
Davi Marcelgo
Há mais de um século, no coração da Europa, F. W. Murnau dirigia o clímax de Nosferatu (1922), ocasião em que o vampiro, tomado pelo desejo, esquece o perigo de existir sob a luz do sol, falecendo ao amanhecer. O terror expressionista tem um quê de LGBT+, pois as vivências da comunidade, quanto mais em 1922, eram consumadas à noite – essa interpretação existe sobretudo porque o diretor tinha relações homoafetivas. E que pavor seria ao dia descobrirem o Drácula dentro de você.
De William Friedkin a Sebastian Meise, há uma enxurrada de longas que retratam a vida noturna, assim como histórias de monstros têm como pano de fundo alegorias sobre pessoas marginalizadas. O romance Frankenstein (1818) de Mary Shelley, é metáfora para mulheres e pessoas trans, e o polêmico A Hora do Pesadelo 2 – A Vingança de Freddy de 1985, uma experiência gay, são exemplos marcantes da categoria. Pecadores, de Ryan Coogler, é uma mistura desses dois mundos.
Na trama, Fumaça e Fuligem (ambos interpretados por Michael B. Jordan) são irmãos gêmeos realizando o sonho de inaugurar um bar de Blues. A ideia é que o espaço seja um ambiente de liberdade e alívio para as pessoas negras do Mississípi em 1930, que convivem com a segregação racial e são sujeitas a trabalhos braçais e pagamentos em ‘tickets’. Porém, a supremacista Ku Klux Klan e um trio de vampiros têm outros planos para os donos e seus clientes: morte e transformação, respectivamente.

O diretor e roteirista Ryan Coogler propõe uma história sobre legado, temática já vista em outros filmes do cineasta, e formas de se imortalizar. Nesta narrativa, há duas: se transformando em um sugador de sangue ou através da música, que aqui se relaciona com espíritos e ancestralidade. Para transpor em takes seus conceitos, Coogler se joga na fantasia – e até no horror camp –, em destaque a cena de Sammie (Miles Caton) cantando enquanto personas místicas do passado e futuro da música negra se apresentam e dançam com os frequentadores do clube.
Em momentos pontuais – infelizmente, porque o elemento é divino – Coogler ousa com transições e fios de guitarra tocando na edição, dando ao filme mais personalidade e caráter de Terror fantasioso. A aposta marca o Cinema do americano de uma forma diferente, acostumado a fazer filmes encomendados por grandes estúdios, como a duologia Pantera Negra, ele vagamente se permitia fugir do realismo, ora por sua opção ou imposições dos engravatados.
A direção de fotografia de Autumn Durald consegue captar a sensualidade dos vampiros e o calor de uma noitada em um clube que possibilita a liberdade para ser quem se é. Com cores quentes ao escurecer, ótimas atuações, cenas de sexo e música boa, a unidade fílmica é a experiência de se apaixonar e ser mordido por um vampiro.

Pecadores entendeu bem a natureza do ser folclórico que está lidando, junto às incontáveis pesquisas sobre narrativas de monstros e seus subtextos. Sugadores de sangue podem não ser apenas criaturas, mas também espaço para tematizar política com a forma articulada ao roteiro. O fato do trio principal de vampiros ser músicos e brancos reflete o apagamento e a absorção da cultura negra que a branquitude fez e ainda faz. À medida que Coogler compara a existência do ser ficcional às vivências reais da comunidade negra e segregada nos Estados Unidos, ele deixa uma ideia: pertencer só é possível em alguns espaços e sob o céu escuro.
Seja no século XIX, XX ou no mais futurista ano de 2025, os monstros ainda têm espaço entre as peças inteligentes de muitos autores, como a versão de Nosferatu, dirigida por Eggers em 2024. Por muitas injustiças, algumas pessoas ainda se sentem como criaturas desprezadas, marginalizadas e pecadoras, salvas por breves momentos de curtição e de Arte, como Sammie, que aproveitou sua música na noite mais sangrenta de sua vida.