Guilherme Machado Leal
Nas séries centradas em adolescentes, as primeiras experiências são o ponto de partida para que a história se desenrole. A partir delas, sentimentos amorosos, dificuldades do Ensino Médio e o crescimento inerente dessa fase participam do processo de formação de um indivíduo. Em Com Carinho, Kitty, spin-off da trilogia de livros Para Todos Os Garotos Que Já Amei – adaptados pela Netflix -, a autora Jenny Han utiliza o formato televisivo para contar a jornada de Kitty (Anna Cathcart) em busca das suas raízes coreanas.
A trama é simples: a protagonista, antes personagem de apoio dos dramas vividos por sua irmã Lara Jean (Lana Condor), agora tem a sua própria jornada e precisa lidar com o turbilhão de sentimentos característicos da adolescência. Kitty, no último filme da trilogia, conheceu Dae (Minyoung Choi) em uma viagem para a Coreia do Sul e, desde então, se apaixonou pelo garoto. Assim, a série produzida por Han mescla as interseccionalidades e diferenças entre culturas: a menina americana, decide se aventurar em solo coreano e conhecer um novo mundo em busca do amor e de se conectar novamente com a falecida mãe.
Um dos motivos que mais brilham os olhos quando se trata de Xo, Kitty (no original) é o intercâmbio cultural que ela promove. Nesse sentido, uma protagonista carismática, intensa e americanizada – até demais da conta – permite que o espectador se depare com a reação dos coreanos aos maneirismos estadunidenses. À primeira vista, tudo parece muito forçado, mas tal sentimento é presente por causa do meio social em que a personagem vivia, já que a vida em Seattle é diferente quando comparada à metrópole Seul. Aliás, o uso das locações da Coreia do Sul enriquece a fotografia da série e a deixa mais interessante do que realmente é.
No entanto, o vício americano em sempre agradar e ser prestativo quando não precisa pode afastar o público de sua protagonista, uma vez que, em um terço da série, a atuação exagerada de Anna Cathcart destoa do resto do elenco. Isso porque não estamos falando de uma obra centrada nos Estados Unidos: aqui, os personagens, em sua maioria, são coreanos e não possuem – além de não quererem – o papel de serem apenas coadjuvantes. Por esse lado, características vindas do prestigiado k-drama – como as intervenções sonoras e visuais em momentos de interações – dão ao público uma pitada de como funciona o gênero.
Entre erros e acertos, as escolhas musicais, infelizmente, pouco acrescentam à história e evidenciam a superficialidade de algumas questões abordadas. Com o uso de três músicas de kpop em um período de cinco minutos – isso no primeiro episódio -, a produção se molda aos estereótipos típicos de obras fundamentalmente coreanas idealizadas por americanos e desperdiça a chance de usar algo tão particular de uma cultura a seu favor. Ao contrário do que foi feito com a trilha sonora, a preservação do idioma coreano em diálogos compostos por personagens nativos – e até em interações com Kitty, que se comunica apenas em inglês – assume um papel de destaque na produção.
O amor está no ar e Kitty tem muito a dizer sobre ele. Sendo um dos focos narrativos da primeira temporada, os caminhos amorosos pelos quais a garota percorre têm a incrível função de nos apresentar algumas camadas da protagonista. Talvez, essas especificidades dela não seriam tão fáceis de acessar se não fosse pelas suas dinâmicas com Dae, Yuri (Gia Kim) e Mihee (Sang Heon Lee) e a forma como cada um deles extrai algo novo dela a cada interação.
Ao lado de Yuri, por exemplo, a americana é mais ansiosa e tensa, muito por ela ser a primeira menina que a despertou uma paixão inesperada; enquanto isso, na sua relação com Mihee – o ‘Chuck Bass’ desse universo – a jovem conhece um lado seu áspero e sorrateiro, contribuindo para a construção de sua identidade. Mas é a partir do seu envolvimento com Dae que XO, Kitty tem a possibilidade de ir na contramão e largar as convenções do final feliz. Diferente da química entre Lara Jean e Peter Kavinsky (Noah Centineo), aqui, o que seria o par ideal para a protagonista da história, não é bem o caso.
Isso acontece porque não há química entre os dois personagens – e, acredite, é um ponto bom – pois permite que a trama não seja descoberta nos seus primeiros minutos. Algo que é comum em Com Carinho, Kitty é a facilidade do público em adivinhar qual será o próximo passo escolhido ou o clichê mais conveniente para aquela determinada situação. Cair na mesmice das escolhas narrativas que já existem espanta a chegada de novos espectadores e tampouco agrada os que compraram a ideia da série. Por isso, com um segundo ano garantido, a produção televisiva tem mais uma oportunidade para mostrar a que veio.
Voltando para Kitty e a busca pela identificação de sua descendência coreana, o núcleo em que há pinceladas desse objetivo é o de sua mãe. Entretanto, a trama não é o foco quando comparada ao tempo de tela dado às desilusões amorosas da garota. Por ter muitos personagens e diversos subenredos, a seriedade do tema não é explorada da maneira correta e, após o término da primeira temporada, parece que o caminho da personagem, aquele expressado por ela mesma nos minutos iniciais, se perde e muda de sentido.
Alinhada à forma estadunidense de contar histórias e às singularidades dos dramas coreanos, Com Carinho, Kitty é duas obras em uma: por não saber em qual dos universos se aprofundar, o primeiro ano da garota no Ensino Médio não surpreende, mas traz alguns pequenos momentos de empolgação. A partir de sua renovação, a série pode ganhar uma nova roupagem e usar o que tem de melhor para construir um segundo ano memorável e digno de primeiras aventuras da juventude.