The Velvet Underground & Nico: uma banana para os hippies, uma bíblia para os tortos

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Gabriel Leite Ferreira

“Um dia uma chuva de verdade virá lavar toda a escória das ruas.”

– Travis Bickle

Entre as inúmeras contribuições de Martin Scorsese para a sétima arte, Taxi Driver é uma das maiores. Polêmico desde seu lançamento, em 1976, o quinto filme do diretor norte-americano sintetiza perfeitamente os anseios e as paranoias da geração pós-Vietnã em Travis Bickle, o taxista perturbado interpretado por Robert De Niro. O retrato sem retoques do submundo de Nova York é o auge da quebra dos padrões do cinema hollywoodiano promovida pelo New Hollywood, movimento capitaneado por diretores do final dos anos 60 cuja proposta tem raiz em outro campo da arte.

Lançado no dia 12 de março de 1967, The Velvet Underground & Nico foi a estreia em disco do Velvet Underground, o nome mais visionário de toda aquela década. O núcleo da banda nova-iorquina consistia no guitarrista Lou Reed e no multi-instrumentista John Cale – enquanto um pretendia seguir carreira no rock’n’roll, o outro fora para a metrópole estudar música erudita com La Monte Young e John Cage. Daí se instalou um intercâmbio entre o popular e o experimental, a base da estética do Velvet Underground.

Os Velvets: menos flower power, mais raw power
Os Velvets: menos flower power, mais raw power

Ainda em 1966, o badalado Andy Warhol tornou-se empresário do grupo e adicionou a modelo alemã Nico ao então quarteto, completado pelo guitarrista Sterling Morrison e pela baterista Maureen Tucker. As apresentações no Exploding Plastic Inevitable, série de shows performáticos promovidos pelo artista plástico, trouxeram certa notoriedade à banda, mas não o suficiente para evitar o fracasso de vendas. Também, pudera: a proposta brutalmente experimental do infame disco da banana foi uma oposição explícita ao flower power vigente. O Velvet Underground confrontou a geração Woodstock com toda a escória da vida urbana, a mesma que Travis Bickle sonhava exterminar.

Leitor ávido de autores como William Burroughs e Allen Ginsberg, Reed deixava transbordar essas influências literárias nas letras abordando temas obscuros demais para os hippies, como uso de drogas pesadas e sadomasoquismo. Reed não estava interessado nas viagens de LSD, mas nas bad trips de heroína. Ele mergulhava de cabeça na decadência dos viciados, dos traficantes e das prostitutas sem o falso moralismo de Travis e, nesse sentido, comportava-se como os diretores do New Hollywood: um documentarista do submundo das grandes cidades, utilizando a escuridão dos becos como matéria para sua arte. A primeira estrofe de “Heroin”, faixa que abre o lado B do álbum, é um exemplo explícito:

I don’t know just where I’m going

But I’m gonna try for the kingdom, if I can

‘Cause it makes me feel like I’m a man

When I put a spike into my vein

And I tell you things aren’t quite the same

When I’m rushing on my run

And I feel just like Jesus’ son

And I guess that I just don’t know

Apesar disso, o guitarrista compactuava com a revolução sexual pregada por seus contemporâneos. The Velvet Underground é o nome de um livro sobre fetiches sexuais que Reed e companhia acharam condizente com a proposta do grupo. “Venus in Furs”, também homônima de um livro, é a canção que melhor traduz o interesse de Reed por dominação e sadismo, temas que seguem sendo tabus. A letra cantada do ponto de vista de uma dominatrix é tão incômoda quanto a cena em que Travis leva Betsy (Cybill Shepherd) a um cinema pornô:

Kiss the boot of shiny, shiny leather

Shiny leather in the dark

Tongue of thongs, the belt that does await you

Strike, dear mistress, and cure his heart

Severin, Severin, speak so slightly

Severin, down on your bended knee

Taste the whip in love not given lightly

Taste the whip, now bleed for me

 

A “escória das ruas”, sob o ponto de vista de Travis
A “escória das ruas”, sob o ponto de vista de Travis

A analogia com o New Hollywood não é gratuita e pode ser estendida ao som. Ao usar a paisagem urbana sem intervenções como locação, Scorsese e companhia aproximavam-se do espectador. Mas, ao mesmo tempo, as temáticas abordadas por eles fugiam do costumeiro e por isso demandavam mais do público. No caso do Velvet Underground, essa via de mão dupla se dava pela relação entre o popular e o erudito citada acima. A banda, muito por conta da dupla de guitarristas Reed e Morrison, tinha pleno domínio dos elementos básicos do rock’n’roll e fazia uso deles. No entanto, as influências da música experimental por parte de Cale contaminavam a fórmula e um rockabilly como “I’m Waiting For The Man”, por exemplo, transformava-se em algo próximo do que hoje se chama música industrial. Industrial, aliás, como a bateria de Tucker, uma das mais selvagens de todos os tempos.

