Caroline Campos
“A culpa não é minha se ela bebeu demais. A mulher tem que se dar ao respeito, se garantir. Aí, se acontece alguma coisa, vem reclamar. Ela foi até para casa comigo, vai dizer que não queria? Se arrependeu? Assim é fácil… fazem de tudo para acabar com a vida de caras como eu. Eu sou um menino do bem. Um cara legal. Tenho mãe, sabe. Óbvio que respeito as mulheres. Ela queria, eu tô te falando. Aquele ‘para, por favor’ foi só para pagar de difícil”. Familiar, não é? Você sabe que já ouviu isso.
A sensação é de impotência. É de ira. Um poço grande e fundo até a boca de solidão. Alguém aí para escutar nossa versão? Ficar do nosso lado? Bela Vingança sim. O primeiro filme dirigido pela britânica Emerald Fennell, também atriz (The Crown) e roteirista (Killing Eve), é uma resposta doce ao sexismo e a cultura do estupro, que abraçam e protegem a frágil figura masculina. Doce, sim, mas com ressalvas. A personagem de Carey Mulligan, a mais pop da temporada de premiações, está atolada até a cabeça de amargura e apatia, traumatizada pelos desdobramentos de um estupro, assistido e aplaudido, que sua amiga Nina sofreu.
O responsável foi Al Monroe. O competente, amigável e, agora, noivo, Dr. Alexander Monroe. Você teria coragem de arruinar a vida de um jovem promissor como ele? Bem, com base na carinha simpática de Chris Lowell, ninguém teve. Reitoria, polícia e amigos transformaram Nina em uma sombra, um fantasma sem rosto que aparece unicamente em fotos de quando era criança, ao lado de Cassie. A verdadeira Promising Young Woman, que intitula o filme no original, habita apenas as lembranças de sua melhor amiga, que adota um cotidiano vingativo como força-motriz.
Toda semana, Cassandra vai a algum bar. Toda semana, Cassandra finge que está estupidamente bêbada. Toda semana, algum homem a leva para casa e tenta se aproveitar da situação. O foco, por sinal, está em tentar. Depois de várias investidas, em que o não é tão claro quanto a insistência do abusador da vez, Cassie os pega de surpresa – que pena, a mulher com quem eles tentavam transar estava plenamente consciente. Mulligan se entretém com o desafio que propõe em suas expressões, entregando uma performance revoltosa e inconformada, sempre alerta e com muita, muita raiva.
O destaque é, claro, o elenco feminino. Se Carey Mulligan encabeça o filme, Laverne Cox dá brilho à sua participação como Gail. A dona do café colorido e simpático é a única amiga de Cassie, demonstrando a importância e o peso emocional que uma rede de apoio contribui na recuperação de uma pessoa traumatizada. Cox não precisa de muito para mostrar o talento que já tínhamos visto em Orange is the New Black, e, para a atriz, o longa de Fennell só põe em tela a pressão que sobreviventes de abuso sexual sofrem, independente do gênero.
A palavra-chave de Bela Vingança é consentimento. Depois da explosão do movimento #MeToo em 2017, que culminou na exposição de predadores asquerosos como Harvey Weinstein, a atmosfera hollywoodiana pareceu sofrer um abalo calculado que resultou em um discutível aprofundamento de narrativas feitas por e sobre mulheres. Neste contexto, não é de se surpreender que a obra de Fennell tenha gerado tanta repercussão ao abordar com tamanha acidez o abismo que envolve a responsabilização masculina, disfarçada pelo discurso da imaturidade. Ai, ai, esses garotos!
No entanto, vale o alerta: Bela Vingança possui conteúdo sensível que pode perturbar espectadores com gatilhos prévios. Em especial, a cena satírica que envolve Christopher Mintz-Plasse como o esquerdomacho artista e delicado Neil, que, olha só, pelo menos fez questão de acordar Cassie antes de enfiar seus dedos nela. A conclusão é deliciosamente satisfatória, mas, ainda assim, o desconforto aterrorizante é palpável. Até a participação inicial de Adam Brody, a primeira “vítima” em tela, embrulha o estômago, seja pelos comentários com os amigos ou pela fé que ainda tínhamos.
