Nicole Saraiva
“Loirinho não p****, meu nome é Pedro Dom”
A história do bandido gato inimigo número um do Rio de Janeiro foi curta, mas fez muito sucesso nas manchetes brasileiras no começo dos anos 2000. Pedro Machado Lomba Neto e sua gangue foram conhecidos e temidos por conta de assaltos realizados em edifícios de luxo e esquemas de corrupção policial na zona nobre fluminense. O conhecido como Pedro Dom também sofria com o vício em drogas desde muito novo, tendo passado por diversas internações ao longo de seus 23 anos de vida, fato que é abordado durante o desenvolvimento do personagem na nova produção nacional do Amazon Prime Video, DOM.
Cheia de nuances e detalhes, essa história chegou nas mãos talentosas do cineasta Breno Silveira, muito conhecido pelo sucesso 2 Filhos de Francisco, ao ser procurado por Luiz Victor Lomba, um policial da reserva que, nos anos 70, se aliou ao exército no combate da chegada de cocaína no Brasil. O pai de Pedro Dom gostaria de contar a vida do filho em uma tentativa de retratar um outro lado dessa figura tão emblemática na história do crime organizado do Rio de Janeiro. Os próximos passos você já sabe: a série DOM foi lançada no dia 4 de julho, bateu recordes de audiência e, hoje, carrega o título de produção internacional original mais assistida da plataforma. Inclusive, já foi renovada para uma segunda temporada.
A série baseada em fatos reais surpreende e emociona, humanizando o caso famoso dos anos 2000. Mas, o que torna DOM esse sucesso nacional? O conjunto da obra. A bela fotografia retrata muito bem a cidade do Rio, e pode lembrar produções como Cidade de Deus, principalmente quando o cenário é o morro, o detalhe da câmera na mão deixa a narrativa bem mais realista. A equipe fez um ótimo trabalho com a ambientação e é perceptível as diferenças conforme as mudanças de época, mas não poderíamos esperar menos da Conspiração, produtora independente latinoamericana muito popular no Emmy Internacional.
O enredo, que vai além da biografia e da vida do crime, mostra intimamente a relação entre pai e filho, e como a trajetória de Victor e Pedro afetou e desgastou sua família. A trama em si retrata um problema social, o tráfico de drogas, contando isso de uma forma não linear, viajando entre os anos 1970 e 2000, e criando um paralelo de causa e consequência. Sua premissa busca entender porque Victor (Flávio Tolezani), um policial de elite que combatia o crime desde a adolescência, não foi capaz de impedir a cocaína de entrar em sua casa, e o que fez Pedro (Gabriel Leone), seu filho, chegar aonde chegou.
A série criada por Breno Silveira e dirigida também por Vicente Kubrusly tem uma pegada mais intensa e pode ser muito pesada em alguns momentos, o que torna difícil assistir e digerir tudo de uma única vez, sendo necessário algumas pausas para respirar e refletir o que acabou de ser visto. O debate retratado na tela te faz pensar sobre qual a real extensão do vício, e até que ponto o usuário é capaz de ir para sustentá-lo. Pedro tenta, em diversos momentos, sair da vida do crime e das drogas, mas, como um ímã, ele é atraído de volta para esse universo. A vulnerabilidade que o personagem apresenta não o torna menos violento, e portanto não justifica suas ações agressivas, tornando Dom uma figura imprevisível e instável, que fisga a atenção do telespectador durante as cenas. Essa dualidade do protagonista o torna humano e deixa o público em uma sinuca de bico, pois é possível simpatizar e querer torcer por sua melhora, mesmo sabendo que ela não virá. A grande sacada de Breno Silveira é não nos deixar esquecer que essa é uma história real com começo, meio e um triste fim que se aproxima.
Um ponto positivo da produção é a maneira com a qual eles lidam e trazem o racismo incorporado na história, seja nos personagens que veem Lico (Ramon Francisco) como a verdadeira má influência do melhor amigo Pedro, apenas pelo fato de ser um jovem negro, filho da empregada e morador do morro, ou no processo da formação da quadrilha. Pedro Dom e Viviane (Isabella Santoni) eram os responsáveis pela invasão dos condomínios, já que, por serem jovens brancos, loiros e de olhos claros, eles não geravam desconfiança dos seguranças dos locais. Esses elementos mostram como o racismo estrutural está intrinsecamente enraizado na nossa sociedade, por mais que essa palavra não seja mencionada ao longo da história.
DOM tem suas falhas, e o departamento de som é uma delas, já que ele empobrece alguns diálogos, acaba ficando claro em algumas cenas que ele foi inserido depois e o tom já não é mais o mesmo, mas nada que prejudique a experiência do público. A produção também peca em alguns detalhes de caracterização, as lentes de contato azuis usadas por Gabriel Leone são difíceis de engolir, mas você acaba se acostumando ao longo dos episódios devido às ótimas atuações do elenco.
O que, inclusive, vale uma menção honrosa para a Rede Globo e a Malhação, sua academia de jovens atores, já que boa parte do elenco começou a sua carreira na novelinha. Mas o grande trunfo da produção é o trabalho conjunto de Gabriel Leone e Flávio Tolezani, que brilham em tela como pai e filho, Os dois atores carregam muita química e dinamismo, principalmente nas nuances da diferença entre a adolescência e a vida adulta de Pedro, visto que Leone interpreta o personagem em ambas as fases.
