O que esperamos de histórias biográficas? Quando olhamos para o passado e para as pessoas que viveram nele, buscamos nos identificar com elas? Ou apenas recontextualizar suas vidas e seus modos para inferir sobre nossa própria contemporaneidade? Buscamos fundo em seus registros para demarcar a fidelidade com nossa atual realidade ou apenas nos contentamos em preencher as lacunas de suas vidas para servir às histórias que desejamos contar, usando suas carcaças como figurinos e suas faces como máscaras?
Toda história é, por sua natureza, uma fantasia. Até quando buscamos representar factualmente determinados eventos, inevitavelmente olhamos para o passado e o registramos conforme nossas interpretações. Mesmo na ficção histórica (e talvez especialmente nela), que se preza na verossimilhança e acuidade de seu contexto, a procura por criar uma representação factual da realidade, por mais meticulosa que seja, não passa de vaidade. Uma série como Downton Abbey provavelmente possui mais pontos em comum com The Witcher do que com a vida da aristocracia britânica no século XX, mesmo que sua apresentação tente te convencer que não.
Durante três exímias temporadas de Televisão, Dickinson nos ofereceu um vislumbre do que é possível se alcançar quando deixamos os fatos de lado e paramos de nos importar com a coesão do passado como uma fantasia. A série da Apple TV+ deixou sua marca ao encarar seus anacronismos não como erros, mas como ferramentas para contar a história dos anos formadores de uma das mais famosas poetisas da Literatura americana. Entre 2019 e 2021, acompanhamos o crescimento de Emily Dickinson (interpretada pela brilhante Hailee Steinfeld) como artista, amante e uma pessoa que viveu não só em seu tempo, mas muito além dele.
O primeiro ano da produção estreou com o serviço de streaming da Apple e, junto com outros seriados como The Morning Show e See, procurava fisgar novos assinantes para a plataforma. Diferente deles, no entanto, todos os seus oito episódios ficaram disponíveis imediatamente, seguindo o formato estabelecido pela Netflix. Seja por não confiar que apenas o nome de Hailee Steinfeld fosse suficiente para trazer o público jovem ou pela falta de fé em uma comédia histórica, fato é que Dickinson se provou forte o bastante em sua narrativa para angariar uma recepção majoritariamente positiva, apesar de sua premissa rebelde e de seu elenco nem tão famoso. Na verdade, o maior obstáculo de sua primeira temporada está justamente em tal formato, que falha em reconhecer o ritmo dos capítulos episódicos, e seriam melhor aproveitados semanalmente, o que foi remediado em temporadas seguintes.
Grande parte dos roteiros assinados pela criadora da série, Alena Smith, são focados na ânsia de Emily em ter seu trabalho apreciado e, especificamente, como ela, uma mulher que recusou ser publicada diversas vezes, se relacionava com o conceito de fama. Em Dickinson, sua personagem central tem a liberdade de existir não como um registro, mas como uma interpretação passível de mudanças, crises, defeitos e genialidade. E ninguém seria capaz de entregar essa personagem com mais confiança do que Hailee Steinfeld.
Indicada ao Oscar com apenas 14 anos por seu trabalho em Bravura Indômita (2010), a jovem atriz foi capaz de escolher trabalhos com cautela e paciência, além de experimentar com Música e dublagem, onde foi aclamada por seus papéis em Homem-Aranha no Aranhaverso e Arcane. Com uma carreira ainda jovem e um dos exemplos do papel da fama na era digital, Steinfeld encarna uma Emily Dickinson ainda crescendo para se tornar a poetisa que viria a ser, mudada tanto pela interferência de sua família quanto pelos eventos ao seu redor. Sua interpretação dá vida ao texto de Smith, que encontra nela a figura perfeita da heroína-poeta da série, refutando e recontextualizando as ideias que temos da figura histórica antes de conhecê-la.
