Raquel Dutra
Em julho de 2021, uma personagem singular chamou a atenção no meio das estreladas atuações da 74ª edição do Festival de Cannes. A seleção de atrizes consideradas para o prêmio de interpretação feminina do maior festival de Cinema do mundo era composta por nomes como o de Agathe Rousselle, a força motriz do grandioso vencedor da Palma de Ouro, Tilda Swinton, a detentora de boa parte do prestígio do Júri presidido por Spike Lee, e Marion Cotillard, a protagonista da direção favorita dos votantes do último ano. Mas quem terminou o dia 17/07/2021 premiada ante suas veteranas foi Renate Reinsve. Não era para menos, afinal. Ela é A Pior Pessoa do Mundo.
A hipérbole instigante denomina a personagem apenas de forma inicial e teórica, já que o filme de Joachim Trier não acontece como se seu protagonismo realmente fosse da figura invocada pelo seu título. Julie não cometeu nenhum crime hediondo, apenas vive a imperdoável consequência de não se encontrar no mundo do século 21. De faculdade em faculdade, emprego em emprego, relacionamento em relacionamento, a representante da geração millennial procura saciar aquele faminto vazio de quem ainda não entendeu o que realmente alimenta a sua existência. Assim, sem mais nem menos, a figura central de A Pior Pessoa do Mundo se estabelece bem longe de sua própria apresentação, como o vetor dessa história ordinária narrada em esquetes, que organizam 12 capítulos, um prólogo e um epílogo de 4 anos da vida da personagem.
O motivo do título, então, se torna uma questão tão importante quanto o desenrolar da história de Julie. Para o bem e para o mal, The Worst Person in the World (Verdens verste menneske, no original) une seus questionamentos e suas respostas num tom de desafio que prende seu público do início ao fim. Durante seus 128 minutos, a produção norueguesa parece apreciar sua própria invocação de uma imagem negativa para si mesma, irresistível de tão genuinamente exagerada. E dentre todos os efeitos criados pela direção de Trier e seu roteiro dividido com Eskil Vogt, o mais forte é a completa despreocupação em atender às expectativas que ele mesmo criou para A Pior Pessoa do Mundo.
Em concordância com a estrutura que o próprio filme escolheu para se construir, o seu entendimento parece pedir para ser realizado por partes, como forma de construir uma convergência de aspectos que por vezes são distintos demais uns dos outros. Não que outro caminho além desse fosse possível, considerando os elementos que nos são apresentados em tela: já no início, A Pior Pessoa do Mundo introduz sua protagonista em cortes rápidos e narrados em terceira pessoa, por uma mulher invisível e aparentemente mais velha, dublada por Ine Jansen.
Através deles, Julie é mostrada em suas aulas de medicina, como uma aluna exemplar que procura ali algum tipo de validação, depois em suas aulas de psicologia, quando ela decide que precisa estudar algo mais humanamente abstrato, e depois em suas sessões como fotógrafa, quando ela procura um rumo totalmente diferente para sua vida. Em algum lugar no meio disso, ela completa 30 anos, o que, ao invés de definir seus caminhos, acaba por aprofundar a sua crise de identidade.
Os pedaços de história apresentados por Trier e Vogt seriam ‘apenas’ a força da expressão de uma narrativa essencialmente fragmentada, mas as ideias de A Pior Pessoa do Mundo não correspondem aos seus fatos. Para além da estética, a linguagem do filme se mostra descuidada com os sentidos que expressa a partir do momento em que escolhe a forma como vai mostrar Julie para nós. Seus motivos sempre são ironicamente rasos, em função de conferir espaço para revelações que, segundo os criadores da narrativa, são muito mais importantes do que qualquer outra coisa sobre a mulher em crise que estamos conhecendo.
É que dentre tudo o que acontece nos altos e baixos da vida de Julie, A Pior Pessoa do Mundo e prefere destacar, por exemplo, que ela se relacionava sexualmente com um professor da faculdade. Depois, o tempo do filme é utilizado para mostrar que ela também usava seus espaços de trabalho para romances escondidos. Aqui, ainda estamos no início, mas, como prometido, a estrutura episódica segue os percalços da vida de Julie pela ótica da dupla de roteiristas, que nunca consegue de fato encarar a personagem e a história que criou, numa espécie de male gaze cult – nem tão – disfarçado.
