Enzo Caramori
As máquinas têm menos problemas. Eu gostaria de ser uma máquina, e você? – Andy Warhol
Entre retratos formais da teoria da Arte, colunas em páginas de fofoca e imagens em threads explicativas, sempre existiu o dilema de quem era Andy Warhol. Para muitos, a resposta pode ser simples e se resumir nos símbolos que ele construiu a si mesmo – como a famosa e espalhafatosa peruca branca. Essa era a pretensão de um homem que se tornou um ícone, que, diante da mídia, não abria espaço para nada além de uma leitura superficial de sua obra – uma ilustração aparentemente objetiva da sociedade de consumo – e de sua excêntrica personalidade.
‘‘Querer ser uma máquina’’ é a representação dessa vontade de reduzir-se a sua criação e não deixar que suas tantas fragilidades escapassem. Nisso, a minissérie documental Diários de Andy Warhol, em outro eterno dilema de respeitar ou não as pretensões de um artista, tanto o desagradaria quanto o satisfaria. Utilizando-se do próprio diário de Warhol, os seis episódios constroem uma espécie de leitura orientada de suas palavras, entoadas por uma inteligência artificial que recria e dá voz tanto às intimidades quanto a fatos comuns e banais de sua vida cotidiana.
Para além de ser um documentário que busca os ineditismos da vida biografada, a série, produzida por Ryan Murphy e distribuída pela Netflix, é um atestado da subjetividade de uma figura tão impenetrável da sociedade norte-americana. A cinematografia, se dispondo de trechos de filmes – tanto de autoria de Warhol como, por exemplo, de seu amigo Jonas Mekas –, é um fluxo de memórias que cria pontes entre a biografia do artista e seus trabalhos. Nessa fissura de quem seria Andy Warhol e quem seria Andrew Warhola – gay, filho de imigrantes, abraçado pelo frenesi de Nova York nos anos 1960 – é que reside a vulnerabilidade e a melancolia que permeiam os episódios dirigidos por Andrew Rossi.
O diário, datilografado e editado pela jornalista Pat Hackett, de 1976 até a morte do ‘papa da pop art’, em 1987, é o fio condutor cronológico e temático da minissérie. Contudo, não é apenas a voz robotizada de Andy que prevalece nessa procura de sua identidade. Em entrevistas, testemunhos de amigos próximos, como Debbie Harry – a eterna Blondie –, de estudiosos da obra de Warhol e também de figuras que não eram exatamente próximas do artista, como o diretor de cinema John Waters, evidenciam o impacto do falso loiro na efervescência cultural estadunidense por quase três décadas. A diferença do teor com que os depoimentos descreviam Andy, ora com a seriedade de um objeto de estudo ou relembrado meio a lágrimas, contribuem para a formação dessa imagem tão complexa e performada pelo artista.
Por trás dessas duas dimensões, sempre em tensão pelo decorrer dos episódios, The Andy Warhol Diaries – título original da série – vai construindo sua própria perspectiva acerca do artista, em que se ressalta suas vivências enquanto um homem gay em conflito com sua sexualidade. Dar lugar à humanidade de Warhol faz com que se entenda sua persona pública enquanto um escudo contra a suas próprias inseguranças e contra os ataques da cultura que ele tanto ajudou a construir.
Seja na necessidade de reinventar a si mesmo pelos ambientes de expressão que ele mesmo criou – como a The Factory, seu estúdio de criação e o berço da cultura underground americana – Warhol era um modelo e um exemplo nacional do que era ser LGBTQIA+, ainda mais em um contexto de repressão dessas identidades. Mesmo que a sexualidade não fosse um recurso de sua performatividade no mundo das galerias e museus, o artista sabia como colocar as pessoas que brincavam com essa construção em um pedestal por meio de suas obras.
Seu registro de lendas da história queer, como Candy Darling e Marsha P. Johnson, suas experiências com a arte drag e suas ilustrações e fotografias homoeróticas eram uma tentativa de expressar sua própria identidade com o papel aparentemente impessoal de sua produção. Seja por surfar nas ondas da liberação sexual das baladas dos anos 1970, como a frenética Studio 54, ou por ser quase que um mecenas aos novos artistas que surgiam na cena, como Keith Haring e David Lachapelle, Andy nunca se deixou de ser influenciado por essa coletividade. Todavia, Diários de Andy Warhol não deixa de abordar criticamente o espaço de poder ocupado por Warhol frente a grupos marginalizados dentro de sua própria comunidade, principalmente no backstage da produção das pinturas da série Ladies and Gentlemen.
Parte da constante afirmação de Rossi e dos entrevistados quanto a importância da sexualidade na trajetória de Andy vem no intuito de mostrar que sua história, como tantas outras narrativas queer, é atravessada pelo anseio de reconhecimento e visibilidade. Suas inquietações, que remontam a uma formação católica na infância e a uma percepção depreciativa de si mesmo, se resumiam a necessitar vínculos de proximidade que não eram supridos por sua obsessão com o sistema da fama estadunidense.