Mesmo tendo sido avisada pela figura da Morte (interpretada por um Wiz Khalifa insanamente descolado) de que há uma guerra a caminho, na qual “irmão lutará contra irmão”, a maior parte da primeira temporada retrata a sociedade (majoritariamente branca) de Amherst, Massachusetts em estado de negação. Todos se preocupam com os atritos entre Norte e Sul, bem como o sofrimento dos escravizados, mas para a alta classe, é apenas uma diferença de opinião, carecendo de um peso real em suas vidas. Essas angústias se fazem presentes principalmente em Henry (Chinaza Uche), um empregado negro dos Dickinsons que eventualmente começa um jornal clandestino em Amherst com a ajuda de Austin. Até mesmo Emily têm de encarar sua própria posição social quando implora para que ele aceite o papel de Otelo em sua peça no quinto episódio, Eu tenho medo de possuir um corpo.
Além de Emily e sua família e amigos, aparições especiais recorrentes de grandes nomes da Literatura americana (quase sempre interpretados por grandes nomes da comédia americana) compõem a sátira histórica da produção, que frequentemente reexamina seus próprios limites com base em sua trama anacrônica. Além de contemporâneos como Henry David Thoreau (John Mulaney) e Louisa May Alcott (Zosia Mamet), a série também arruma jeitos inventivos de fazer a poetisa se encontrar com o já então falecido Edgar Allan Poe (Nick Kroll) e Sylvia Plath (Chloe Fineman), escritora que só nasceria no século seguinte. Essa gama de oportunidades ajuda a criar um retrato dos Estados Unidos que, apesar de parecer caricato, o torna mais vivo e engajante do que uma simples produção de época.
Enquanto isso, todos os sonhos de Emily parecem de repente estar ao seu alcance, graças à introdução do misterioso Samuel Bowles (Finn Jones), um editor interessado em publicar os seus poemas. No que é talvez o melhor episódio da temporada (e talvez até mesmo o melhor da série), Eu sou Ninguém! Quem é você?, a poetisa fica literalmente invisível após ter sua poesia impressa no jornal de Bowles, e é capaz de vagar pela cidade ouvindo tudo que dizem a seu respeito, mas sem nunca respondê-los. No que se transforma em uma reflexão inventiva e divertida sobre reconhecimento e felicidade, as tramas de Emily e do futuro da América se entrelaçam junto de suas personagens e terminam com uma revelação chocante.
Apresentando uma história de amor complexa entre duas mulheres no coração de sua narrativa, Dickinson estabelece desde cedo sua dedicação a uma visão não-higienizada do queer no século XIX. Seja passeando em bares clandestinos na companhia de Walt Whitman (Billy Eichner) ou auxiliando um grupo de pacientes a escapar de um manicômio, tanto Emily quanto a série recusam a heteronormatividade de histórias de época e encontram na figura do “outro” um espelho da atualidade e uma celebração de suas vidas e dores. Não há como escapar do female gaze que Alena Smith e companhia jogam sobre os Estados Unidos dos anos 1800, nem da radicalidade das figuras históricas que viveram lá.
Como a estrofe final da poesia de Dickinson, a terceira temporada não demorou muito para chegar, estreando menos de um ano após a segunda. Seu último episódio foi poeticamente lançado na manhã da véspera de Natal, como um presente de despedida ao seu público cativo. Nele, Emily tem de mediar as tensões entre seu pai e Austin na tentativa de manter seu relacionamento com Sue, mas logo percebe que tanto a guerra que ocorre em volta deles quanto os conflitos pessoais talvez sejam maiores do que qualquer verso que ela possa escrever.
