Vitória Silva
No dia 18 de agosto de 1992, o cineasta Woody Allen convocou uma coletiva de imprensa no saguão do The Plaza Hotel, em Nova York, para confirmar que estava tendo um romance com a jovem Soon-Yi Previn. Para quem esse nome possa soar desconhecido, a coreana é a filha adotiva da atriz Mia Farrow, que também era namorada de Allen até o ocorrido. Esse fator quase transposto de uma novela de Walcyr Carrasco foi apenas o estopim de uma batalha que perdura anos, e é retratada na série documental Allen contra Farrow.
A produção da HBO, dirigida por Kirby Dick e Amy Ziering, parte desse princípio para apresentar uma narrativa por vezes ressoada na mídia, já atravessando milhares de versões e reviravoltas. Voltando um pouco mais na linha do tempo, o primeiro episódio começa apresentando o início do relacionamento entre Mia e Woody, que resultou em um aspecto quase conjugal, em que o aclamado diretor aceita adotar uma filha junto à ela, mas que ficaria sob total responsabilidade da atriz. Assim, Mia, que já era mãe de sete, encontra a pequena Dylan, uma garotinha perfeita para realizar as tais idealizações de seu futuro “pai”.
O desenrolar da trama passa a se tornar um verdadeiro pesadelo. Diversas fontes próximas à família se juntam aos relatos de Mia e Dylan para retratar a obsessiva relação do pai com a filha, e os breves indícios de um perfil perverso do amável diretor. Mas a tendência que a narrativa segue é brevemente interrompida por uma nova revelação, nem tão surpreendente para quem já tem acompanhado a história aqui do lado de fora, em que Mia encontra fotos sensuais da filha Soon-Yi no apartamento do seu até então namorado.
Junto ao fio condutor tecido pela família ao longo dos quatro episódios, somam-se os olhares de críticos e admiradores da obra de Allen. Daqueles que conseguem formular claramente a adoração pelo diretor, pela forma como ele retrata a Grande Maçã estadunidense, pela identificação com seu jeito desengonçado e humanizador, e pelo jeito que expressa suas personagens mulheres – sim, claro, as mulheres!
E em sua própria obra também emergem evidências do seu comportamento questionável, como pela insistente representação de relacionamentos entre um homem mais velho e uma mulher jovem, o tal personagem masculino da relação por muitas vezes sendo ele próprio – mas isso também só pode ser um fruto do acaso -, como exemplificado na sua aclamada produção Manhattan.
Como se ter um caso com a sua enteada de 21 anos já não dissesse muito sobre o caráter do nova iorquino, a revelação que segue consegue ser ainda mais tenebrosa: o suposto abuso sexual de Woody Allen a sua filha Dylan Farrow, quando esta tinha 7 anos de idade. E aqui deixo como suposto pelo caso nunca ter resultado em uma investigação policial de fato, mas o desenrolar deste capítulo tenebroso fica para o minutos desenvolvidos na própria produção.
Eis uma guerra instaurada: os relatos da jovem Dylan contra a clemência de Allen por sua inocência. Mas este não se atreve a tentar contrapor os argumentos de uma criança, jogando toda a carga do ocorrido nas costas de Mia, como uma suposta manipuladora por ter ciúmes da relação do ex-namorado com Soon-Yi (que, mais uma vez, era sua filha). A mídia compra essa versão, os fãs também, e a comunidade hollywoodiana mais ainda. Allen não é investigado, muito menos linchado pela sociedade. Ele permanece desfrutando da sua liberdade, enquanto levemente sustenta um relacionamento saudável com sua ex-enteada e uma acusação de abuso infantil.
Fato é que ninguém é capaz de duvidar de um senhor indefeso e aparentemente dócil como Allen, muito menos alguém dono de produções tão potentes e que conversam tanto com diferentes tipos de público. E assim a história se discorre, Mia se torna incapaz de continuar atuando em solo estadunidense, ao passo que Allen tem o amor da opinião pública e os demais prazeres que um homem branco e bem sucedido é capaz de gozar vivendo em sociedade.
