Raquel Dutra
A aspiração de homens brancos pela política é um dos fatos mais óbvios deste mundo. Dos números às suas interpretações, algo é compreendido: não há lugar melhor para indivíduos criados como os donos do futuro darem vazão às suas síndromes de poder do que um ambiente institucional deliberativo. Os Parlamentos sabem bem disso, as Câmaras sabem bem disso, os Palácios, Tribunais, Prefeituras e Senados, todos ocupados por uma maioria masculina branca na em boa parte dos governos do mundo, sabem muito bem disso.
O trabalho de base é forte, começando com a própria existência destes numa sociedade racista e patriarcal. E na chamada maior democracia do mundo, o processo é favorecido por algumas iniciativas, que junto da ação das estruturas de poder do século 21, trabalham para evocar nesses futuros líderes as suas noções políticas. Uma delas é o Boys State, um programa de verão realizado desde 1937 em cada um dos estados dos EUA pela Legião Americana, entidade formada por veteranos de guerra estadunidenses. Todo ano, os membros da instituição escolhem 1.200 jovens para participar do projeto que cria o estado dos meninos, onde eles vivem a experiência de construir um governo do zero.
A diretriz principal é a Constituição dos Estados Unidos, mas o governo de Boys State tem de existir à sua própria maneira, sem a influência direta dos partidos que regem as reais movimentações políticas no país. Então, os jovens são divididos no mesmo esquema bipartidário para criar sua própria identidade, escolher suas próprias lideranças, defender suas próprias bandeiras e articular sua própria campanha, dividida nas tradicionais eleições primárias e gerais. Ao fim da jornada, dentre os nacionalistas e os federalistas, serão escolhidas as autoridades de Boys State.
Durante o processo, é esperado que os ânimos se exaltem vez ou outra, diante de um assunto aqui e outra pauta lá, ou que a sensação de poder daqueles adolescentes cresça para além do previsto em alguma deliberação pontual. Na edição de 2017, porém, algo em específico no meio daquele alto índice de masculinidade juvenil por metro quadrado que mexia com a demografia do Texas chamou a atenção. Em uma de suas votações simbólicas, o grupo de jovens que formavam o programa do estado aprovou uma proposta de separação do resto do país.
O fato repercutiu no país inteiro, pois apesar de o movimento de secessão do Texas existir há cerca de 150 anos, ele nunca havia sido encarado como algo realmente capaz de alterar a composição da força política que atende por Estados Unidos. Mas a adesão daqueles adolescentes aos ideais separatistas despertou a população local a pensar sobre como a juventude enxergava sua cidadania, a democracia e a própria sociedade estadunidense. Nesse contexto, a preocupação atingiu a dupla de documentaristas Jesse Moss e Amanda McBaine, que colocaram suas câmeras para acompanhar a edição de 2018 do Boys State do Texas, decididos a compreender como as relações políticas se estabelecem ali.
E bom, o que o documentário encontra faz jus à polêmica. Registrando desde as fases iniciais de preparação do programa até o desfecho do processo eleitoral que é a razão de cada um daqueles adolescentes estar ali, Boys State já parte de uma premissa: a maior surpresa que pode nascer do programa não é o comportamento de seus participantes em si, mas a reação da sociedade ao descobrir até onde seus meninos podem chegar seguindo ideais que são absolutamente tradicionais na política estadunidense.
Os primeiros minutos de Boys State mostram algumas cenas das entrevistas dos jovens com os membros da Legião Americana, no processo inicial de seleção dos participantes do programa. No fio do documentário, o momento significa conhecer alguns dos personagens, que têm figuras religiosas cristãs como modelo de vida, vêm de famílias militares e se dizem viciados em política. Conforme os veteranos de guerra assentem, eles continuam a contar que acreditam que bons costumes são o que formam uma sociedade saudável, e que “o trabalho é o que nos faz ir longe”.
Logo, as etapas do programa avançam e já estamos dentro de um ônibus indo para o lugar onde aquele grupo de adolescentes estabelecerá seu governo. No caminho, eles se conhecem dividindo suas impressões sobre a situação política do país, e Boys State parece querer demonstrar uma pluralidade de pensamentos que não existe, pulando de comentários relacionados à gestão caótica de Donald Trump, à opiniões radicais sobre a presidência de Barack Obama. Sobre o republicano assediador, a opinião que se destaca é a de que não devemos criticar o presidente mesmo não concordando com o que ele faz. Quando o assunto é o líder democrata, eles explodem em desgosto com a sua política “quase socialista”.
