A cena New Wave: tão competente que se contradisse

Guilherme Ramos

A segunda metade dos anos 70 e o início dos anos 80 trouxeram, em um curto período de tempo, uma cena musical que daria à luz vários outros gêneros – além de grande influência aos já consolidados. Contemporânea aos altos e baixos do punk, New Wave fez parte da revolução do pós-punk, que trouxe novas experimentações e influências ao gênero. Por mais que seja um termo ainda nebuloso (como muitas das subdivisões do rock), foi um dos fatores mais importantes para os estilos musicais e estéticos que viriam nas décadas seguintes.

Para entender melhor, precisamos da contextualização do punk. Resumidamente, ele foi um movimento que incluía vários tipos de expressão, como artes, vestimenta, música e ideologia. Nascido no Reino Unido e de maior “relevância” nos anos 70, a sua ideologia, por mais que partilhasse de algumas ideias “anti-alguma coisa” (anti- corporativismo, consumismo etc.), pairavam sobre os dois extremos. Ainda que nos lembremos dos ideais de extrema esquerda, revolucionários e anarquistas que foram levados à tona com Sex Pistols, não se pode esquecer que skinheads e neonazistas de certa forma também bebem dessa fonte.

Dessa forma, o punk foi uma exacerbada declaração emocional, que era, geralmente, raivosa. Por mais que bom à época, era simples ao ponto de que a primeira onda trouxe tudo que o movimento tinha a oferecer, e não voltou com muito mais. O pós-punk e New Wave vieram com ideias parecidas – com o desafeto para com as coisas como o punk –, mas com muito mais abordagens tanto musicais quanto temáticas e líricas. São, a grosso modo, o próximo passo que estava previsto na linha temporal.

O nome “New Wave” vem do homônimo de outra arte, o cinema. Partilhava de ideais similares à nova onda do cinema francês, dos anos 50, uma vez que ambas as produções artísticas não tinham grande apoio financeiro e iam em direção contrária ao mainstream. Um estilo definido em oposições ao punk propriamente dito, que tinha um som mais rígido, rasgado e violento, com temas principalmente políticos e de desconstrução, essa nova onda musical também caminhava no sentido contrário ao rock clássico e convencional. Influenciado por sons melódicos, guitarras “alongadas” e uma vibe mais pop, o movimento dispunha de uma mesma ideia do punk: qualquer um pode fazer música.

“All men have secrets and here is mine/
So let it be known”

Uma das músicas mais famosas do The Smiths, “What difference does it make?”, trata da rejeição de ser homossexual – o fato de sua família e amigos não conseguirem mais os verem e amarem da mesma forma após a “descoberta”. É um tema corriqueiro em suas músicas.

Dessa forma, a cena abrangeu incontáveis subgêneros, cada um puxado para uma referência maior – seja pop, eletrônico e mesmo o próprio rock, New Wave deu uma nova cara à música. Com crescente sucesso nos Estados Unidos, com bandas como Blondie, Talking Heads e The Go-Go’s, o movimento tem sua raiz e seu sucesso no Reino Unido. No início dos anos 80, a denominação de New Wave já abrangia praticamente qualquer gênero em ascensão e descrevia quase toda banda de pop/rock que surgia. Duran Duran, A Flock of Seagulls e Culture Club são alguns dos nomes que andaram nesse trilho.

Podemos usar de exemplo desse movimento o icônico David Bowie, em seu álbum “Scary Monsters (and Super Creeps)”, de 1980. Pode-se entender que a obra exala tudo que a cena trouxe, tanto visualmente quanto em suas letras e sonoridade. Bowie conseguiu se manter relevante por tantos anos e em meio a tantos cenários, que muitas vezes alguns de seus ótimos trabalhos não recebem tantos holofotes, como é o caso de Scary Monsters. Por mais que não tenha saído um grande hit desse disco, o mesmo transcendeu gerações, tanto com a volta de Major Tom quanto com a tentativa de atingir novos públicos com tudo o que a New Wave tinha a oferecer. Bowie inclusive relata a sua passagem e o embalo que pegou no movimento nas letras de “Fashion” e “Teenage Wildlife”, respectivamente:

“That’s a brand new dance/
But I don’t know its name”
“A broken-nosed mogul are you/
One of the new wave boys/
Same old thing in brand new drag.”

E mesmo quem, de certa forma, participou do movimento punk (e quis aderir à nova onda), viu seus discos sofrerem uma mudança drástica. Ainda que a temática do álbum mude naturalmente, é a sonoridade entre os discos que mais chama a atenção nesse caso, e nenhum exemplo se encaixaria melhor do que The Clash e a muito visível mudança entre “Give ‘Em Enough Rope” e “London Calling”.

Segundo álbum de estúdio da banda britânica.

O caso do The Clash é particularmente bizarro. No seu segundo disco, Give ‘Em Enough Rope, de 1978, encontramos pouco menos de 37 minutos praticamente punk puro. Por mais que algumas músicas com uma pegada punk-rock e hard rock, o álbum é, na sua medida, o que o punk quer que seja. A temática também não fugia muito do que lhe era pedido – músicas sobre aspectos recorrentes da sociedade moderna à época, como guerras (“Guns on the Roof” e “Tommy Gun”, que também falam de terrorismo) e drogas (como “Julie’s Been Working for the Drug Squad”).

