Raquel Dutra
A história da política brasileira é cinematográfica por si só. Quem dera tudo o que assistimos acontecer através dos telejornais diários fossem apenas loucuras roteirizadas por mentes ardilosamente férteis, e não tema de análises profundas e urgentes de diversas produções de não-ficção. Dentre todos os eventos surreais e reviravoltas cabulosas que acontecem na capital do país e em seus centros políticos derivados, algo em específico perturba os corajosos que se dispõem a interpretar essa realidade maluca definitivamente deflagrada em 2016. Afinal, mesmo na terra conhecida por seus mandatos presidenciais inacabados, o angu da queda de Dilma Rousseff ainda tem alguns caroços.
Aos olhos da produção documental brasileira, a análise do processo que tirou a primeira mulher eleita à presidência do Brasil de seu exercício não é resultado de obras isoladas, mas sim o centro de todo um movimento. É o chamado Cinema do Golpe, construído nos últimos anos através de uma série de produções que se propõem a abordar a queda de Dilma Rousseff e toda a crise social e política que a acompanha. Cinco anos e alguns filmes depois, a decadência do nosso ambiente democrático permanece deixando o melhor roteirista de House of Cards boquiaberto e mostrando que ainda existe o que se discutir sobre o início do declínio, desde seus ocasos, até a sua Alvorada.
O filme de Anna Muylaert e Lô Politi não conserva sua riqueza metafórica à toa: dos primeiros sinais da era de trevas do governo Dilma ao seu desfecho incandescente, Alvorada explora a história sob uma nova ótica, relacionando-se intimamente com outros dois documentários. Primeiro, O Processo partiu da perspectiva da diretora Maria Augusta Ramos, que acompanhava os bastidores da votação do impeachment nas instituições democráticas; depois, Democracia em Vertigem se voltou para as causas e efeitos da crise pela ótica da sociedade civil, na direção de Petra Costa. Agora, Alvorada interpreta o evento por dentro da residência presidencial, testemunhando a intimidade do poder direto das entranhas do Palácio da Alvorada, e capturando as impressões da figura impenetrável de Dilma Rousseff durante o período mais atribulado de seu governo.
Além do tema central, a trilogia do Cinema do Golpe tem outro elemento fortíssimo em comum. Quando a primeira cena de cada documentário se encerra, o título da produção surge na tela acompanhado da assinatura de suas diretoras. Coincidência que o final trágico da primeira presidenta do nosso país seja documentado por mulheres? Jamais. A cadeira presidencial do Brasil já viu muitos inícios, meios e fins de governos, mas nunca antes havia testemunhado o teor sexista e misógino por parte do restante do círculo político e do próprio povo para com sua liderança.
A história da presidência de Dilma Rousseff não é leviana em sentidos políticos, muito menos sociais, e para compreender a totalidade das raízes e desdobramentos de um evento já complexo e atravessado por questões de gênero, é preciso um olhar capaz de reconhecer cada aspecto que influencia suas ocorrências. Sem tomar esse assunto como foco principal, os três filmes compreendem que falar de Dilma Rousseff é, sobretudo, falar de uma mulher num contexto patriarcal.
Mas na proximidade narrativa de Alvorada, esse ponto ganha um contorno especial. A linguagem documental direta e observativa – e às vezes dialógica – cria uma capacidade de penetração única naquele ambiente completamente despreparado para receber uma presidenta. Essa noção permeia todo o filme, construída com contrastes e de forma quase melancólica, mostrando uma líder política cercada de pessoas mas ainda solitária, que vai de encontros calorosos com outras lideranças femininas à reuniões frias com seus líderes de governo, todos homens.
A história de 2016 é uma encruzilhada repleta de contradições, e qualquer obra que decide mergulhar nesse imbróglio precisa saber lidar com elas. Enfrentar ou render-se são as duas opções mais prováveis, mas Alvorada encontra a mítica terceira via diante da polarização. Ao invés de brigar ou se perder entre os impasses e perder tempo perseguindo um juízo de valor na figura da ex-presidenta, o filme cria seu próprio tom e entra no ritmo dos eventos com seus contrastes narrativos, seguindo a direção conflitante da própria realidade que registra, e criando assim uma obra cheia de camadas, inteligente e perspicaz.