No segundo episódio, Sombras: Andy e Jed, para contar sobre Andy Warhol e seu assistente Jed Johnson, Rossi dispõe de filmes caseiros de viagens, festas de fim de ano, ou simplesmente gravações do cotidiano para construir a sensação de intimidade dessa relação. Na análise dos diários e dos testemunhos, se pontua o medo de Warhol em querer viver relações afetivas de longo prazo com seu parceiro, em um contexto em que o amor e a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo era absurda, se não mesmo condenada socialmente.
Tanto em suas paixões com Johnson quanto com a sincera amizade e parceria com o artista Jean Michel Basquiat, o arquivo pessoal é a linguagem mais própria para fazer o espectador mergulhar no universo de afetividades revelado pela minissérie. Os vídeos, muitas vezes gravados pelo próprio artista que inspira a produção, são registros sem a pretensão de posteridade, sendo apenas a captura imediata da ternura desses laços com brutal honestidade. Assim como as fotografias que auxiliam ilustrar os excertos do diário, esse recurso engrandece o conteúdo emocional e documental dessas relações nos episódios. Não à toa, a obra conquistou indicações ao Emmy 2022 nas categorias Melhor Direção em Documentário/Programa de Não-Ficção, Melhor Roteiro em Programa de Não-Ficção – ambos para Andrew Rossi –, e Melhor Fotografia em Programa de Não-Ficção, para o Diretor de Fotografia Wolfgang Held, além da menção como Melhor Série Documental ou de Não-Ficção.
Apesar da série cumprir o esforço em desfazer a máscara pública de Andy Warhol e centrar-se essencialmente em sua pessoa, a junção dos diários e dos relatos compõem o retrato do espírito do tempo dos anos 1960, 70 e 80 da sociedade norte-americana. Da contracultura e do cinema alternativo até a MTV, as percepções warholianas conseguiam traçar todos os movimentos mutantes do que era a cultura pop. Não se restringindo apenas no que está atrás da peruca loira, a série traz uma vasta lista de outros personagens como Grace Jones, o casal John Lennon e Yoko Ono, Liza Minnelli, Robert Mapplethorpe, e Roy Halston.
Esses artistas, que transitam pelos mesmos locais que Warhol, também ecoam na trilha sonora da série, que une do pop oitentista majestoso de Diana Ross ao rock tímido e apaixonado de Snail Mail. Diferentemente de outras produções documentais, em que a música tem uma função meramente ambiente, em Diários ela assume um papel central, uma vez que Andy teve sua contribuição para definição de grupos e artistas agora lendários, como The Velvet Underground, Rolling Stones e The Smiths.
Em termos da adaptação do diário às telinhas, The Andy Warhol Diaries utiliza de dublês para contribuir em encenações dramáticas de passagens do livro, além de, assim como Hackett, incluir sucessivas contextualizações de acontecimentos marcantes da vida de Andy. Desde o atentado cometido por Valerie Solanas até situações sócio-políticas como a luta de direitos pelas mulheres nos anos 60, a ascensão do conservadorismo de Ronald Reagan e o medo generalizado da HIV, ressoam em sua sensibilidade, tanto por registros do diário quanto pela simbologia em sua obra.
A abordagem da minissérie entende os escritos datilografados por Hackett como o gesto artístico final do artista que, de certa maneira, é a antítese de toda a impessoalidade presumida de sua obra. Tanto os episódios quanto as passagens dos dias no diário cumprem o papel de colecionar os fatos de sua vida privada: dos gastos de uma semana aos sentimentos desoladores da solidão, da autodepreciação, de latente desejo erótico reprimido e da falta de reciprocidade, munidos por querer se entender enquanto digno de afeto.
De volta às perguntas sem respostas, entender as pretensões do diário de Warhol é um enigma que nunca será desvendado, assim como captar o real em sua vida é um objetivo a nunca ser cumprido. Nas falas dos entrevistados, existem diferentes retratos desse artista que existiu conjuntamente em quase todos os patamares da cultura e da sociedade estadunidense. No entanto, o dever dessa produção, indicada ao Oscar da TV, não é chegar à verdade sobre Warhol, mas sim destacar o que foi omitido dos que pensaram que essa verdade existe. É engrandecer os receios, as paixões e as feridas de um homem queer e de seus desejos dissidentes, colocados no centro da reprodução dessas memórias. É firmar a beleza e a dor de sua biografia, ainda mais quando o cânone da Arte faz questão de apagar essa história das páginas de seus livros. Por fim, Diários de Andy Warhol não passa de uma carta de amor para todo o sentimento guardado no peito.