mais a ser feito além do que já foi), a canção de Diane Guerrero se presta a libertar, de uma vez por todas, a filha dos sonhos de uma prisão de expectativas e deveres. Ela não quer casar com o Mariano, por mais aveludada que a voz de Maluma possa soar. Nem mesmo continuar a florescer flores rosas com detalhes em amarelo.
Mais cedo, no almoço que pretende selar o destino de Isabela, ela, com medo e receio do que virá por aí, produz uma única flor branca. Um broto invisível e logo descartado pela Abuela, em mais uma das sutilezas de Encanto. Mais tarde, ao lado de uma Mirabel com avidez em resolver os problemas da família, Isa não hesita em se lambuzar nas imperfeições. Mais suja do que universitária em festa da atlética, a menina abraça a imprevisibilidade do que poderá cultivar.
E o medo de sair dos padrões acaba afetando todos ao redor da avó. Na música de Luisa, Surface Pressure, a irmã forte chega a tremer de medo e nervoso, apenas considerando a hipotética possibilidade de não ser boa ou forte o suficiente. Tudo isso enquanto carrega uma porção de burros e luta contra o cachorro que guarda o Inferno e o iceberg que afundou o Titanic.
Para os Madrigal, é mais fácil descer a lenha em vilões de Cinema do que questionar a Abuela e pedir que ela não seja tão autoritária quanto o é. A sabedoria do filme, que em momento algum se esquece do seu rótulo da Disney, é salpicar esses momentos de emoção bruta com humor: está mentindo quem não esboçou um risinho com Luisa dançando coreografias mirabolantes ao lado dos burros que leva nas costas.
A Música de Encanto, partindo das composições originais de Germaine Franco até as canetadas precisas de Lin-Manuel Miranda, é o que torna o filme vivo em sua plateia. Embora a disputa no Oscar conte com a melancólica Dos Oroguitas, canção em espanhol que nos apresenta a visão de Abuela da tragédia que acendeu a vela do encanto, quem estourou nas paradas foi We Don’t Talk About Bruno. O ocorrido foi o seguinte: com data marcada para chegar às salas em novembro do ano passado, período em que as variantes castigavam os cinemas, a equipe criativa do filme decidiu campanhar em cima da balada das lagartas, uma aposta segura quando o assunto é reconhecimento.
Alguns anos atrás, notas semelhantes eram entoadas na vencedora do Oscar Remember Me, de Viva: A Vida é uma Festa (e quem leu o nome dos vencedores, foi, por acaso, Miranda). O inesperado veio na forma ascendente do TikTok, e seus desafios virais com o coral de Encanto. Da noite para o dia, todos estavam indo contra os Madrigal e explicitamente falando sobre o tio Bruno (John Leguizamo). Afinal, depois de anos trancados em casa, distantes da família e dos amigos, o mundo precisava de um ritmo envolvente, criativo e que simbolizasse com afinco a força dos musicais.
Quando um grupo se reveza entre os versos de Mirabel, Pepa, Dolores e Camilo, é criado um sentimento de pertencimento, uma sensação de vínculo que só uma arte em pulsação como a Música pode oferecer. Não falamos do Bruno, não, não, não… A não ser que seja na forma da canção que quebrou recordes históricos, reviveu a Disney nas paradas de sucesso, onde o último triunfo havia vindo na forma de uma poderosa Let It Go. Claro que, com as redes sociais e uma pandemia a seu favor, Bruno foi muito afortunado pelas condições de seu lançamento e repercussão. Mas, mesmo assim, não é o bastante para ganhar o Oscar (uma performance ao vivo, no entanto, já está confirmadíssima).
Tanto pela força de Billie Eilish cantando sobre tempo perdido em timbre de 007, quanto pelo protagonismo de Dos Oroguitas. Mas Miranda, o compositor, diretor, roteirista, criador e artista mais influente dos últimos ciclos, não vê demérito nenhum nisso. Ele acredita que a balada expressa com verdade a mística de Encanto, e sente orgulho da única composição que realizou em sua língua materna. O nova-iorquino tem experienciado uma avalanche de aclamação e prestígio, partindo do arrasa-quarteirões Hamilton (que lhe rendeu 3 letras do EGOT), e agora, depois do envolvimento em Em Um Bairro de Nova York, Vivo e tick, tick… BOOM!, chega ao Oscar 2022 sob a bandeira dos Madrigal.
Guiada pela voz de Sebastián Yatra, ator que interpreta o avô Pedro, Mirabel enfim reconhece os sacrifícios da Abuela, uma mulher muito machucada pela vida. Na sequência, vemos Alma e o marido se conhecendo, se apaixonando e contentes da vida com a gravidez de trigêmeos. A tragédia a seguir muito provavelmente faz referência à Guerra dos Mil Dias, conflito civil armado que tomou parte entre 1899 e 1902, causando a morte de muitos cidadãos da Colômbia, e dando aos sobreviventes o status de refugiados. Preocupação da Disney nascida em Mulan e Tarzan, a inserção de elementos culturais que moldaram uma civilização se seguiu com Moana e agora atravessa Encanto com a voracidade necessária para que a cristalização de uma Abuela impenetrável e ímpia soe condizente com sua história de origem.
De fato, os paralelos são claros entre a cena de abertura, quando o filme apresenta o conceito e os primórdios do encanto, com a revelação crua do assassinato de Pedro e o sofrimento de Abuela Alma. Se no começo assistimos a avó chorar comedida, no final ela desaba e aceita a força do luto e da grande desgraça que foi obrigada a viver. Apenas ao lado de uma igualmente confiante e temerosa Mirabel, a idosa aceita que o trauma que a gerou acabou sendo injustamente transmitido em forma de condição genética aos seus descendentes. Como boa protagonista moderna que é, Mirabel Madrigal não se detém a impactar uma única jornada pessoal, se debruçando sobre uma revolução em micro. Graças a ela, todos os familiares mudaram.
“O milagre não é alguma mágica que você tem, o milagre é você”, canta o coro que finaliza Encanto. Foram necessários traumas, rachaduras, um terremoto interno e outro externo. Foram precisos fugas, mentiras e perdão. No fim, o encanto não era a super força, as flores mágicas ou a nuvem acima da cabeça: Abuela entende seu novo papel, Mirabel aprecia seu dom, Bruno é recolhido e acolhido pela família.
Quando ressurge, o tio é recebido com os olhares assustados e satisfeitos das irmãs Julieta e Pepa, que o abraçam como se ele nunca tivesse sumido. Embargada, a avó canta para sua amada família, mas também para a civilização que os acolhe, como Bruno acabou de ser acolhido. Ciclos precisavam ser partidos e despedaçados, o vidente previu e fez disso sua sina de prisioneiro. Dito e feito, para resolver esse pepino, Mirabel resgatou a esperança dessa Colômbia realisticamente mágica, convidativa, relacionável e sedutora de tão multifacetada.