Gabriel Gatti
A Revolução Russa de 1917 ocorreu em dois levantes, sendo o primeiro em fevereiro, no qual os revolucionários lutaram contra a monarquia do czar Nicolau II. O segundo, que aconteceu em outubro, começou a implantar os ideais socialistas. Porém, o sonho da igualdade foi muito mais conturbado do que as massas russas poderiam imaginar. O aumento do preço dos produtos do dia a dia e a redução do salário fez com que milhares de trabalhadores fossem às ruas de Novocherkassk, no dia 2 de junho de 1962. É justamente a história desse protesto que Andrei Konchalovsky conta no filme Caros Camaradas!, presente no Festival do Rio 2021.
Konchalovsky percorreu um longo percurso antes de produzir Caros Camaradas!. Sua exitosa carreira no Cinema se iniciou como co-roteirista do consagrado Andrei Tarkovsky, para os filmes A Infância de Ivan e Andrei Rublev. Já como diretor, Konchalovsky ganhou inúmeros prêmios, incluindo o Leão de Prata de Melhor Diretor no Festival de Veneza pelo longa Paraíso, de 2016, primeiro trabalho em conjunto com a atriz Yuliya Vysotskaya.
Para o desenvolvimento de Caros Camaradas!, Konchalovsky buscou um formato que chegasse mais próximo do estilo dos filmes soviéticos. Para isso, o cineasta gravou o longa na proporção 1:33 do quadro cinematográfico, pois, segundo ele, esse é um “formato especial porque, ao contrário do Cinema moderno, permite ver o céu”. A coloração em branco-e-preto se deu pelo fato do diretor desejar produzir um documento e não havia espaço para as cores nessa ideia. Por apresentar esse potencial cinematográfico, Dear Comrades! foi submetido pela Rússia para o Oscar de 2021, mas não chegou a ser nomeado para a premiação.
Todo esse cuidado na produção foi fundamental para contar a história de Lyuda (Yuliya Vysotskaya), uma executiva e devota do Partido Comunista, que lutou na Segunda Guerra Mundial pela ideologia de Stalin. Seu apoio cego ao Estado faz com que qualquer sentimento anti-soviético a incomode. Mas, sua visão de mundo começa a mudar após presenciar a greve dos trabalhadores em Novocherkassk, na qual os revolucionários foram baleados por ordem do governo, pelo exército e pela KGB. A manifestação resultou em vinte e quatro pessoas mortas e dezenas de feridos.
A aflição de Lyuda diante da chacina só aumenta ao se deparar com a ideia de que sua filha poderia estar entre os manifestantes. A busca pela filha desaparecida, Svetka (Yuliya Burova), e a descoberta do modo com que o governo estava lidando com os corpos dos manifestantes faz com que a devota do Partido Comunista reflita sobre seus ideais e sobre sua realidade.
Esse confronto ideológico pelo qual Lyuda passa é o que torna a obra enriquecedora. A dualidade de ideias permanece forte ao longo de toda a trajetória da protagonista. Konchalovsky conseguiu ressaltar esse conflito principalmente nas cenas de procura pela filha perdida, em que mesmo desesperada com a situação, Lyuda segue cantarolando as canções patrióticas do universo soviético.
Toda essa situação foi engrandecida com a atuação de Yuliya Vysotskaya que, majestosamente, guia o telespectador pela angústia na vida da personagem. Ademais, a cautela de Konchalovsky foi essencial para as sequências de assassinatos massivos. Para isso, o diretor adotou um plano fixo de filmagem, isto é, sem que a câmera estivesse na mão. Desse modo, o cineasta desenvolveu uma narrativa sóbria sobre uma sequência brutal.
Mas apesar dessa dualidade ideológica presente na trama, Konchalovsky reitera que Caros Camaradas! – Trabalhadores em Luta não trata sobre ser contra ou a favor do estado soviético e, sim, sobre violência psicológica a qual as massas estavam subordinadas. Desse modo, o diretor contribui para a produção cinematográfica russa contemporânea, trazendo essa reflexão ao telespectador.
É importante ressaltar a importância da URSS nos primórdios da indústria cinematográfica. Lenin acreditava no Cinema como uma ferramenta de conscientização das massas, o que deu força para que a primeira escola de Cinema do mundo surgisse na União Soviética, o Instituto de Cinematografia Estatal da União Soviética, em 1919. Nesse momento, grandes cineastas ganham destaque, como Lev Kuleshov, um dos pioneiros no país, e Serguei Eisenstein, famoso por fazer filmes ressaltando o poder do proletariado.
Com essa herança cultural, Konchalovsky se destaca como um dos principais diretores russos da atualidade. Seu talento para a produção de Dorogie Tovarishchi, título original, fez jus aos pioneiros do Cinema soviético, mas sem abrir mão da liberdade crítica, que foi o ponto fraco no sonho comunista.
Foi justamente a falta de liberdade que fez com que o massacre de Novocherkassk se apagasse da memória coletiva. No dia seguinte ao derramamento de sangue, o governo promoveu um baile a céu aberto para a população. Apagando pouco a pouco os rastros de um evento cruel que assombra a história da URSS. O ato de Konchalovsky trazer esse ocorrido em Caros Camaradas! reforça a importância do exercício de relembrar o passado para não cometer os mesmos erros no presente.