Então, entre as idas e vindas e os muitos homens que vão envolver a história da protagonista, a superficialidade narrativa só se agrava: o segredo mais profundo que Julie pode relevar? Também tem a ver com sexo. A sua cena mais celebrada e repercutida? Também se restringe à sua vida amorosa. E quando ela chega em um de seus auges, desencadeado pela publicação e repercussão de um artigo intitulado “Sexo Oral na Era do #MeToo”, Trier não faz nada além de aproveitar sua personagem para bradar suas próprias concepções de gênero e sexo para mulheres num sarcasmo de muito mal gosto. O impacto disso para Julie e o efeito em sua vida profissional e/ou intelectual? Nada disso é caro ao filme como o seu histórico de relacionamentos.
Na monotonia do dia a dia contemporâneo de Julie, A Pior Pessoa do Mundo não consegue encontrar nenhum espaço para aprofundar as razões de tamanho deslocamento de sua personagem. Desdenhando – e vamos chamar assim para não dizer outra coisa – a substância promissora de seu desenrolar prometido, o texto indicado ao Oscar 2022 integra uma temporada não muito boa para os roteiros originais que hoje ocupam o lugar consagrado por Bela Vingança em 2021.
O protagonismo de Julie é inquestionável, mas o problema é, justamente, seu isolamento do mundo. Ela tem interesses artísticos, sociais, culturais e políticos, mas o filme a mostra como uma mulher desligada do que acontece ao seu redor. Ora, na complexidade dos anos 2020, essa poderia muito bem ser a característica dominante da tal pior pessoa do mundo, mas Julie simplesmente não é. E para um filme que tem marcações geracionais tão importantes – para além do tedioso conflito Geração X vs. Millennials, onde o diretor insiste em investir – e valoriza tanto a dimensão material – num olhar muito válido para a modernidade da cidade de Oslo -, a questão se mostra um defeito de roteiro pouco perceptível, mas imperdoável.
Ao invés de trabalhar sua protagonista, a energia pretensiosa do texto – indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original de 2022, repito – sacia suas próprias expectativas em momentos óbvios e idealizadamente roteirizados. Desde os clichês que saem da boca de seus homens com teor de sátira mas sem o menor aproveitamento crítico (“queria que você pudesse ver o quão maravilhosa você é” e variantes), até a ausência de amizades no círculo de Julie, passando pelas demais personagens femininas ironizadas e terminando nos dois relacionamentos heterossexuais que predominam na história, A Pior Pessoa do Mundo não disfarça o desinteresse que tem pela sua personagem principal e seu potencial perfeitamente identificável.
Por outro lado, Renate Reinsve mantém um profundo e devido respeito pela sua personagem. A atriz, nomeada ao BAFTA depois de premiada pelo festival francês, sabe muito bem que o problema não é com ela. Para isso, basta observar a expressão naturalmente entediada e eminentemente espontânea de Julie – e vale lembrar, boa parte de seu tempo é tomado pelos seus relacionamentos. De forma potencialmente metalinguística (desperdiçada pelo desinteresse do roteiro), ela é, como suas próprias palavras a definem, uma coadjuvante da própria vida, confiando à Reinsve o difícil mas gratificante trabalho de viver uma protagonista nesse contexto.
Assim, os momentos mais interessantes de A Pior Pessoa do Mundo acontecem quando a personagem de Julie ensaia um aprofundamento e autoanálise pessoal, quase sempre motivada por embates que trava com as outras esferas de sua vida. O movimento, no entanto, nunca se completa, e aí, a personagem entra em mais um dos capítulos contaminados pela mesmice – e sempre permeados por homens. Por falar neles, os personagens masculinos (curiosamente) são interpretações que também procuram elevar o filme quando presos em sua própria mediocridade.
Eivind (Herbert Nordrum), que toma a paixão de Julie a partir da segunda metade do filme, conversa harmoniosamente com a presença magnética da personagem de Reinsve, mas também é vítima do desinteresse de Trier e Vogt. O único minimamente trabalhado é Aksel (Anders Danielsen Lie), um quadrinista pelo menos 10 anos mais velho que a Julie. Como seu principal e primeiro relacionamento, ele já introduz boa parte dos conflitos da personagem, com quem conserva muitas divergências sobre futuro e visões de vida. Sem ser aproveitado para o desenvolvimento da protagonista, ele ainda é presenteado com um fim mais digno que o dela – e se o próprio filme não explica, as projeções do diretor sim.
