Caroline Campos
Em 2005, Árido Movie viajou pelas estradas sertanejas com muita maconha, pouca água e informação em excesso. Com Guilherme Weber, Giulia Gam e Selton Mello, o longa do cineasta pernambucano Lírio Ferreira traçou seu caminho até Veneza e ficou marcado com muito afeto na filmografia do diretor. 16 anos depois, chega aos cinemas Acqua Movie, uma espécie de continuação espiritual da história, mas, desta vez, ambientada na liquidez das obras de transposição do Rio São Francisco.
Dentre os personagens do longa de 2005, apenas Jonas, o protagonista, retorna – o mais sem graça, diga-se de passagem, pois adoraríamos rever Bob nas telas. Dessa vez, no entanto, Weber ganha apenas algumas cenas e, como em um ciclo que liga as duas obras, repete o feito de seu pai no filme anterior, girando as primeiras engrenagens da nova narrativa.
O protagonismo, então, se estabelece nas figuras de Alessandra Negrini e Antonio Haddad, mãe e filho que partem em uma viagem de reconexão familiar para espalhar as cinzas na cidade natal do recém-falecido Jonas. Duda e Cícero, respectivamente, tentam lidar com o afastamento latente que os separa enquanto enfrentam as quase perpétuas mazelas do sertão nordestino, que se encontra em uma mudança de paisagem proporcionada pelos canos jorrando água e os rios artificiais gerados pela transposição.
Filmado em 2017 pelas cidades de São Paulo, Salgueiro, Cabrobó e pelos arredores do Polígono da Maconha, Acqua Movie se encontra e se perde em suas tramas na mesma medida. O relacionamento de Duda e Cícero é, de longe, o ponto alto do filme, não só pela atuação magistral de Negrini, como também pela dedicação do roteiro de Lírio Ferreira e Marcelo Gomes em nos fazer adentrar as duas versões da história: Cícero, abandonado pela mãe; Duda, tentando equilibrar o lado materno com o profissional.
O sexto longa de Ferreira também faz considerações certeiras e extremamente atuais sobre a situação política do interior semi-árido brasileiro. O coronelismo, concentrado na figura asquerosa de Múcio, prefeito de Nova Rocha, é explorado em todas as suas nuances, assim como o anterior Árido Movie se propôs a discutir o messianismo. Interpretado por Augusto Madeira, Múcio é quase um vilão caricato de filme infantil. Não que isso seja uma crítica – na verdade, o personagem é completamente transparente em sua ignorância.
Através do simbolismo de uma faca com a bandeira do Brasil na mão de uma criança, Lírio Ferreira foi premonitório em relação ao que o país viria a se tornar. No entanto, se Acqua Movie acerta em seus dois primeiros núcleos, é a trama que envolve os povos indígenas que deixa a desejar. Alessandra Negrini, ferrenha defensora da causa indígena, não se cansa de se envolver em projetos ambíguos que tratam do tema – Cidade Invisível também foi alvo de críticas pela má representação da cultura desses povos.
A bola da vez está em Duda, a documentarista empenhada na divulgação do movimento indígena que ganha muito mais voz ao discutir a causa do que seus próprios protagonistas. O resultado é um filme que falha ao entender verdadeiramente o ser indígena e cai na falácia de que, no fundo, todos somos “índios”. Na realidade, o Brasil está em débito com os povos originários há muito tempo, e projetos como o Marco Temporal apenas provam que a causa ainda é invisibilizada e atacada dentro de seu próprio território. Afinal, o Brasil inteiro é terra indígena.
Nos aspectos técnicos, o filme sabe bem como se portar. Como um road movie, o longa de Lírio Ferreira captou perfeitamente a beleza inóspita do sertão nordestino sempre em movimento por suas estradas. O plano no Lago de Itaparica, que representa a antiga e já afundada cidade de Rocha, carrega um misticismo único ao retratar a submersa Igreja do Sagrado Coração de Jesus, responsável por deixar ainda mais evidente a água como uma personagem simbólica dentro da narrativa.
Acqua Movie é um filme de boas intenções e muitas confusões pelo caminho. Lírio Ferreira vai além da simples extensão dos temas de Árido Movie e reinventa seu próprio universo, sempre muito bem acompanhado do cenário sertanejo – com o qual o diretor possui uma familiaridade singular. Apesar dos atrasos no lançamento devido à pandemia, é exatamente em suas contradições que a obra se encaixa com o ano de 2021, por bem ou por mal. Depois de uma filmografia árida, o sertão enfim vira mar para o cineasta pernambucano.