As filmagens são diretas, frias, intrusas e despojadas, mas suas imagens entregam significados no exato oposto: Alvorada é repleto de metáforas, nunca inconsequente, próximo e que cria uma relação entre o espectador e seus personagens. O cenário já é um componente importantíssimo e arquitetura brasiliense fala por si só. Os espaços, grandiosos e modernos, expressam frieza e angústia, em contraste com a intimidade que o filme busca. Sem uma palavra, o documentário discursa.
Com esse plano de fundo, Muylaert e Politi aproveitam até para justificar suas escolhas ideológicas, em palavras vomitadas por justamente quem? Ele mesmo, o inominável. O próprio serve ao filme, encurta um debate inseparável e explica o porque chamamos o impeachment de Golpe com seu discurso no púlpito da votação do processo, quando ainda ocupava uma cadeira na Câmara dos Deputados ao invés de desgovernar o país, e exaltava a memória de um dos torturadores de Dilma no período da Ditadura iniciado pelo Golpe Militar. Equiparando a natureza dos eventos, ele se coloca ao lado dos que saíram ganhando com a desgraça da democracia brasileira: “perderam em 64, perderam agora em 2016“.
Pelo contexto político complicado agravado pelo ambiente social naturalmente misógino, era de se esperar uma Dilma Rousseff enfurecida – assim como era ilustrada na mídia – e magoada – assim como diziam ser uma mulher na situação em que ela estava. Mas Alvorada mostra que essa pessoa nunca é encontrada dentro daquela residência presidencial. Algo estranho até mesmo para a proximidade da direção de Muylaert e Politi, que interferiam vez ou outra no cotidiano da presidenta em algumas conversas diretas.
– Você está no eixo nessa situação – Nota uma das diretoras.
– Não tenho a menor ideia [de como]. Nunca fui diferente disso. Eu não desequilibro. Inclusive, teve uma época em que eu me esforcei pra entender como o outro desequilibrava, porque era importante pra você não julgar ninguém. Porque as pessoas que eu gostava estavam desequilibrando. Como é que você gosta de uma pessoa que desequilibra e não julga ela? Só entendendo que é da vida, dar uma desequilibrada, não segurar a barra…
– Nem na cadeia [no período da Ditadura]?
– (…) Poucas [pessoas] desequilibravam – Dilma responde.
Nesses momentos, a seriedade de Alvorada é quase satírica. De repente, o temperamento da ex-presidenta, sempre uma questão para o sexismo da mídia, da sociedade e da política, mostra, na verdade, que não poderia ser mais apropriado. No meio de egos enormes e homens que transformam tudo que é possível em algo sobre eles mesmos, o emocional de Dilma simplesmente não reagia à altura, separando muito definitivamente as coisas, mesmo em um dos momentos mais delicados de sua vida.
O equilíbrio inabalável da personagem principal de Alvorada acrescenta mais uma camada ao filme, que se contenta com o fato de que seu desejo de intimidade não será totalmente concretizado. Os momentos íntimos das poucas conversas diretas com as diretoras mostram uma espontaneidade atraente e sabedoria brilhante. Mas também existe uma vibração de tensão palpável no ar, criando um contraste na persona da ex-presidenta, que externa e institucionalmente, se expressa de forma engessada, firme e distante.
Em um momento, ela debate Arte e História do Brasil, cita José Saramago e Guimarães Rosa. Suas amarguras e revoltas ficam de fora de todas as conversas, onde ela se ocupa em divagar sobre a figura do diabo, que para ela, é “uma criação intrigante”. E no meio da tensão, diz que não acredita no mal, porque nós somos muito frágeis para sermos maldosos, passa pela equipe de gravação e pelos profissionais da imprensa e pergunta: “vocês ‘tão’ bem?”.
