A beleza do novo Rei Leão não sustenta sua reciclagem barata

Mesmo enchendo os olhos com os exuberantes efeitos especiais, o remake não aquece o coração em momento algum (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista 

O Rei Leão original, lá de 1994, talvez seja a animação mais importante da Disney. O filme relê Shakespeare, evoca um senso do épico e é completo dentro de si. A grandiosa jornada de Simba, Nala e Scar agora retorna aos cinemas num longa que, munido do fotorrealismo de Jon Favreau, falha em rememorar o principal fator do desenho: emocionar seu público.

Já começamos com o básico: o remake é uma releitura exata do filme dos anos 90. Com exceção de um ou outro discurso visando a monarquia e o sentimento de posse por sobre uma terra, o novo filme até filma suas cenas nos exatos ângulos que os diretores Roger Allers e Rob Minkoff o fizeram vinte e cinco anos atrás.

Mas a falta de pulso para mudar o original não é o que mais afeta esse Rei Leão. Jon Favreau, diretor dos dois primeiros Homem de Ferro e de Mogli – O Menino Lobo, parece ter se dedicado a pompa técnica e aos efeitos especiais em detrimento do cerne do cinema: a história que quer contar. A versão de 2019 não apresenta sequer uma cena ou sequência que grite para Pride Rock o motivo de ter sido feita. O filme se esconde na nostalgia.

A canção Never Too Late, de Elton John, assim como a trilha sonora de Hans Zimmer são um verdadeiro deleite (Foto: Reprodução)

A escolha do realismo ao lúdico do desenho torna quase ridículas as cenas de cantoria na savana. As vozes não se adequam aos focinhos e bicos inexpressivos dos personagens e parecem ter sido gravadas por cima de cenas já finalizadas. O sentimento de estar assistindo um documentário do Nat Geo sobre a vida animal ao invés de um musical da Disney passou pela minha mente uma porção de vezes na sala de cinema.

Jubas não são mais vermelhas e os animais não sabem muito bem como se portar ali. O imponente Scar (talvez o melhor vilão do estúdio) ou caminha em círculos enquanto a grave voz de Chiwetel Ejiofor ecoa por cima da boca do leão, ou simplesmente se deita para entregar seus monólogos. Esses, enfadonhos e sem toda a irreverência que Jeremy Irons transmitia no trabalho original.

Apenas James Earl Jones, voz de Mufasa, foi mantido na nova escalação de elenco. E, olhando em retrospecto, o Scar de Irons travava o embate perfeito entre os irmãos. Embora o trabalho de Ejiofor seja operante, a reciclagem das falas do filme original não caem bem em sua dublagem. Além do fato de que o personagem teve suas características primordiais capadas. Nada dos trejeitos teatrais ou do tom passivo-agressivo, não sobra nem a fumaça verde de Be Prepared.

A sensação que fica é que o Scar de Ejiofor reluta em cantar, indo na contramão do performático leão do desenho (Foto: Reprodução)

O elenco, formidável na teoria, não tem muito com o que trabalhar na prática. A rainha Sarabi (Alfre Woodard) não recebe destaque e seu único momento de relevância é obscurecido pela falta de emoção do realismo da fotografia. O mesmo vale para o rei Mufasa. James Earl Jones repete seu discurso do original, mas remenda alguns de seus pontos problemáticos. Quando perguntado por Simba (JD McCrary) se todo o reino iluminado pelo Sol era do futuro soberano, o leão declara que nenhum território é sua posse, apenas uma dádiva, e um governante deve focar no que pode oferecer, ao invés de tirar, à suas terras.

Além disso, o Pumbaa de Seth Rogen embute um discurso de aceitação que cai muito bem nos dias de hoje. Sua parceria com Timão (Billy Eichner) é o que dá a energia necessária ao filme no segundo ato que, assim como no filme dos anos noventa, continua arrastado. Os momentos musicais com o javali e o suricato são os únicos que ornam na trama. A expressividade quase humana dos animais rima com suas versões animadas e enche a tela como um otimismo funcional, mas vazio.

