Felipe Bascope
Em 2016, Beyoncé lançou o álbum visual Lemonade, trazendo para o topo grandes discussões sobre questões raciais, e revolucionando a indústria da música de muitas formas. Em sua nova obra visual, Black is King, ela cria uma linda ponte entre a cultura pop e o continente africano, entre as gerações anteriores e as novas. E mostra um lado do continente antes desconhecido, cheio de cores, vida, bem vibrante, como podemos ver nos primeiros minutos do filme, onde são mostradas diversas regiões da África. A narrativa de O Rei Leão serviu como inspiração para uma linda e repaginada história tão marcante em nossas vidas.
A produção se inicia apresentando ao espectador as diferentes partes do continente e mostrando que não há apenas uma África, e sim muitas, com mesclas de paisagens e pessoas de diversas nações africanas, suas diferentes cores, penteados e formas de viver. Daqui em diante, a voz poderosa e cheia de força de Beyoncé nos carrega dentro dessa nova história dos grandes reinados de pessoas negras. A primeira música é uma nova versão de Circle Of Life, voltada para vidas negras. Bigger traz uma narrativa sobre se reconhecer como parte de algo grande, algo maior que nós mesmos, fala sobre se conectar, nesse caso, com sua essência, ou seja, para pessoas negras com o continente-mãe. “Você é parte de algo muito maior, maior do que você, maior do que nós. Maior do que a imagem que eles pintaram para vermos”, diz um trecho da faixa.
Em muitos momentos são apresentadas diferentes lideranças de povos africanos. Por anos, fomos contados e retratados apenas como escravos em grandes telenovelas, livros e séries normalmente protagonizados por personagens brancos. Um dos grandes exemplos dessa perspectiva é a telenovela e livro A Escrava Isaura, que tem como protagonista uma escrava branca, a história reforça o estereótipo de que mulheres negras são irracionais e sem consciência. Em Black is King podemos nos enxergar em grandes líderes e reis. É lindo como o filme serve de espelho para pessoas negras, como podemos nos ver em tantas cenas. Dentro da narrativa do filme é construída uma identidade bem fundada em tribos importantes e grandes na África. Por não termos aprendido muito sobre culturas africanas em nossas vidas, devido a uma estrutura claramente racista dos currículos escolares, o longa aparenta, em muitos momentos, ser difícil de entender, por todo o conceito que ele carrega. Porém, cada nova imagem nos leva a uma viagem dentro desse continente tão lindo que é a África.
Diferente da decepção que foi o remake de O Rei Leão, Black is King traz uma narrativa muito mais forte em relação ao empoderamento negro. Simba é mostrado como um menino que já nasce príncipe e acaba se afastando de suas origens e de sua tribo. Ele caminha dentro da jornada do herói, com uma história de superação e de reencontro de pessoas negras com sua ancestralidade. De forma fantástica, músicas de diversos artistas africanos, como o rapper nigeriano Burna Boy, que se misturam com vozes já conhecidas, como o grande cantor, compositor e produtor musical Pharrell Williams, transformando o filme em um espetáculo à parte, que merece ser saboreado em cada palavra e cena.
Os figurinos são obras-primas feitas especialmente para a produção, mesclando diferentes influências de diversas partes do continente. Eles trazem consigo o poder da ancestralidade negra e deixam evidente em cada cena qual a principal missão da obra, que é exibir a negritude linda e exuberante como ela é. Em um dos momentos do filme, Beyoncé pode ser vista usando um vestido rosa, segundo algumas interpretações ela representa Obá, orixá das águas revoltas, trazendo consigo a ideia de força da mulher negra, abrangendo mais um tópico importante: o feminismo negro. Em outra cena, podemos ver o casamento de Nala e Simba, e os trajes dela remetem aos vestidos tradicionais da cultura Zulu.
O momento mais lindo de Black is King é protagonizado por ninguém menos que Blue Ivy Carter. A filha de Beyoncé e Jay-Z faz parte da faixa Brown Skin Girl, que, inclusive, foi indicada ao Grammy 2021 e, se vencer, a primogênita será a artista mais jovem a ganhar um gramofone. A música apresenta diferentes mulheres negras, falando um pouco mais sobre colorismo e mostrando a quantidade de cores que as pessoas pretas têm em diferentes locais. Algumas das citadas na letra são, inclusive, amigas de Beyoncé e muito conhecidas pelo grande público, como: Kelly Rowland, a modelo Naomi Campbell e a atriz Lupita Nyong’o. “Posa como um troféu quando a Naomi chega, ela precisa de um Oscar por aquela pele negra. Bonita como a Lupita, quando a câmera se aproxima. A represa arrebentou quando minhas Kellys chegaram”. A homenagem é um dos momentos que mais aquece o coração.
Mais uma faixa excepcional do musical é My Power. A cena é cheia de dança e mostra muita energia. O ritmo te pega e faz com que você tenha vontade de dançar conforme a melodia. A letra carrega muita força e empoderamento, e é cantada apenas por figuras femininas: Nija, Busiswa, Yemi Alade, Tierra Whack e Moonchild Sanelly. Essa sequência representa as mulheres (no caso da animação, as leoas) indo à guerra contra o reinado de Scar. A parte do rap é toda em Zulu, um dos 11 idiomas oficiais da África do Sul, glorificando e mostrando mais uma referência à diversidade do continente. Uma curiosidade sobre a música é que ela foi usada por manifestantes afro-americanos durante a contagem dos votos na eleição presidencial de 2020 nos Estados Unidos.
O filme termina com uma mensagem muito forte sobre ancestralidade, reinado e força das pessoas negras. Beyoncé claramente representa a Mãe África e uma divindade que nos guia diretamente aos nossos ancestrais, nos trazendo a um continente rico, poderoso, diversificado e forte, diferente do continente pobre que sempre nos foi mostrado, reforçando toda a consequência de atos colonialistas cometidos por europeus.
A obra vem em um momento forte, onde a pauta antirracista está no topo de discussões em todo o mundo, é muito importante o quanto ela faz por todas as lutas travadas por pessoas negras desde os primórdios. O filme chega a todas as pessoas e usa uma linguagem muito clara, que é a música, levando a discussão para fora de bolhas sociais. Black is King é um marco necessário, não somente para a indústria musical como para o cinema.
A cantora é a artista com mais nomeações ao Grammy 2021, levando com ela grandes artistas negros africanos para a maior premiação da música mundial. Black is King é uma potência de referência a histórias um dia apagadas por uma sociedade racista, é um filme poderoso que ressalta a necessidade de se falar sobre pessoas negras e sua importância.
“Nós sempre fomos maravilhosos. Eu nos vejo refletidos nas coisas mais sublimes do mundo. O negro é rei. Éramos beleza antes que soubessem o que era beleza.” – Beyoncé