A série se derrama com vigor sobre o racismo no cerne de seu período histórico, em uma temporada dedicada à reflexão sobre o que o futuro reserva para ela e seu país. Ela expande ainda mais o papel de Henry, que agora busca educar os soldados do primeiro batalhão de negros dos Estados Unidos, enquanto passa por seus próprios conflitos internos. Também temos a inclusão da ativista Sojourner Truth, interpretada pela comediante e apresentadora Ziwe, que também trabalhou como editora dos roteiros da temporada, além de ter escrito O futuro jamais falou, episódio no qual Emily viaja no tempo junto de Lavinia através de um gazebo mágico e pode testemunhar em primeira mão seu impacto na história.
Apesar do crescente absurdo dessas premissas (no episódio seguinte Emily mergulha num submundo psicodélico em que confronta seus piores medos), o último episódio escolhe terminar dispensando euforia ou drama, numa paz serena que de maneira elegante traduz a vida de sua protagonista:
“Mesmo que eu não possa mudar o mundo, vou continuar escrevendo. Mesmo que ninguém se importe. Mesmo que não faça diferença alguma que tenha existido uma pessoa chamada Emily Dickinson que se sentava neste quartinho, dia após dia, e escrevia coisas apenas porque as sentia.”
Mas a verdade é que a força de Dickinson não está em nos contar como cada poema aconteceu, mas em tirar deles – o registro mais importante e longevo da vida de sua protagonista – a história de uma mulher que realmente viveu. Em pequenas coisas como o amor dela pelas flores, plantas e abelhas (alucinadas ou não) em seu jardim, na ironia mordaz de seus versos ou na obsessão com a morte e a rejeição da fama como a entendemos, a série incorpora o corpo de trabalho de Emily na própria fábrica de sua produção e se torna indivisível da mesma.
Essa falta de reconhecimento causa frustração, principalmente entre aqueles que acompanharam a série desde o seu princípio e testemunharam a evolução de sua narrativa. Porém, é importante ressaltar que, mesmo que Emily não tenha sido uma poeta publicada, ela nem por isso foi anônima. Parte de seu legado vive graças à extensa quantidade de poemas enviados a amigos, familiares e colegas que ela admirava e que a admiravam de volta. No episódio citado anteriormente, Emily descobre que há felicidade, e até mesmo euforia, nas alegrias secretas que compartilhamos com aqueles que amamos.
“Como os magos faziam, ela era capaz de fixar as aparições fantasmagóricas que passavam por seu cérebro, remetendo-as de volta, em forma pitoresca, aos seus amigos. Estes, encantados com sua simplicidade e familiaridade, tanto quanto com a sua profundidade, reclamavam que ela houvesse tornado palpáveis demais aquelas fantasias tão fascinantes quanto fugazes. Tão íntima e apaixonada, era uma parte do céu de março, um dia de verão ou um aviso de pássaro.” – Obituário de Emily Dickinson, por Susan Gilbert Dickinson, 18 de maio de 1886¹
O impacto de Dickinson não será medido na quantidade de estatuetas que ela leva atreladas ao seu nome, mas nos sentimentos que carrega consigo e nas pessoas que foram tocadas por sua narrativa e suas personagens. Sua imortalidade — outro dos temas extensivamente explorados pela poetisa — não se encontrará na fama, mas a série faz as pazes com isso para levar as palavras de sua figura central na ponta da língua e no seio de sua história:
“O Pra Sempre — é feito de Agoras —
Não é um tempo distinto —
Exceto a infinitude —
E a Latitude do Recinto —Deste — Aqui experimentado —
Remova as Datas — e os Danos —
Deixe os Meses fundirem-se os Meses —
E Anos — exalarem Anos —Sem Debates — Ou Pausas —
Ou Dias de Festa — Ou Registro —
Nossos Anos não serão diferentes
Dos de Depois de Cristo —”DICKINSON, 1863, p. 631¹
¹DICKINSON, Emily. Poesia completa: v. 1. Os fascículos. Tradução por Adalberto Müller. 2. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2020. 888 p.
²DICKINSON, Emily. Poesia completa: v. 2. Folhas soltas e perdidas. Tradução por Adalberto Müller. 1. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2021. 768 p.