E Bela Vingança definitivamente não é um filme sobre fé. Mesmo que, mais de uma vez, Emerald Fennell nos faça de bobos, a maior desilusão é com Ryan. O adorável e bobão pediatra de quase dois metros de altura interpretado pelo comediante Bo Burnham nos encanta, e, por um momento, acreditamos, assim como Cassie, que tudo pode ser superado. Obviamente ignoramos a placa gigante de NÃO CONFIE EM NENHUM DELES que Fennell insere em seu filme, e não demora muito para entendermos que essa não é uma comédia romântica onde os personagens cantam Paris Hilton em farmácias e enfrentam as adversidades juntos. Ryan é a adversidade. E, na narrativa de Cassie, o corte é direto na raiz.
Assim, afogada no luto, a justiceira de Mulligan caminha conscientemente para o seu final. Ela espera, ansiosa, pelo xeque-mate, independente das consequências que ele possa gerar. Traumatizar homens desconhecidos era só a parte minoritária do plano, o foco sempre foi os verdadeiros algozes de Nina. Assim, Cassie se construiu: inofensiva, com lindos cabelos loiros e unhas coloridas que gritavam doçura. Até os tons pastéis de rosa e azul da peruca icônica que Mulligan adota no desenrolar da trama passam o ar de mera barista de cafeteria. Mas, por trás, está tudo lá. A subversão e a insubordinação. Você só precisa olhar atentamente.
Não é à toa que a atriz de 35 anos esteja sendo aplaudida de pé pela crítica especializada. Cassie é o melhor papel de sua carreira, mas o território das premiações não é novidade para Carey. Em 2010, o filme Educação, da diretora Lone Scherfig, a rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz e uma estatueta na mesma categoria pelos votantes do BAFTA. Por Bela Vingança, Carey Mulligan já levou para casa um Critics Choice Awards e integra as 5 indicações que o filme conquistou no Oscar 2021 – Melhor Filme, Atriz, Montagem, Direção e Roteiro Original; esta última sua categoria mais forte, pois Fennell recebeu o prêmio máximo do Sindicato de Roteiristas dos Estados Unidos.
Num ano em que, pela primeira vez, duas mulheres concorrem pela estatueta de direção – poderiam ser três, mas aí é pedir demais da Academia, não é? -, Emerald Fennell começa a montar seu hall de condecorações com sua estreia contagiante. Saber que a ira feminina está sendo respeitada (estamos muito iradas faz muito tempo) deixa a temporada de prêmios mais animada, e, se houvesse uma categoria de Melhor Uso de uma Versão de Música em Cena Final, os passos de Cassie ao som de uma Toxic cheia de suspense não perderia para nenhum outro longa.
E, no clímax, as duas jovens promissoras com futuros arrebatados dão jus ao título do filme. A satisfação sombria de assistir o desmantelamento total da cerimônia ironicamente good vibes de Al só é superada pelas mensagens pré-agendadas de Cassie. Aproveite o casamento ou o que sobrou dele, no caso. A finalização da história de Bela Vingança é amarga, mas é isso que ela quer ser. A independência da narrativa é como Cassandra, que rejeita todas as idealizações de futuro com um emprego dos sonhos e lindos filhinhos, em consideração a todas as oportunidades que foram tiradas de Nina. Sua amiga não poderá nunca envelhecer, ter animais de estimação ou operar pacientes. Ela virou uma estatística e, agora, Al também virará. Para o inferno todos vocês. Com amor, Cassie & Nina.
Bela Vingança é o pior pesadelo dos “caras legais”. É a coragem que iniciou o #MeToo tomando forma pelas lentes de uma câmera e ao som de Charli XCX. Nós não queremos suas cantadas. Você não precisa sugerir que eu chupei todo o Detran para conseguir minha carta. E, para mim e para as milhões de mulheres do mundo todo, basta. Se não podemos ser justiceiras em bares, podemos votar, lutar pelos nossos direitos, ir às ruas, estudar e nunca baixar a cabeça. Mas, se por acaso quiser aterrorizar um babaca desrespeitoso em um bar, tome os devidos cuidados e vá em frente. ; )
Qualquer relação exige consentimento. Violência sexual é crime. Machismo mata. Não se cale, a culpa nunca é da vítima. Procure ajuda e denuncie.