No Oscar do cachorro, ainda falta humanidade

Arte que faz menção a 96ª edição do Oscar. Nlea, vemos, da esquerda para a direita e recortados: Christopher Nolan, um homem branco de cabelos loiros e que veste smoking e camiseta branca; Da'vine Joy Randolph, uma mulher negra, de cabelos loiros e que veste um vestido azul claro; Messi, um border collie de pelos brancos e pretos e que veste uma gravata borboleta preta; Emma Stone, uma mulher branca de cabelos ruivos e que veste um vestido branco e colar prateado; Mahito e a Garça da animação O Menino e a Garça. Ryan Gosling, um homem branco de cabelos loiros que veste smoking, camisa e calça rosa e Cillian Murphy, um homem branco de cabelos pretos e olhos azuis que veste smoking preto, camisa branca e gravata preta. Ao fundo, a imagem é laranja com alguns detalhes em roxo. No canto direito, a logo de um olho na cor laranja e um play na cor preta e no canto superior esquerda os escritos "Persona faz" seguido por "Artigo Oscar 2024" logo abaixo.
A busca por identidade da premiação já demora (e incomoda) demais [Arte: Aryadne Xavier]
Guilherme Veiga

É a principal premiação da temporada, a mais popular, mais glamourosa, que mais dá o que falar e a mais emblemática. Com todos os holofotes voltados para meados de Março, é natural pensar que são essas as razões que fazem com que o Oscar seja a passagem de ciclo entre as temporadas de premiação. O pensamento faz total sentido, mas a própria indústria não o leva em consideração e ano após ano prova esse descaso.

No clássico Os Caçadores da Arca Perdida (1981), precursor da aventura no Cinema, mesmo com uma legião de fãs, há quem argumente que se trate um filme inútil: com ou sem Indiana Jones, os nazistas encontrariam a arca, a levariam para a ilha, abririam e morreriam. A 96ª edição do Oscar pode se enquadrar no mesmo cenário: nada na temporada de premiações mudaria o final premeditado há tempos.

Cena da 96ª cerimônia do Oscar. Nela vemos Messi, um cãozinho da raça border collie de pelos brancos e pretos. Ele tem olhos azuis com a íris preta e usa uma gravata borboleta preta. Ele está com a pata esquerda traseira levantada, simulando estar urinando na estrela da calçada da fama de Matt Damon.
O GOAT dessa edição também tem nome de craque: Messi (Foto: ABC)

Não foi por falta de tentativas, pelo contrário. 2023 foi um ano muito rico para o Cinema, seja em bilheterias ou em qualidade, razão pela qual a line-up de indicados foi bem convincente e talvez uma das melhores nos últimos tempos. Diversos filmes arrebataram a nós e nossos corações, e chegar em um número de cinco a dez indicados é sim uma tarefa difícil. Tão difícil que a própria Academia tem medo e, quando um filme específico foi lançado, veio o alívio para eles e para nós a certeza de que o roteiro já estava escrito.

Oppenheimer não é um filme ruim. Sua vitória é até consciente, mas vem por dois principais motivos: se tratar de uma obra protocolar e, acima de tudo, americanizada, tudo que a Academia ama. Porém, nele há um primor técnico, de atuação e narrativa que felizmente o distancia dos Oscar bait. Formava-se então um lugar seguro no qual essa edição poderia percorrer – e assim ela se fez. A premiação em si fez questão de se provar uma festa de indústria e não há melhor forma de fazer isso do que ser industrial.

Foi um Oscar homogêneo, sem sal, insosso, borocoxô. Suas edições anteriores nos surpreenderam, seja de forma negativa ou positiva, mas essa, nem isso. A sensação de acompanhar a edição de 2024 da premiação era de assistir um filme no qual você já sabia todos os spoilers – bom pra quem faz bolão, péssimo para todos os outros. Das categorias principais, pouquíssimas surpresas e nas que pelo menos havia uma dúvida – Melhor Atriz, Melhor Filme Internacional e Melhor Animação – optou-se por somente escolher um dos lados. Os destaques foram as categorias de roteiro, na qual o aclamado e instigante Anatomia de uma Queda levou Melhor Roteiro Original e o canastrão e esquecido Ficção Americana conquistou Melhor Roteiro Adaptado.