The Lion Sleeps Tonight, nas vozes de Rogen e Eichner, é uma investida divertida do longa, mas todo o foco, com total razão, vai para Hakuna Matata. Novamente uma cópia exata do desenho, a canção sobre viver sem se preocupar introduz a voz de Donald Glover (o Simba adulto) e é um bom alívio cômico em meio aos animais empoeirados de Jon Favreau.

Hakuna Matata é mais uma incisiva dose de nostalgia, que faz o público esquecer das enormes problemáticas do filme (Foto: Reprodução)

O Simba de Donald Glover nunca consegue se conectar ao público. Mesmo o filme de 2019 seguindo todos os passos de seu original, o personagem do desenho é muito mais empático e interessante que o de agora. Talvez pelo elemento fantasioso de leões performando na selva, talvez pela atmosfera aconchegante da África colorida.

O que impera aqui é que toda a evolução do herdeiro, seu encontro com Nala (Beyoncé) e a volta a Pride Rock, tudo isso é corrido, não há tempo para respiro. E olha que o filme reserva um bom tempo para mostrar o famoso Ciclo sem Fim da música de abertura. E todos esses momentos ‘extras’, que normalmente filmam a natureza selvagem, a vivência dos outros bichos, parecem apêndices desnecessárias, e muitas vezes cansativas.

Donald Glover não consegue inserir a dosagem necessária do trauma na dublagem de Simba (Foto: Reprodução)

O grande destaque do filme é John Oliver dublando Zazu. O pessimismo e perfeccionismo do personagem, aliado ao sotaque britânico do ator, tiram gargalhadas e enriquecem a personalidade do arauto do Rei. A ave, aliás, ao lado de Pumbaa, é a única reimaginação da obra original que funciona em perfeita harmonia e evolução comparada a sua versão animada. O Rafiki de John Kani mal fala mas sua participação na luta final compensa o descaso com o babuíno. 

É sabido que Beyoncé é muito mais cantora que atriz, mas seu trabalho dublando a leoa Nala não decepciona. Ela carece, como todos os outros, de expressão e emoção, mas repetir isso a esse ponto é inútil. A harmoniosa Can You Feel the Love Tonight, cantada por Beyoncé e Glover, é um deleite aos ouvidos, mas visualmente a cena não casa com o momento musical. Além de ser performada ao luz do dia, a canção parece uma forçada colagem de pequenas cenas para fazer-nos acreditar no amor dos dois leões.

A fraca Spirit é encaixada num momento solto do filme, sem qualquer sentimento de grandeza ou clímax. Picotada na duração de pouco mais de um minuto, a música original vai integrar o álbum The Lion King – The Gift, onde Beyoncé foi curadora. Esse CD conta com Jay-Z, Pharrel Williams (produtor do filme), Glover, a própria cantora e até mesmo sua filha Blue Ivy.

A Nala de Beyoncé não recebe destaque algum e é mais uma ponte para Simba voltar pra casa e destronar o tio (Foto: Reprodução)

O filme tenta reformular a arcaica ideia do Ciclo sem Fim. Entretanto, ao colocar o discurso monarquista na boca de Mufasa, o personagem mais sábio e respeitado da mitologia, o longa de Jon Favreau desacredita qualquer outra fala não dita pelo Rei. O timbre de James Earl Jones pode dizer o que for, nós, como audiência, iremos comprar a ideia como verdade incontestável. 

O roteiro de Jeff Nathanson opta por escolher Timão e Pumbaa para abrir a mente de Simba e ressaltar que o ciclo não passa de uma ‘linha’, e que cada ser exerce um papel individual ao longo da vida. O problema é que a dupla é sempre retratada como relaxada e sem credibilidade. Sim, a Disney redefine um ponto defasado do desenho, mas faz isso por meio dos bobos da corte da savana, de modo ineficaz.

O Rei Leão de 2019 parece muito mais um cumprimento de tabela na longa lista de remakes do Rato do que propriamente um filme que justifica sua existência. Sem um pulso narrativo que dê vazão às suas duas horas e patinando entre retratar animais cantores do modo mais real possível, o longa poderia muito bem ser um livro repleto de fotos dos animais da África reimaginando as sequências do desenho ao invés do produto que recebemos.

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