O elenco não está sozinho em sua missão, e outros aspectos do filme parecem buscar esse algo além que o roteiro de A Pior Pessoa do Mundo não é capaz de entregar. O destaque vai para a cinematografia de Kasper Tuxen, que define as duas fases principais de Julie como forma de traçar alguma evolução narrativa. Primeiro, ele trabalha com os focos, manifestando no visual a passagem borrada de Julie no mundo. Depois, quando ela vivencia algumas mudanças na tentativa de assumir uma posição mais ativa em sua vida, as câmeras a acompanham, notando com atenção a sua movimentação entre as pessoas e como ela afeta os elementos ao seu redor.
Mas de volta às palavras, nem tudo está perdido. A comédia ácida de Trier é sim capaz de gerar alguns risos genuínos no meio de seus muitos tons errados, e quando ela se direciona para a classe média metropolitana lidando com a pós-modernidade, encontra o sucesso mais notável. Por pouco, no entanto, o pequeno acerto não se transforma em mais um dos erros crassos do filme, quando ele beira a satirização completa de movimentos sociais e ambientais e desenha uma crítica errônea ao identitarismo a partir da coadjuvante de Maria Grazia Di Meo.
O momento, quase insignificante para a narrativa principal (assim como boa parte do resto do filme) mas muito importante para a compreensão do longa, também acaba por resolver uma questão que pode permear as avaliações de A Pior Pessoa do Mundo. Ao longo da história, os seus problemas podem se revelar como exclusivos ao roteiro, já que a direção de Joachim Trier conduz muito bem o resto dos elementos do filme, de maneira geral. Mas nos momentos mais críticos de uma narrativa fundamentalmente reflexiva, o rumo é perdido, novamente, nas próprias concepções do diretor, que atrapalham o crescimento de sua história no mesmo movimento problemático identificado no texto.
E não teria como ser diferente: no meio do filme, Julie desabafa que às vezes “só queria sentir as coisas” ao invés de sempre precisar se explicar, justamente num filme que não a olha nos olhos para compreender sua dimensão emocional – e sequer a justifica. É por isso que quando ela ouve que é “uma pessoa muito boa” nos 20 minutos finais, o fracasso narrativo acaba de se consolidar. Afinal, já é óbvio que a ideia invocada pelo título não diz respeito a um juízo de valor grosseiro, mas sim sobre a forma como nos sentimos diante das incertezas e infortúnios da vida. Mas questões importantes para o desenvolvimento dessa perspectiva, como “Quem é Julie, afinal?” e “o que faz alguém melhor ou pior?”, são atraentes apenas para o título, retiradas do enredo a fim de não perturbar a epopeia autocentrada de Trier.
É de se questionar, inclusive, o porque um diretor escolhe justamente a figura de uma mulher jovem para protagonizar uma história que invoca “a pior pessoa do mundo” a partir de uma motivação egocêntrica. Aqui está o crime hediondo: moldar uma personagem às próprias convenções para colocá-la como ré de um julgamento moral sem direito à uma defesa justa. Julie continua longe de corresponder ao filme e nós continuamos longe de qualquer conclusão sobre ele ou sobre ela, numa sensação nada bem-vinda à categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar 2022, responsável por sempre nos revelar as melhores obras da questionável seleção da Academia.
A trajetória de Julie tem suas conclusões livremente sutis, mas depois de tentar chegar até lá durante quatro anos retratados em duas horas, é evidente que sua autonomia não virá de quem a criou e que sua autopercepção não será desvinculada da visão de seu criador. Assim, também não é difícil de entender porque o filme foi escolhido para a notabilidade do Oscar ao invés de obras que alcançaram o mesmo – quando não mais – clamor naquela mesma época de festivais de 2021, seguindo dentre as seleções de melhores filmes do ano até 2022. Ao fim, A Pior Pessoa do Mundo ainda é a ideia que um homem tem de uma mulher – e se tem algo que se aproxima verdadeiramente de uma concepção da tal pior pessoa do mundo, é isso.