Essa combinação insólita garantiu a sobrevida do VU na história, mesmo com apenas quatro álbuns no currículo e vendas pífias. Não que The Velvet Underground & Nico estivesse totalmente alheio à música pop de seu tempo. “Sunday Morning”, a faixa de abertura, é deliciosamente psicodélica e foi incluída de última hora justamente para servir como single do disco, apesar da letra polêmica. Duas das canções cantadas pela musa gótica Nico – “Femme Fatale” e “I’ll Be Your Mirror” – são dignas baladas sessentistas com grande influência da música francesa, mas a interpretação transborda uma apatia angustiante. No entanto, é na faceta puramente experimental que os Velvets guardam seu trunfo.

Não à toa, o debut já ganhou o título de disco de rock mais profético já feito. Em primeiro lugar, a produção precária usada a favor da proposta da banda e a execução simples talvez sejam os primeiros prenúncios do punk rock em uma era marcada por obras superproduzidas como Pet Sounds (1966) e Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967). A grande diferença entre The Velvet Underground & Nico e os grandes clássicos da psicodelia, aliás, é a influência atemporal do primeiro. As obras-primas dos Beach Boys e dos Beatles são, sim, marcos históricos fundamentais, mas sua influência na atualidade limita-se a revivals, ao passo que o VU previu tendências do rock contemporâneo.

As inovações do álbum serviram de alicerce não só para o punk, como também para o rock alternativo e o recente pós-rock; ou seja, é o avô da ala mais radical do gênero (esse é o pai). A famosa frase proferida por Brian Eno em 1982 – “Lou Reed me disse que o primeiro disco do Velvet Underground vendeu trinta mil cópias nos primeiros cinco anos. Eu acho que todo mundo que comprou uma dessas trinta mil cópias formou uma banda!”, em uma tradução livre – enfim prova-se verdadeira.

Todas as onze canções soam premonitórias: “I’m Waiting For The Man” e “Run Run Run” poderiam ter sido compostas por uma banda punk, o clima fúnebre de “All Tomorrow’s Parties” inspirou todo e qualquer gótico, “European Son” foi a escola de nomes como Nirvana e Sonic Youth, “Sunday Morning” traz todos os elementos do que mais tarde foi batizado dream pop e “Heroin” é a base da fórmula que o Swans expandiu nos últimos anos. Justamente por conta dessa influência em dezenas de gêneros e subgêneros o Velvet Underground desafia qualquer tentativa de rotulação (e dá-lhe “art rock”, “experimental rock” e demais generalizações), o que só faz aumentar a magnitude do debut.

Rótulos à parte, o maior mérito de The Velvet Underground & Nico é ter misturado efetivamente cultura de massa e cultura erudita em um mesmo caldeirão sem a pompa desnecessária dos progressivos da mesma época. A falta de recursos teve papel primordial nisso. Foi tudo feito literalmente na raça, o que é sempre algo a se exaltar. Afinal, são pessoas visionárias, subversivas e inconsequentes, pessoas tortas como Lou Reed, John Cale, Nico, Sterling Morrison, Maureen Tucker e Andy Warhol que movimentam a arte e o mundo. Suas ideias podem ser consideradas um desvario a princípio, tal qual a odisseia de Travis para salvar Iris, a prostituta adolescente interpretada por Jodie Foster. Contudo, o tempo passa e os frutos vem: no caso de Travis, a sanidade momentaneamente restaurada; e no caso do Velvet Underground, a marca indelével na história.

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Travis após ouvir The Velvet Underground & Nico: única reação possível

3 comentários em “The Velvet Underground & Nico: uma banana para os hippies, uma bíblia para os tortos”

  1. Tenho este Lp em casa, uma reedição, a capa original teve problemas (direitos autorais). Não consigo repetir uma faixa dele. Sempre boto pra rodar o album 1,2 vezes ou mais se necessario em volume bem alto pra botar a vizinhança pra correr. Podem mandar até a policia se necessario. Antigamente este disco era rotulado como “coisa de marginal/bandido/vagabundo/desordeiro”. E viva os desajustados!!!!Nenhum quadrado/careta gosta dele!!!! – marcio “osbourne” silva de almeida/jlle-sc

  2. Meu disco preferido de rock. Uma banda intrigante. Todos são ou foram grandes artistas. A inclusão de Nico na gravação do disco casou perfeitamente com a sonoridade do grupo liderado por Reed e Cale.

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