Enzo Caramori
Se a vida real, capturada em seu fluxo, for passível de ser ficcionalizada para ser compreendida, o documentário português Distopia (2021) é um filme de terror que desde seu início já desmascara os seus monstros. Representando Portugal no repertório da Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o filme introduz o fantasma da gentrificação como o motor dos desterramentos e demolições que atravessam a cidade do Porto, em um retrato de treze anos da vida dos bairros de Bacelo, Aleixo e Fontainhas. Dirigido por Tiago Afonso, a forma documental encontra sua força ao direcionar a câmera tanto aos sujeitos atravessados por essa desterritorialização quanto aos espaços e ruínas, o que constitui uma espécie de anti-documento nessa condição de filmar o que está na iminência de não mais existir.
Distopia é uma narrativa audiovisual de emergência, na qual o imediatismo da filmagem é evidenciado por um gesto que, em um primeiro momento, quase não é cinematográfico. É mais uma construção de um álibi aos processos de injustiça vivenciados pelas pessoas, tanto as hostis quanto as receptivas às lentes de Afonso. O primeiro capítulo é pontuado em 2007, enquanto o espectador acompanha uma comunidade cigana, habitante das barracas da Rua do Bacelo, em suas tentativas de resistência ao despejo e de articulação com o poder público, personalizado pela figura de Rui Rio, o Presidente da Câmara Municipal do Porto na época. O diretor intercede nas discussões — em defesa da ocupação —, além de traçar uma tentativa de reinstalação da experiência pública de comunidade, sob a ótica da comunidade.
Inicialmente, os furtivos registros não eram feitos com o intuito de uma unidade narrativa, sendo ligados posteriormente pela brutal espinha dorsal que é a constância dessas violências. Talvez fosse possível compor um longa-metragem interminável, no qual ainda residiria o ativismo do fazer Cinema na luta para evitar que lares e histórias fossem despossuídas. Tanto que as gravações nos conjuntos habitacionais do Aleixo e na Feira da Vandoma, em Fontainhas, inicialmente pareciam ser paralelas. No entanto, logo se revelaram tangentes pelo mesmo futuro: a aniquilação de qualquer alternativa de vivência coletiva em prol do modelo capitalista de cidade funcionalista.
Os treze anos encapsulados em 62 minutos instigam, para além de um atestado da permanência dos movimentos de desalojamento, uma reflexão sobre a permanência desses lugares e dessas personagens na memória coletiva. Esse esforço se expressa no exercício de Afonso de colocar as crianças moradoras do Aleixo detrás das câmeras, tornando-as diretoras, em um exercício de descrição de suas colegas frente às câmeras. Essa é uma das tentativas de dar voz à materialidade dos afetos e da infância, perdida pela destruição de inúmeras moradas sob o pretexto de sanitização social frente ao tráfico de drogas, além de, claro, deixar o terreno pronto a projetos arquitetônicos de luxo.
De 2007 a 2021, Distopia é uma teoria de gentrificação que renega prédios modernizados e apáticos, escolhendo desenvolver a experiência através da voz daqueles que foram mutilados por seus efeitos. Além do passeio temporal, subjetivo e geográfico, o título português é também um perambular estético sobre a transformação das fontes visuais e sonoras que estruturam os retratos de despossessão das comunidades de suas habitações e de suas práticas de sociabilidade. O objeto do olhar é variado: ratos mortos, destroços, multidões e barracos improvisados tomam a tela. Embaixo de viadutos, com caixas de som e olhares distantes, se rememoram as (re)existências de outros modos de viver em outros ritmos. Memórias essas de quando se era possível existir em um espaço com liberdade; onde reinava a brincadeira de crianças contra a crueza de uma cidade que não mais é um direito, mas sim um decreto de expulsão.