Ayra Mori
2020 foi um ano frutífero para os retratos a respeito da velhice. Vimos desde o drama da relação conturbada entre pai e filha no premiado Meu Pai (The Father) ao representante brasileiro a tentar indicação no Oscar 2021, Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou. E entre os destaques da temporada, o indicado a três categorias no Emmy 2021, As Mortes de Dick Johnson (Dick Johnson Is Dead), não passou em branco.
Dirigido pela documentarista Kirsten Johnson, o documentário reflete sobre a efemeridade da vida em seus curtos 89 minutos. “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia” – trecho do célebre poema de Gregório de Matos –, traduz perfeitamente a abordagem breve, simples e carregada de emoção proposta pela diretora. O pontapé inicial do longa partiu da criação de cenários fictícios no qual o pai de Kirsten, Dick, morre. Para isso, ambos celebram juntos os últimos anos de vida de Dick, num retrato que busca, com muita delicadeza, meios de enfrentar o luto através do amor pelo Cinema.
Protagonista do longa, Dick Johnson é um psiquiatra aposentado de 86 anos que parece se comprometer com tudo o que se propõe a fazer. É pai, avô e viúvo. Uma figura paterna presente, amorosa e genuinamente amiga, tanto da filha, quanto dos netos pequenos. Foi um marido que perdeu a esposa para o mal de Alzheimer e que, logo em seguida, foi diagnosticado com a mesma doença degenerativa. Pouco a pouco, Dick é obrigado a lidar com as consequências do Alzheimer.
Ele perde a independência e vai se esvaindo gradativamente. Em meio a confissões – de cortar o coração –, revela, derramando lágrimas, que já não se considera mais pai, mas sim um irmão caçula, um fardo a ser aturado. Inevitavelmente, o medo paira sobre a família tão unida e o fim é certo. Sabemos que tudo passa, nada dura para sempre. Mas a principal questão é: como lidar com a velhice? Como lidar com a morte?
A resposta de Kirsten para as perguntas acima é de tomar conta da narrativa em seus próprios termos. Johnson joga xadrez com a morte, criando diversas simulações bem-humoradas do óbito do pai, intercaladas com a documentação crua do seu dia a dia com ele. Dick é acidentalmente atingido por um ar-condicionado que cai do céu ou tropeça da escada ou, ainda, sofre um acidente de carro. Recorrendo à fantasia, as cenas fictícias são quase sempre seguidas de outras com Dick no paraíso, ao lado de quem ele admira e ama – comparecem Frida Kahlo, Billie Holiday, Freud, Bruce Lee e, entre outros, sua falecida companheira.
Identificado como adventista do sétimo dia, Dick tem respostas claras sobre a morte, onde, segundo a crença, todos os “justos” aguardam inconscientemente pela glória póstuma do juízo final. Dessa maneira, também criada segundo os dogmas adventistas, apesar de não crê-las, Kirsten brinca criativamente com as possibilidades surreais do que seria o tal lugar prometido. Somos expectadores de uma utopia transcendental recheada de gramados verdes, nuvens algodoadas, céu rosado, música alta, pessoas dançando e muito confete dourado. É como se a morte de O Sétimo Selo encontrasse os documentários fantasiosos de Varda. As Mortes de Dick Johnson parece dar continuidade ao legado de Agnès Varda, ao celebrar com muito tato e imaginatividade os frutos da idade.
Completamente esnobado da 93ª cerimônia do Oscar, junto de outros injustiçados do ano – dignos de menção o incrível Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre e First Cow – A Primeira Vaca da América –, Dick Johnson Is Dead encontrou no Emmy 2021 o espaço que lhe foi negado pela Academia. O documentário concorre principalmente ao prêmio de Melhor Direção em Documentário para Kirsten Johnson, além das categorias de Melhor Fotografia e Mérito Excepcional em Documentário.
Assim, cercada por situações mórbidas irreais, a diretora se naturaliza com a ideia da morte do pai, aceitando-a. É difícil encarar de frente os problemas que nos atormentam e, às vezes, escapismos puros são necessários. “Seria mais fácil se o amor só nos trouxesse coisas belas. Mas o amor nos exige encarar o medo de perder o próximo. E quando a coisa fica preta, que fiquemos unidos. E quando pudermos, celebremos os breves momentos de alegria”, narra Kirsten ao lamentar que, em 30 anos de carreira como documentarista, nunca teve a oportunidade de gravar a mãe antes da demência, como ela realmente era. Buscando não cometer os mesmos arrependimentos, ela efetiva, com o longa, uma verdadeira carta de amor ao pai e melhor amigo, Dick.
[SPOILER] Após uma cena de afeto sincero, onde Dick comemora seu octogésimo sexto aniversário comendo o melhor bolo de chocolate de sua vida, feito carinhosamente por seus netos, o filme se encerra com o falecimento de Dick. Ele sofre um ataque cardíaco e somos levados ao último ato. Agora, no velório, ouvimos relatos de amigos sobre quem era Dick, que, inesperadamente, ressurge vivo. Descobrimos que fomos, mais uma vez, tapeados pela dupla pai-filha. E tal qual o final de Titanic, Dick atravessa a capela quase como Rose cruza o navio, cercado daqueles a quem ele mais ama. Enfim, Kirsten mata o pai para finalmente poder ressuscitá-lo, imortalizando-o para sempre.