O complexo herói que vemos em Victor origina algumas cenas pouco críveis, o que por vezes incomoda, desafiando a nossa inteligência e nos fazendo pensar “como será que ele saiu vivo dessa?”. No entanto, isso não é culpa do trabalho de Tolezani e sim do roteiro de Breno Silveira, Fábio Mendes, Higia Ikeda, Carolina Neves e Marcelo Vindicatto. Recentemente, chegou ao público uma carta aberta escrita por Érika, irmã mais velha de Pedro Dom, expondo situações que vão além do questionamento de se a produção DOM é boa ou não.
O fato é que, se tratando de uma história real e, principalmente, de uma história recente, a produção revive anos de traumas e momentos difíceis da vida de uma família. Pedro tem uma irmã, um filho e uma mãe, que não autorizou e nem consentiu com a produção dessa série, e hoje sofre muito com a forma que a trajetória do seu filho foi retratada nas telas. Inclusive, segue lutando na justiça para entender, nas palavras de Érika, como a sua história de vida com seu filho e a morte do mesmo se tornaram um produto pronto para consumo. Realmente tudo é válido em nome do entretenimento?
A representação amorosa, turbulenta, porém muito devotada ao bem-estar de sua família, retratada através de Victor, seu ex-marido, não condiz com a realidade. Tanto que, de acordo com a família, muito da intimidação e violência que Pedro praticou foram aprendidas com ele. Hoje, Victor Lomba não está mais entre nós, foi vítima de um câncer de pulmão no final de 2018 e acabou não vivendo para ver a produção sendo lançada. Morreram junto com ele os acordos financeiros fechados naquele mesmo ano para DOM, cujo dinheiro dos lucros nunca foi entregue à família. Um dinheiro que deveria estar sendo investido na criação de seu filho Pedrinho, de 16 anos, que está em tratamento psiquiátrico para ansiedade e depressão, e ainda tem que lidar com a procura da imprensa por uma declaração.
A obra então apresenta uma série de inconsistências com a realidade, o que não seria um problema caso ela fosse apenas baseada em fatos reais, mas ela se vende de maneira quase bibliográfica e se sustenta em apenas um lado da história. Como um entretenimento, isso não prejudica DOM em nada, porém, do ponto de vista humano e empático, ela não deveria sequer existir, quem dera ser a produção internacional mais vista da plataforma. A narrativa não é fiel, ela engana e abre dores muito profundas.
De fato, a vontade da família não foi respeitada, a mãe Nídia Sarmento e a irmã Erika Grandinetti buscaram a justiça em 2019 para impedir a exibição da série, agora lutam para embargar o lançamento de uma segunda temporada. Concluindo, existem muitas problemáticas na produção, mas essas são discussões extensas e profundas sobre um sistema, a indústria cinematográfica em si e a reprodução de narrativas errôneas, o que levaria muito mais do que um texto inteiro.
O elenco também conta com Laila Garin e Mariana Cerrone, como mãe e irmã de Pedro, respectivamente, que trazem muita emoção para a dinâmica familiar do protagonista, mostrando esse lado humano de que, apesar de um criminoso, o jovem, de fato, tinha uma família que o amava e queria vê-lo em uma melhor fase. Jasmin (Raquel Villar), Viviane (Isabella Santoni), Lico (Ramon Francisco) e Armário (Digão Ribeiro) são os integrantes do Bonde, a quadrilha de assaltantes que aterrorizou o Rio. Eles trazem a ação para a trama, protagonizam algumas das cenas mais intensas e é possível perceber muita entrega dos atores para os personagens.
Durante o núcleo dos anos 70, temos o incrível Fábio Lago, presente em diversas produções brasileiras de sucesso, – incluindo a recém-lançada Cidade Invisível, da Netflix – interpretando o dono do morro Ribeiro, e Filipe Bragança como o jovem Victor Dantas. Eles fazem uma boa dupla, contracenam bem juntos e funcionam como um spin-off dentro da própria narrativa, lá é possível ver momentos de humor e tensão, e serve para justificar quem o pai se torna no futuro, um homem carregado de traumas adquiridos em seu tempo como policial infiltrado. Os dois intérpretes do Victor em diferentes fases da vida têm um trabalho de construção do personagem muito consistente, visto que Filipe tem um desenvolvimento bem construído em frente às telas e se destaca dentre os jovens atores.
A série, no geral, é um bom drama policial, cativa, emociona e mantém o ritmo e o interesse do espectador até o último segundo. Quem busca uma boa produção com ação e drama dificilmente não gostará de DOM, e quem vive no Brasil entenderá as diversas problemáticas raciais e sociais que ela aborda. E trabalha muito bem em cena a maneira com a qual a milícia opera no Rio de Janeiro, colaborando para a continuidade do crime organizado. No fim, quem deveria proteger a população coloca seus interesses pessoais à frente e incentiva esse ciclo de violência a continuar. De fato, a história de Pedro Dom é regada de racismo institucional, desigualdade social, corrupção e violência. Uma parte do nosso país que adoramos ignorar.