Esse retrato permanece não apenas por minutos, como se passam na série, mas por anos. A acusação se deu em 1992, e, desde então, Woody Allen já teve 8 indicações e 1 vitória no Oscar, 3 indicações e 1 vitória no Globo de Ouro, e 26 filmes lançados. Isso não parece soar nem um pouco como alguém sofrendo as consequências de qualquer ato que seja.
Há quem afirme que a produção escuta apenas um lado da história, e de fato é o que acontece, mas não pela falta de tentativas em se contatar o outro, como assim é reforçado ao final de cada episódio. Ao mesmo tempo, é interessante observar como não há evidências suficientes no mundo quando o assunto em questão é a condenação de um homem poderoso. Não bastam os depoimentos e traumas revirados por uma criança de 7 anos, nem os relatos de pessoas próximas, muito menos a opinião de profissionais, ou as milhares de falas e posicionamentos machistas e repugnantes de Allen, que ele nem se esforça em disfarçar em suas entrevistas ou nas conversas gravadas ao telefone.
Allen contra Farrow é sim uma produção parcial, mas foca no olhar de uma jovem que teve sua voz calada por mais de 20 anos e viu suas relações familiares e amorosas serem massacradas por um rolo compressor, enquanto assistia o seu abusador andar em tapetes vermelhos e receber homenagens como se fosse o homem mais genial do universo. A mesma jovem que só pôde observar o início da queda do mesmo há pouco tempo, e muito longe de ser o fim.
E é mais do que simbólico que essa derrocada tenha se discorrido com a crescente onda do Me Too, em que foi necessário unir forças de centenas de mulheres para derrubar um dos maiores magnatas de Hollywood. Ou seja, Dylan Farrow sozinha jamais será capaz de realizar o mesmo com a monstruosidade do seu pai. Tal fato é concretizado na fala da psicóloga Anna Salter durante a produção: “O público é muito severo com criminosos sexuais, contanto que eles estejam longe e não tenham carisma”.
Conteste pelas contradições presentes na história ou pela falta de evidências. Mas se apenas provas fossem realmente suficientes Johnny Depp não estaria ainda atuando em filmes, Roman Polanski não estaria ganhando prêmios, Marilyn Manson não estaria participando de álbuns de grandes rappers, e a lista é longa. Allen contra Farrow é um retrato escancarado de uma sociedade misógina que elege ídolos medíocres, e depois teme ao vê-los se revelarem verdadeiros monstros. Afinal, quem acreditaria que Woody Allen faria isso?
Não é sobre separar o artista da obra ou qualquer outra discussão incabível aqui, é sobre condenar e reconhecer os verdadeiros culpados. Enquanto vemos mulheres serem culpabilizadas por muito menos, uma quantidade infinita de panos são passados para dezenas de predadores sexuais ou homens de caráter questionável. Não é apenas sobre Allen ou Spacey ou quem quer que seja o nome da vez, o buraco sempre foi bem mais embaixo.
Mesmo com a divisão de opiniões e as aguardadas críticas vindas do cineasta, Allen contra Farrow garantiu 7 indicações no Emmy 2021. Entre elas, Kirby Dick e Amy Ziering se garantiram em Melhor Direção em Documentário/Programa de Não-Ficção pelo Episódio 3, que também concorre em Roteiro em Programa de Não-Ficção. A produção ainda tem grandes chances de sair vitoriosa por Melhor Série Documental ou de Não-Ficção contra nomes como Faz de Conta que NY é uma Cidade, American Masters, City So Real e Secrets of the Whales.
Se o fim de Woody Allen no meio cinematográfico está próximo, só o tempo irá dizer. Além das inúmeras desaprovações ao próprio documentário da HBO, ele ainda conta com uma legião de defensores em Hollywood. Mas não podemos esperar muito de uma sociedade que é conivente até com um homem que assumiu abertamente ter tido relações sexuais com uma jovem de 13 anos. E não podemos mesmo: daqui a dez dias, o próximo filme de Allen irá abrir o Festival Internacional de Cinema de San Sebastián.