Guilherme Machado Leal
Em 2019, foi anunciado o elenco do live-action de A Pequena Sereia, tendo a atriz Halle Bailey como a protagonista Ariel, o que incomodou diversos fãs da animação original. Possíveis argumentos que poderiam ser levantados – mesmo sem um material promocional da obra sequer ter sido divulgado até aquele momento – deram lugar a uma enxurrada de comentários racistas pela internet. A cantora, da dupla Chloe x Halle, sofreu ataques desumanos devido a sua cor de pele: o primeiro teaser do filme foi bombardeado por um alto número de dislikes, o que mostra uma certa resistência – no caso, puramente racismo – do público para sua versão da Ariel. Agora, após a estreia, finalmente podemos avaliar de uma forma justa: Bailey fez jus à icônica sereia conhecida em 1989?
Essa pergunta não poderia ser respondida de outra forma: a artista é, de fato, a Ariel que precisávamos. Com a sua voz angelical e única, ela confere à personagem um traço de identificação ainda maior do que o presenciado na animação. A escolha da promissora atriz mostra que, quando quer, os estúdios Disney entregam ao público uma adaptação digna e que não compromete de forma alguma o seu material base.
O retrato da icônica sereia é feito de uma forma extremamente cuidadosa, uma vez que a personagem, pelo seu carisma, precisava ter a sua história contada de uma maneira que transpusesse da animação para o real a sua singularidade, a qual captou fãs pelo mundo inteiro. Com a escalação da artista para o elenco, esse legado foi levado adiante, ainda mais ao se observar o número de garotas pretas que puderam se sentir, pela primeira vez em um live-action, uma princesa de um conto de fantasias.
Dirigido por Rob Marshall (Chicago), A Pequena Sereia demonstra todo o cuidado do cineasta na construção do projeto: com o objetivo de colocar em tela a realidade, ele optou pela técnica fotorrealista na hora de retratar o fundo do mar. Certamente, em algumas cenas específicas em que apenas o cenário abaixo da terra é mostrado, pode-se perceber que o distanciamento da fotografia do filme de 1989 foi colocado em prática pela equipe de produção, uma vez que é notável a forma como o lar de Ariel é retratado. Além disso, com os designs criados para o próprio longa, o trabalho de John Myhre evidencia um frescor no que se relaciona ao CGI de adaptações live-action – diferentemente do de O Rei Leão, já que o público, ao ver o resultado final do filme, consegue acreditar que aquele cenário existe na vida real.
Um ponto que deve ser ressaltado e elogiado em A Pequena Sereia são os atores. Devido a sua excelente bagagem como comediante, Melissa McCarthy expressa uma Úrsula, a vilã, ao mesmo tempo assustadora e divertida. A maquiagem da personagem, que na animação é inspirada na arte da cultura das drag queens, no live-action não possui esse fator, o que pode ser um problema para os fãs mais apegados. No entanto, a caracterização de McCarthy não atrapalha o andamento da personagem e muito menos a afasta dos espectadores. Outro acerto é Javier Bardem, como o temido Rei Tritão. A roupagem dada pelo ator humaniza o pai de Ariel, que é extremamente protetor com a sua família e respeitado como o líder dos mares.
Aliás, a vontade da protagonista aqui é mostrada de uma forma bem clara: ela quer ser humana porque quer a sua liberdade. Antes mesmo de conhecer Eric (Jonah Hauer-King), a adolescente já possui o sonho de se aventurar pelo mundo terrestre. Com a canção Part of Your World, solo poderoso da princesa, o público entende o porquê o fundo do mar não ser seu único lar, além de se emocionar com os vocais tocantes de Halle Bailey que, nesse número, mostra a capacidade e a facilidade com que domina o papel. Por outro lado, o melhor amigo da sereia, Linguado (Jacob Tremblay), é um dos pontos fracos: todo o carisma do personagem não é captado e colocado no live-action, tirando o interesse acerca do seu arco. Isso é algo que não acontece com Sebastião (Daveed Diggs), que serve como alívio cômico e obtém na versão de 2023 um maior tempo de tela, sendo assim o mais importante companheiro de Ariel.
Quando o live-action foi anunciado, a seguinte pergunta foi feita: “Quem seria capaz de interpretar o príncipe Eric?”. O cantor Harry Styles, inclusive, quase pegou o papel do par romântico de Ariel, mas foi Hauer-King quem levou a melhor. Entretanto, no momento em que se compara a atuação de King com o nível entregado por sua co-protagonista, percebe-se que a adaptação de Eric não foi um dos acertos do filme, visto que o seu solo, a música Wild Uncharted Waters, é completamente desnecessária dentro das 2 horas e 20 minutos pelas quais o longa caminha, além de não acrescentar camadas para o personagem.
Por esse lado, a trilha sonora composta por Alan Menken, que participou da curadoria e produção da animação de 1989 e da adaptação, consegue fazer com que o fã saia da sala de cinema correndo para os agregadores de música a fim de ouvir o álbum completo. Com a adição de quatro novas canções, dentre elas um novo solo da protagonista, chamado For The First Time, e a engraçada The Scuttlebutt – ambas escritas por Lin Manuel Miranda (Em Um Bairro de Nova York) em parceria com Menken – a trilha sonora é, com toda certeza, um dos pontos altos dessa nova versão. As faixas originais, como Kiss The Girl e Under The Sea, continuam tão divertidas de se assistir e, com exceção do design do personagem Linguado, todo o resto é representado de uma forma crível e real.
A Pequena Sereia apresenta problemas de narrativa: mesmo com um tempo gigantesco, se comparado aos 83 minutos da animação, o filme não sabe se prioriza o desenvolvimento de personagem ou se prefere recriar cenas idênticas às do longa de 1989. Todo o terceiro ato é corrido e resolvido rapidamente, o que afasta seu público, dado que, pelo fato de as resoluções terem sido resolvidas em questão de segundos, o medo e o pânico são inúteis devido à falta de seriedade dos problemas gerados. Talvez se o solo de Eric e as outras duas músicas novas fossem cortadas, teria mais tempo para focar estritamente no desenvolvimento dos enredos que a trama apresenta.
Ao final, no geral o saldo de A Pequena Sereia é mais positivo do que negativo. Com a ótima direção de Marshall, alinhada ao comprometimento dos atores de entregarem um excelente trabalho, é possível se emocionar com o mais novo (não por muito tempo) live-action da Disney. Embora o filme tenha seus acertos, mais uma vez é preciso reforçar: a guinada de adaptações de obras que já existem para o Cinema evidenciam a crise que esse setor está passando, porque a existência de longas adaptados de animações é desnecessária. Até o momento, Aladdin é considerado pelo público geral o melhor filme adaptado da Disney, mas a história de Ariel vem logo atrás e, mais precisamente, por conta da belíssima atuação que Bailey entregou.
Por isso, é necessário o reconhecimento da atriz novata nesse papel. Ela interpretou uma personagem muito querida pelos fãs aficionados, o que não justifica de forma alguma todo o preconceito sofrido pela artista. Espera-se, aliás, que a internet aprenda duas coisas: primeiro, deixar de criticar o filme antes do lançamento e, segundo, parar de cometer crimes e disfarçá-los como opiniões. A protagonista é uma mulher forte e determinada, algo que transparece na intérprete no momento em que você a vê em cena. Dito isso, é importante exaltar A Pequena Sereia de 2023, pois é esse o projeto que apresenta ao mundo o talento incomparável de Halle Bailey.