À medida em que Boys State avança na jornada daqueles jovens, o espectador, os diretores e os adolescentes já imaginam onde é que esse fervor todo vai dar, cada um à sua maneira. Presenteado com uma narrativa orgânica que nasce daquele bando de garotos inflamados e obstinados em todos os altos e baixos de uma legítima campanha política, o documentário é quase um reality show, cheio de ritmo. Assim, Boys State trabalha de uma maneira muito interessante, aproximando as concepções de história (enquanto narrativa) e política (enquanto exercício): nos dois aspectos, existem personagens, desesperados por alcançar um desenvolvimento notável.
O ciclo narrativo continua e a salvação de Boys State parece chegar através de um jovem passional chamado Steven Garza, que não demora a se transformar num dos personagens principais do filme. Filho de imigrantes mexicanos que foram ilegais por muito tempo nos EUA, ele diz às câmeras que o Texas é uma representação perfeita da América, pela diversidade de pessoas e culturas que abriga. Suas fortes aspirações políticas mostram outra face daquele lugar dominado pela branquitude juvenil e desenha um outro sentido para Boys State, que Garza defende como uma oportunidade de aprender e com pessoas diferentes longe da baixaria dos comentários do Facebook.
O jovem com tendências progressistas cai no partido dos nacionalistas, que contará com a presidência do eloquente René Otero, um jovem negro militante quase abolicionista. Com posicionamentos muito diferentes da maioria ali, os dois enfrentam a liderança federalista que está no implacável Ben Feinstein e no aspirante ao maior cargo de Boys State, o candidato a governador Eddy Proietti, ambos surgindo de algum lugar no meio daqueles jovens conservadores do início, só que com um pouco da ginga que falta em quase tudo relacionado ao espectro político da direita.
O cenário de Boys State é por si só narrativo, se transformando no ambiente perfeito para o documentário direto e observativo de Jesse Moss e Amanda McBaine. Sem interferir de forma objetiva nos eventos que retrata, o crescimento de Boys State se dá quando o jogo aperta. A ânsia da política fala mais alto que os ideais daquelas mentes ainda em desenvolvimento, obrigando-os a negociarem parte de seus princípios. Assim, o rumo da história muda e seus personagens se aprofundam, numa progressão invejável a qualquer ficção. O mérito é da visionária direção reconhecida no Emmy 2021, dentre os indicados na categoria de Melhor Documentário/Programa de Não-Ficção.
Entre um retrato satírico e um registro sério, Boys State prova que nada é neutro e que os documentários diretos e observatórios podem ter muito mais intenções do que uma narrativa que parte de uma visão definida. Afinal, o que mais pode significar assistir em 2021 um bando de adolescentes que defendem uma limitação de imigração, ampliação de leis pró armas, poder policial, e logo depois de articular como pretendem realizar tudo isso, vão comer uma tigela de cereal colorido com leite?
É essa gente que também acredita numa política que se resume à obsessão por poder através de armas e controle do corpo feminino pelo aborto. É quem exalta a masculinidade, o poder de fogo, a ordem, a punição e a disciplina. Então quando eles se cansam, tiram cochilos ali na assembleia mesmo, e ao acordar, decidem legislar sobre a pronúncia de letras, códigos de vestimentas, hábitos alimentares. Porque quem precisa falar sobre impostos, sistema de saúde e educação pública?
De repente, o estado dos meninos fictício que deveria seguir suas próprias determinações faz Boys State parecer uma miniatura da nossa realidade. Urgentemente ridículo, o jogo sujo ganha uma competição séria, e percebemos a política viciada justamente no que deveria ser o seu núcleo de renovação. As possíveis futuras lideranças estão identificadas e devidamente encaminhadas, e mesmo com o grande potencial de influências positivas, representativas e fincadas nos preceitos democráticos, o destaque mesmo acaba naqueles que sempre estiveram à frente nas corridas políticas da América.
Em 2017, Criolo até tentou impor limites e nos avisar sobre a tendência da construção política, numa estrutura de poder mundial que Spike Lee voltaria a denunciar em julho de 2021. Se esse o nosso futuro é igual ao nosso passado, qual é o nosso presente? A verdade é que a diferença entre eles não importa. Enquanto estivermos no estado dos meninos, cada um dos nossos dias, mandatos e governos continuarão sendo iguais.