Cena de 96ª cerimônia do Oscar. Nela vemos o palco durante a premiação de Melhor Filme. No microfone está Charles Rowen, um homem branco de meia idade que veste camisa branca, smoking preto, calça social preta, sapato preto, gravata borboleta preta e um óculos de armação preta. Logo atrás ao lado esquerdo, está Emma Thomas , uma mulher branca de meia idade e cabelos grisalhos. Ele veste um vestido preto com detalhes em brilhantes. Ao lado dela, está Christopher Nolan, um homem branco de meia idade, cabelos loiros. Ele também vesta um smoking preto, camisa branca, calça social preta, sapato preto e gravata borboleta preta. Os três seguram estatuestas douradas em suas mãos. Logo atrás, a equipe responsável pelo filme Oppenheimer, onde podemos ver atores como Emily Blunt, Florence Pugh, Cillian Murphy e Jack Quaid.
Oppenheimer se consagrou o grande campeão da noite, com sete estatuetas (Foto:Getty Images)

Porém, a Academia adora fazer merda e, se dessa vez, não foi dentro dos envelopes, decidiu que seria uma boa ideia abordar um tom político escancarado. Ao mesmo tempo em que é produtor de um modo de consumir Cinema, o Oscar também figura como produto do modo de pensar americano. Se abdicando ou falando muito pouco de temas pertinentes à edição, a instituição, conhecida por receber um lobby ferrenho de seus indicados, continuou uma campanha de dois anos para fortalecer os interesses estadunidenses acerca da Guerra na Ucrânia.

Em 2023, Navalny foi premiado, com Sean Penn sendo praticamente um porta-voz de Volodymyr Zelensky. Um ano depois, com a temática da guerra ainda mais presente na edição, seja por Oppenheimer ou Godzilla Minus One, a premiação optou por condecorar os tenebrosos War is Over! e 20 Dias em Mariupol, esse último com um discurso patético e pedante do diretor Mstyslav Chernov. Além disso, a já tocante seção do In Memorian se iniciou com um trecho final do documentário premiado sobre o opositor de Putin. Quanto ao genocídio palestino, se não fosse pela fala de Jonathan Glazer – judeu que dirigiu Zona de Interesse, sobraria apenas um silêncio que soaria como endosso.

Cena da 96º cerimônia do Oscar. Nela vemos Margot Robbie, uma mulher branca, de cabelos loiros. Ela veste um vestido preto com detalhes brilhantes e uma pulseira no pulso esquerdo. Ele está de olhos fechados e rindo. Logo atrás dela está Ryan Reinolds, um homem branco de cabelos loiros e barba castanha clara. Ele veste um smoking, camisa, calça e luva na cor rosa e um óculos escuro. Ele segura um microfone e faz o movimento de estar e levantando da plateia
Assim como em Barbie, Ryan Gosling roubou a cena e chamou os holofotes para si (Foto: ABC)

Tinha tudo para ser uma edição ok, com potencial para se sobressair pelo menos em relação aos últimos cinco anos de premiação. Jimmy Kimmel curiosamente estava bem – considerando os hosts desastrosos que tivemos em outras premiações ao longo da temporada –, a dinâmica de chamar antigos vencedores para o palco anunciar os prêmios foi acertada, os números musicais estavam ótimos e até mesmo o desinteresse de Al Pacino no principal prêmio da noite funcionou.

Mas de que adianta uma boa casca se ainda falta alma? A maior audiência dos últimos quatro anos – resultado da decisão acertada de começar a cerimônia mais cedo – viu um Oscar robótico, burocrático, nada apaixonado, frio e calculista, assim como a figura do cientista retratado na obra que saiu como grande vencedora. A Academia precisa correr para se encontrar novamente e driblar os efeitos da pandemia e do desinteresse do público, pois enquanto as salas de cinema ficam cada vez mais cheias, a premiação está mais e mais vazia de si própria.

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