Já em seu terceiro disco, London Calling, de 1979, a banda nos banha com mais de uma hora de variados ritmos, temas e sons que só uma nova onda poderia causar. E mesmo que o movimento New Wave em si não seja o carro-chefe do álbum, a mudança de cenários que várias bandas percorriam, além das muitas novas bandas que surgiriam com novas ideias e referências para a música, fez com que The Clash aumentasse seu repertório de uma forma gigantesca. Com experimentações de jazz, reggae e R&B, o melhor álbum da banda bebe muito do rock and roll clássico e pode ser colocado como um dos melhores trabalhos que o post-punk nos trouxe.

E pegando a ideia de transição em London Calling, muitas dessas mudanças podem ser vistas na maioria das músicas da cena. Por mais que os integrantes da banda em si e sua convivência/experiência pessoal acarrete em vertentes diferentes para a construção lírica, é capaz de notar alguns padrões sutis. Muitas músicas são retratos de uma história – real ou fictícia –, o que torna mais fácil a elaboração das letras, afinal, contando o que quer que seja, vai continuar sendo uma narração de algum evento. Os membros do The Clash, por exemplo, ao gravarem seu terceiro álbum, iam a jogos de futebol e depois passavam em pubs, e a percepção de personagens e suas personalidades no meio da sociedade levaram à composição de músicas como “Guns of Brixton” e “Death of Glory”.

Essa estruturação das letras pairou por todas as bandas possíveis e seus vários tipos de som. Evidente que inúmeros temas passam pelos versos das músicas, e como toda “sucessão”, claro, não poderia deixar de ter marcas do que veio antes. Se o punk criticava muita coisa, por que o post-punk não criticaria também? Letras carregadas de ponderação política (como “Less Than Zero”, do Elvis Costello), críticas ao poder e à corrupção (em “Everybody Wants to Rule the World”, do Tears for Fears) e até à própria indústria musical (“Frankly Mr. Shankly”, do The Smiths).

Em questões estéticas, é praticamente impossível definir um padrão. Já que existiriam vários subgêneros com diferentes atuações e propósitos enriquecendo a cena, a New Wave nos deu inúmeras capas de álbuns marcantes. Nessa linha, podemos até desconstruir o conceito padrão que temos do “gótico”, uma vez que surgiu como um subgênero dessa nova onda. Sempre visto como algo “dark” e com temáticas bem pesadas, o gótico em sua origem derivada dessa época seguia a mesma linha dos seus gêneros-irmãos e não abria mão de um rebuscado leque de cores.

É bem possível entender The Cure como uma banda gótica só de olhar para seus integrantes ou a estética de sua discografia, mas é um pequeno choque ouvir – e até ler – “Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me” como um álbum, por si dizer, gótico. Assim, desde as caricaturas vibrantes de XTC até os temas pesados nas escolhas de arte do Swell Maps, é possível listar grandes obras estéticas da época.

A Trip to Marineville – Swell Maps, 1979
Power, Corruption & Lies – New Order, 1983.

Chegando ao meio da década (84-86), o gênero começou a perder o seu propósito, por assim dizer. Contratos grandes, videoclipes profissionais, sucesso estabelecido no cenário mainstream – tudo isso fez com que a ideia da nova onda morresse, uma vez que seus ideais já teriam sido superados. E não que isso desmerecesse de alguma forma a cena e as bandas que chegaram a esse patamar, pois o melhor ainda estaria por vir. R.E.M, The Police, U2 e The Smiths, grandes responsáveis pela “morte” dessa nova onda, seriam notáveis influências das próximas gerações.

Um dos grandes e últimos álbuns que ainda poderiam ser considerados New Wave de fato é “Desintegration”, do The Cure. Fechando a brilhante década de 80, o disco de 1989 nada mais é que um extrato do extrato do que é de melhor em The Cure: é exuberante, lúgubre e deslumbrante. Conta com uma excêntrica mistura de elementos como piano e guitarra para formar “Homesick”, e até mesmo no sombrio romance de “Lovesong” se mostra um álbum emocional, mas que também não cansa. Superando a babosa angústia adolescente de outras épocas, a banda consegue criar um trabalho permanente, atemporal e que é totalmente correspondente e que as pessoas conseguem fazer relação. É um fim perfeito para toda a boa confusão que a New Wave gerou.

E em meio ao monte de influências geradas pelo movimento, principalmente nos segmentos da música pop, a New Wave, em seu fim, voltaria a conversar com o punk. A essa altura o punk já estava na cova, mas não se foi sem antes deixar um legado que se estenderia ao grunge nos anos 90. Numa junção de estilos e influências de ambos os movimentos, perpetuou-se o alternativo. E daí o indie, também. De uma forma geral, os anos 90 foram dominados por bandas que cresceram na cultura da nova onda. O fato de Weezer, Oasis e Pearl Jam fazerem sucesso se deve, em grande parte, à fonte de que beberam. Passando um pouco mais os anos, se Coldplay existe é porque a-ha existiu. E claro que The Strokes e Arctic Monkeys também devem muito a essa galera.

No fim das contas, é uma analogia muito feliz pensar no fato de que a onda sempre leva e traz – e é o que vai sempre acontecer. Os temas abordados nas músicas, que abriram portas para novos gêneros nascerem ao acompanha-los, além da estética musical e visual estendeu a passagem da onda. E conturbando os anos 80 com letras de tendências “esquerdistas”, a geração passou seu legado, tanto sonoro quanto lírico, para frente, deixando seu rastro por onde é que os outros pisem.

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