Júlia Caroline Fonte
“Grandes palavras são necessárias para expressar grandes ideias”. A frase de Anne Shirley Cuthbert descreve de maneira certeira o impacto que sua história causou ao longo de 5 anos desde o seu lançamento. A série canadense da Netflix, Anne with an E, teve sua estreia em 2017, e ainda hoje se destaca por ser a adaptação mais corajosa da obra de L. M. Montgomery. Essa nova versão, inspirada na série de livros Anne de Green Gables, conseguiu se adequar aos temas atuais de forma leve e encantadora, tanto em sua história quanto em seu visual.
Ao longo de três temporadas, acompanhamos a trajetória de Anne Shirley (Amybeth McNulty), uma órfã marcada por um passado sofrido, que é adotada por engano pelos irmãos Marilla (Geraldine James) e Matthew Cuthbert (R. H. Thomson), que queriam um garoto para trabalhar em sua fazenda, Green Gables, na cidade de Avonlea. Em desespero e com medo de ser devolvida, ela tem uma semana para provar que pode fazer parte do local. Em meio a reviravoltas, a garotinha encanta seus novos pais e passa a construir uma difícil jornada em meio à uma cidade que não está pronta para alguém como ela.
A série de Moira Walley-Beckett envolve o espectador com sua leveza enquanto aborda questões delicadas e significativas, principalmente aquelas que podemos enxergar em nossa época presente. É por isso que Anne with an E traz uma narrativa que se afasta em diversas questões de seu livro base, se adequando de modo incomparável em seu novo formato, cabendo discussões atuais que condizem com seu público, de modo a inserir na história personagens LGBTQIA+, negros e indígenas, bem como suas pautas. E é essa essência que assegura a obra como uma grande adaptação.
A protagonista é um dos pontos altos da série e acompanhar toda a sua trajetória nas três temporadas pode ser tocante, principalmente para o público feminino. Anne é uma garota que não se encaixa nos papéis esperados pela sociedade em que vive e, sendo uma órfã, não é aceita por muitas pessoas em Avonlea. Não é fácil acompanhar a dor e dificuldade que tudo isso causa à ela, porém, nos confortamos com o fato de que Anne consegue se reerguer de diversas situações graças a sua fértil imaginação – sua característica marcante e principal refúgio –, que sempre está ali para confortá-la.
Também não é difícil se identificar com a personagem em diversas situações que também passamos em algum momento da vida. Para pessoas que menstruam, não é difícil se familiarizar com o desespero da primeira menstruação – talvez menos dramático do que foi para ela. Além disso – agora nós, mulheres –, todas já tivemos muitas vezes que provar nosso valor quando rebaixadas a frágeis donzelas, reduzidas a um simples papel social que nos silencia. Anne é com certeza um símbolo e uma porta-voz de tudo o que queremos e precisamos dizer.
Anne é uma garota forte que sabe o valor de sua existência como mulher, reforçando que é capaz de fazer muitas coisas, assim como qualquer garoto. Ela está sempre questionando diversos padrões e estereótipos, e contestando condutas errôneas, quando, por exemplo, afirma que uma saia não é um convite. A protagonista planta uma sementinha em diversas figuras femininas ao seu redor, abrindo até mesmo os olhos da conservadora Marilla e dando voz às garotas da escola.
Porém, nem tudo é perfeito quando se trata da sua aparência e autoestima física. Anne cresceu acreditando que não possuía nenhum tipo de beleza, principalmente por causa de seus chamativos cabelos ruivos. A pressão estética é um peso árduo que ela carrega em sua jornada, recorrendo a atitudes drásticas em alguns momentos de desespero. Sua constante busca pela beleza faz parte da necessidade de ser aceita pelos outros, não conseguindo enxergar seu próprio valor.
Felizmente, em seus momentos finais, a série deixa claro que ao longo dos anos, Anne conseguiu resolver seus problemas – claro, não sem antes causar muita confusão –, e o amadurecimento da personagem é poeticamente muito bem construído. Sendo assim, é impossível não se emocionar quando Anne sente orgulho de seus cabelos ruivos, herdados de sua mãe que a amava muito. Porém, para chegar a momentos como esse, a garota enfrentou diversas situações e desafios necessários para construir quem ela é e fornecer muitos aprendizados, sendo a professora Stacy (Joanna Douglas) e Tia Josephine (Deborah Grover) figuras importantes para Anne neste momento.