Mas conforme o processo avança, ela vai se distanciando do filme, do palácio e da presidência. Ela passa pelas câmeras coçando a cabeça, sem dizer nada, sequer olhando para o caminho. Aos poucos, Alvorada acompanha o momento em que Dilma Rousseff deixa de ser uma figura política atual e se transforma numa figura histórica, menos próxima, e mais mítica. Ela sabia separar as coisas, e cada passo à frente na assimilação do fim de seu mandato é um passo atrás de seu contato próximo com o filme.
As coisas no ecossistema presidencial, no entanto, continuam acontecendo. Então, o próprio espaço se transforma num personagem de Alvorada. Do formigamento do subsolo, o desespero no térreo e o vazio do primeiro andar, o palácio imponente que é lugar de morada e de articulação política é capturado pelo olhar de Muylaert e Politi como um organismo vivo, que perde seu ritmo conforme o seu coração se enfraquece. Abatido, mas imparável.
Enquanto o futuro do país é decidido no Senado, o Palácio aparece vazio e Alvorada se preenche com o resultado da votação do impeachment. No total, 81 senadores votaram; 61 para o fim do mandato de Dilma Rousseff, e 20 para a permanência da presidenta. Não houve nenhuma abstenção.
E então, assistimos o caos se instaurar nas entranhas do Palácio da Alvorada. Assessores, chefes de gabinete, cozinheiras e camareiras caem no choro, mas quando a presidenta passa, todos parecem se lembrar do equilíbrio, endireitam a postura e disfarçam a linguagem corporal perdida. O discurso dela finalmente mostra alguma rachadura, e ela tremula ao constatar publicamente mas também para si mesma que acabaram de derrubar a primeira mulher eleita presidenta do Brasil.
Processo encerrado, Alvorada se aproxima de seu fim junto dos últimos momentos do governo de Dilma Rousseff. A notificação oficial chega no palácio e é recebida por um assessor, mas os informantes insistem em entregá-la pessoalmente. Depois de pintar e bordar com a constituição e os preceitos democráticos, os representantes do Golpe se preocupam com o cumprimento de um suposto protocolo em que a presidenta deve assinar o documento na frente deles. Aqui, em seus últimos suspiros, Alvorada ainda encontra espaço para refletir sobre a própria noção de poder.
Para o documentário, ele é cheio de pompa, se impõe, acompanhado de protocolos e obrigações. Ele precisa se afirmar. É uma energia tão implicante e egóica que só pode ser expressivamente masculina. A mesma que transforma uma sessão de depoimentos seríssima e urgente num show de horrores. Enquanto, cinco anos atrás, a primeira presidenta do Brasil passava horas e horas respondendo perguntas inúteis para uma legião de parlamentares que nem com as melhores respostas do mundo mudariam o curso daquela história.
O fim do fim assume uma leitura épica. A jornada atribulada do governo se encerra, o frisson no palácio se aquieta, o nosso vínculo com a personagem histórica de Dilma Rousseff é findado e aquela noite interminável onde o Brasil pisoteou nos preceitos democráticos e se esbaldou em misoginia finalmente acabou. Os governantes seguem suas atividades, agora com um deles ocupando a cadeira presidencial; o Alvorada se reorganiza; a ex-presidenta se muda para longe do antro de ataques; e o Brasil segue como sempre foi.
Mas no movimento da virada do dia, virada do governo, virada de era, Alvorada termina de descascar as camadas dos eventos de 2016. O que acontece na escuridão toma quase todo o filme, porque é de fato muito importante, mas a chave está no amanhecer. Quando a luz ilumina tudo o que está escondido e não permite mais a permanência de qualquer forma de disfarce. Quando ficção nenhuma importa frente à realidade. Quando as intenções dos atos são reveladas, quando as verdadeiras faces são expostas.
Para esse árduo trabalho de fuçar cada instante e lugar do sistema do Golpe, podemos confiar nas nossas cineastas. Esse ambiente não é um lugar para levianos, não é um lugar para iniciantes e não é um lugar para análises rasas. Seja no silêncio coberto do ocaso ou no brilho reluzente da alvorada, nada escapa de quem “não tem nada a esconder”.