Jho Brunhara
Poder e território estão atrelados desde que o primeiro homem cercou um pedaço de terra e chamou de seu. Em meu texto mais recente publicado no Persona, discuti sobre os problemas que o nacionalismo gera. Coincidentemente, Do Not Split (不割席) é mais uma produção que retrata perfeitamente os perigos de nações soberanas e minorias execradas. Nesse documentário em forma de curta-metragem dirigido pelo norueguês Anders Hammer e produzido pela americana Charlotte Cook, acompanhamos os protestos de Hong Kong de 2019 e 2020 contra a tentativa de criação de uma Lei de Extradição entre a ilha e a China continental, que ameaçaria a autonomia e liberdade jurídica honconguesa.
Eventualmente, as manifestações evoluíram para o lema “cinco demandas, nenhuma a menos”: retirar completamente o projeto da Lei de Extradição; não caracterizar os protestos como motins; retirar acusações contra manifestantes que foram presos; organizar uma comissão independente para investigar abuso de força policial; e a renúncia de Carrie Lam, atual chefe executiva, e a implementação de um sufrágio universal para eleição do Conselho Legislativo e chefe executivo.
Contexto rápido da situação entre Hong Kong e a China continental: a ilha era parte da Dinastia Qing até 1842, quando foi forçadamente entregue ao Império Britânico através do Tratado de Nanquim. Em 1972, a República Popular da China solicitou que Hong Kong fosse removida da lista da ONU de territórios não autônomos, impedindo que tivesse o direito de declarar independência. Em 1984, foi estabelecido um novo acordo entre Reino Unido e China: a soberania de Hong Kong seria devolvida ao território chinês, processo que foi concluído em 1997. Entre os termos para a ‘devolução’, os principais garantiam que a ilha mantivesse a diferença de seus sistemas econômico, político e jurídico após a transferência, e o desenvolvimento futuro de um governo democrático. Também foi criada uma semi-constituição, a Lei Básica de Hong Kong.
Nos últimos anos, o descontentamento dos honcongueses vem das diversas investidas do Partido Comunista Chinês, que representa a China continental. Além da retórica contra o sistema político e jurídico da ilha, há uma tentativa constante de desconsiderar as garantias democráticas da Lei Básica. A distância entre os dois lados aumenta também por diferenças culturais: Hong Kong não foi igualmente influenciada pela revolução político-ideológica de Mao Tsé-Tung, e a ilha tem como língua predominante o cantonês, em contraponto ao mandarim na China continental.
Então, chegamos em Do Not Split. O documentário de Anders Hammer está o tempo todo no olho do conflito, às vezes até perto demais. Ao longo de um ano de gravação, somos colocados dentro das passeatas, como a de 16 de junho, que reuniu duas milhões de pessoas segundo a Civil Human Rights Front. Estamos na linha de frente, ao lado de manifestantes enquanto preparam coquetéis molotov, enquanto tossem pelo gás lacrimogêneo e correm das balas de borracha (ou balas reais) utilizadas pelos soldados chineses. Ficamos presos dentro da Universidade Chinesa de Hong Kong durante um cerco policial, e dormimos no chão da pista de atletismo. Nos escondemos dentro de edifícios comerciais, protegidos pelos locais. Assistimos dezenas, centenas, milhares de prisões e brutal violência da polícia. Sonhamos com uma resolução democrática, e infelizmente, tememos, junto aos ativistas e civis, a evolução da ameaça contra as liberdades políticas de Hong Kong.
As imagens de Hammer são espetaculares, inspiradoras e dolorosas, e a narrativa e a importância política não ficam atrás. Não à toa a produção está indicada ao Oscar de Melhor Documentário em Curta-Metragem, e já é a terceira nomeação da produtora Field of Vision. Infelizmente, o fato de Do Not Split estar concorrendo ao Oscar fez com que autoridades chinesas proibissem a exibição da premiação no dia 25 de abril em todo o território. A decisão da China só dá respaldo ainda maior para o curta, que acaba também entrando na luta contra a censura e se estabelecendo como resistência.
Em 30 de junho de 2020, o Congresso Nacional do Povo chinês implementou a controversa Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, com objetivo de impedir protestos e banir qualquer ato ou atividade que o governo considere como uma ameaça à China. A nova legislação também permite que as agências de segurança nacional do governo chinês operem na ilha. Desde que entrou em vigor, centenas já foram presos sob os novos termos, e outros vivem em constante medo de represálias, já que as condenações podem chegar a 30 anos de encarceramento. Os manifestantes continuam a buscar formas de continuar com o movimento, e como o próprio título do documentário sugere, eles não vão se dispersar.