A série, em geral, apresenta personagens incríveis e muito bem construídos, com arcos pertinentes nas três temporadas. Todos eles, de algum modo, têm um papel importante para a construção da nossa protagonista, sendo essenciais para seu amadurecimento e aprendizagem, e trazer apoio para ajudá-la a superar as dificuldades. Do mesmo modo, Anne se torna uma figura fundamental para transformar todos à sua volta. Sua melhor amiga Diana (Dalila Bela), vive uma realidade um pouco diferente; no entanto, as duas conseguem construir uma bela relação de amizade e companheirismo, com uma delicadeza que dificilmente vemos nas telas. Anne foi capaz de tirar Diana da bolha em que estava e fazê-la entender que o mundo vai muito além daquilo que somos ensinados a acreditar.
Enquanto isso, Matthew, um dos personagens mais encantadores da série, é o pai que Anne sempre precisou e esteve ali garantindo o melhor para ela, mesmo que com seu jeitinho único e introvertido, sempre encontrava uma forma de trazer amor a ela. Já Marilla construiu com a protagonista uma das relações mais bem trabalhadas da série, muito diferente de Anne e de Matthew, a nova mãe da garota tem uma personalidade forte que muitas vezes se choca com o inventivo mundo de Anne. Ao final, Marilla não se parece com a rígida mulher que expulsou Anne da fazenda em sua chegada, agora ela reluz um brilho amável e cativante.
Além de trazer pautas relacionadas à mulher, a construção e crítica ao padrão de masculinidade não fica de fora do debate quando se trata de Anne with an E. Além de Matthew, outros personagens masculinos muito diferentes entre si se destacam: Cole (Cory Gruter-Andrew), um garoto gay e ligado às artes, e um dos melhores amigos de Anne; o apaixonante Gilbert Blythe (Lucas Jade Zumann), um garoto educado e gentil (que, vamos combinar, não deveria ser um diferencial) que se torna interesse amoroso de Anne; e Billy (Christian Martyn), um garoto repugnante e agressivo (e assediador) que sempre sai impune dos danos que causa. Colocá-los juntos nas telas contribui para expor um problema social e denuncia o tipo de masculinidade não mais tolerada atualmente.
Em relação aos aspectos técnicos, o cuidado da produção é algo de se admirar. A direção de fotografia em Anne with an E cativa o público com sua beleza e aconchego trazidos pelos tons quentes da imagem. A direção de arte também é impecável, recriando o período histórico de forma encantadora e condizente com a abordagem da série. O grande destaque fica para a abertura da obra, dirigida por Allan Williams, contou com oito pinturas de Amybeth McNulty feitas pelo artista Brad Kunkle, que foram misturadas com diversos elementos digitalmente, carregados de simbologias, acompanhadas de citações do livro de Montgomery.
Outros aspectos como a sonorização e trilha musical também se mostram fundamentais, pois quando combinadas aos aspectos visuais, criam o clima e ambientação ideais para a narrativa. Além disso, a escolha do elenco não decepciona, trazendo nomes de peso; contudo, o principal destaque fica para a protagonista: Amybeth McNulty, que já foi consagrada como Anne Shirley, e deixa difícil imaginar alguém que poderia dar vida ao papel tão bem quanto ela.
Infelizmente, para a decepção do fandom, Anne With an E foi cancelada após sua terceira temporada, devido a problemas burocráticos em sua produção. Sua última parte foi feita visando dar o final esperado pelo público e que nossa personagem sempre mereceu: descobriu o mistério por trás de seus pais biológicos, foi para a faculdade com as amigas, fez as pazes com sua autoestima e é claro, finalmente conseguiu o tão aguardado beijo (e declaração) de Gilbert Blythe. No entanto, ela deixa espaço para continuações e pontas soltas em histórias secundárias que deixam um forte incômodo e revolta em seu público que continua engajado para salvá-la.
Apesar disso, a série consegue trazer esperança de um jeito inspirador e reconfortante, seja em seus personagens e história, seja na mensagem que quer passar para seu público. Derramando muitas lágrimas e arrancando sorrisos inocentes, Anne With an E deixa uma marca em todos que a assistem. E assim como a protagonista, aprendemos a encontrar nosso valor em quem somos, e como temos força para mudar o mundo a nossa volta. A ilustre adaptação pode ter encerrado sua produção, mas continua a ressoar sua poderosa voz para mulheres de diversas gerações.