Caroline Campos e Vitor Evangelista
O burburinho que cercou Casa de Antiguidades não veio de graça. Considerando que temas como regionalismo e horror de mal estar estão em voga desde a explosão de Bacurau, em 2019, quaisquer obras que resvalem nesse espectro sem dúvidas chamariam atenção do público brasileiro. Parte da Seleção Oficial de Cannes 2020 e exibido com exclusividade na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o primeiro longa de João Paulo Miranda Maria se mune de um misticismo tupiniquim para desconstruir e metamorfosear a vida e a humanidade de Cristovam, um homem abandonado pelo tempo e rejeitado pela comunidade em que habita.
Casa de Antiguidades já expõe seu argumento de cara: nesse assombrado sul do Brasil, o velho se recusa a morrer. A vaca idosa da fábrica leiteira demora a ser sacrificada, não só a arma está danificada, como todo o conceito de eliminar os elementos do passado. Conceito esse espelhado imediatamente no personagem principal do filme. Carrancudo e soturno, o trabalho de Antonio Pitanga é o elemento X para a receita de Miranda Maria. Casa de Antiguidades existe para nos incomodar.
E não um incômodo bem vindo, se é que isso existe, mas uma sensação verdadeiramente ruim. O texto, escrito à quatro mãos pelo diretor e por Felipe Sholl, não toma senso nenhum da gratuidade que trabalha. Construindo longas sequências de câmera parada, com um forte trabalho de foco e zoom, Casa de Antiguidades fetichiza a violência aos seres indefesos – nem o cachorro perneta de Cristovam tem paz na quase uma hora e meia de duração.
Nessa toada da falta de pudor, registrando desde a lenta morte do animal até a crueldade da fábrica de leite, Casa de Antiguidades deixa de lado uma máxima da arte de fazer cinema, a de que a sugestão é muitíssimo mais poderosa que a certeza. O terror é bode velho na manobra, gênero que sempre batalhou contra o orçamento e inventava mil e uma maneiras de passar sua mensagem de medo, mistério e morte, mas sem apelar para o choque pelo choque.
Nem mesmo as relações que o velho protagonista tenta estabelecer recebem algum tipo de tratamento melhor construído. Jandira (Aline Marta Maia) e Jennifer (Ana Flávia Cavalcanti), mãe e filha, conseguem um pouco da atenção do espectador em momentos incômodos e rudes, reforçando o aspecto animalesco que é tão marcado pela atuação crua que Pitanga domina. O veterano, acostumado com papéis expansivos e alegres ao longo da sua trajetória pelas gerações do cinema brasileiro, se desconstrói com Cristovam, que passa o filme calado e é agressivo com as únicas duas personagens femininas em destaque. Uma mudança de ares para um ator com 60 anos de carreira.
A ideia de edificar a câmera como um monumento de cena respinga originalidade e irreverência, o diretor transporta (por bem ou por mal) o público para as salas de reuniões, cozinhas e para a Casa que dá nome ao filme. Enquanto filma as micro reações dos personagens, o espectador tem o tempo de absorver os acontecimentos, e o choque é maior pelo tempo que olhamos para algo. Sem tirar nem por, Casa de Antiguidades é um feel-bad movie, um filme de mal estar.
E a residência do título, pouco a pouco, se revela um verdadeiro abatedouro. No campo literal, quando vemos a morte nos olhar nos olhos e também no temático. Cristovam vai sendo dilacerado com o passar do tempo, perdendo toda a humanidade que uma vez habitou nele. A morte é espelho das escolhas criativas do filme, considerando que uma porção de boas ideias acabam capadas, seja pela inexperiência do diretor ou pela falta de tato na hora de contar uma história dessas.
Olhando para a programação da Mostra de SP, outra produção regionalista e protagonizada por negros acabou melhor sucedida que o filme brasileiro. Nos referimos ao magnânimo Isso Não É Um Enterro, É Uma Ressurreição, filme do Lesoto escrito e dirigido por Lemohang Jeremiah Mosese. Pelas mãos de um homem negro, o longa lida com questões de sofrimento e desumanização, mas nunca partindo para chavões de gratuidade ou pro clássico e terrível clichê de lapidar um personagem moldado apenas por traumas, e nunca por camadas que respeitem sua construção.
E é esse respeito, ou no caso a ausência dele, para com seus personagens que atrapalha um pouco a tentativa de Miranda Maria de explicitar seus objetivos em tela. Ao ser xingado, humilhado, ameaçado e violado, Cristovam se torna um objeto cuja única função é sofrer em prol da narrativa. Mesmo amparado e guardado pelas forças indígenas que habitam a Casa de Antiguidades do título, ainda assim o personagem é bestializado, chegando ao mesmo destino que os animais anteriores. Não há salvação para sua antiguidade. Há apenas o fim. E ele vem pela mira de uma hesitante criança em meio a um linchamento mais parecido com uma tourada de rua, onde nós constantemente duvidamos se o homem ainda existe embaixo da fantasia.