Vitória Silva
Nascida em 1920, Clarice Lispector é um dos nomes intocáveis da nossa Literatura. A ucraniana, batizada como Haya Pinkhasovna Lispector, chegou ao Brasil aos dois meses de idade, com seus pais de origem judaica que fugiram do país devido à perseguição durante a Guerra Civil Russa. Inicialmente residente em Maceió, em sua infância e pré-adolescência, a autora passou por Recife e pelo Rio de Janeiro, e, por onde trilhava seu caminho, carregava consigo sua paixão pelos livros.
Após ingressar na Faculdade Nacional de Direito, em 1941, trabalhou como redatora da Agência Nacional e, posteriormente, do jornal A Noite, dando seus primeiros passos no universo da escrita. Não demorou muito para que mergulhasse de vez nele, e publicou seu primeiro romance em 1944, com o título Perto do Coração Selvagem. A obra estreante retrata uma perspectiva sobre o período da adolescência e, logo de cara, fez com que Clarice abrisse novos horizontes na Literatura nacional.
Quebrando todo e qualquer paradigma literário da época, Lispector abandona noções de ordem cronológica e funde um lirismo único a sua forma de representar ações e emoções humanas, traços que se tornaram mais do que característicos de toda a sua carreira. Não à toa, a produção foi agraciada pelo Prêmio Graça Aranha, e, mais tarde, a autora colecionaria outros títulos de referência, como Laços de Família (1960) e A Hora da Estrela (1977), em que este último ainda ganhou uma adaptação para as telonas, em 1985.
A Paixão segundo G.H. nasce em 1961. Uma das produções menos chamativas de toda a sua obra, mas que, de forma subestimada, carrega uma das viagens mais acalentadoras que Clarice conseguiu nos deixar em vida. Ambientada num apartamento no Rio de Janeiro, a história segue a narradora-protagonista, e única personagem, caracterizada pelas iniciais presentes no livro (se é que pode-se afirmar que essas letras dizem respeito a ela). Pertencente à classe alta, após demitir sua empregada, ela decide organizar o quarto da mesma.
Ao exercer o que parece ser uma tarefa simples e comum, e mais do que rotineira para qualquer um, a protagonista desencadeia uma série de reflexões, enquanto também se depara com a insignificância que a funcionária tinha para ela até o momento. Sem demais componentes atuando, a narrativa é uma imersão no seu próprio pensar, em que a solidão da atividade desempenhada leva a um diálogo com si própria. A estrutura textual evidencia o fluxo de pensamento, com capítulos que não possuem títulos ou marcações numéricas, mas se iniciam com a mesma sentença que encerrou o anterior, ilustrando sublimemente a constância da reflexão humana.
Apesar de não trazer nenhum personagem dialogável, se precisássemos eleger uma espécie de antagonista em A Paixão segundo G.H., com certeza, seria a barata. Ao arrumar o armário do quarto, a protagonista se depara com o inseto, e, no comum ato de esmagá-la, aprofunda-se ainda mais em uma viagem que transcende o tempo e o espaço de sua memória.
“Meu ciclo era completo: o que eu vivia no presente já se condicionava para que eu pudesse posteriormente me entender. Um olho vigiava a minha vida. A esse olho ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim. Eu vivia mais dentro de um espelho. Dois minutos depois de nascer eu já havia perdido as minhas origens.”
O monólogo interior gerado pela autora ecoa questionamentos psicológicos da personagem, ao passo que dialoga com obras da também genial Virginia Woolf e nos faz pensar se Lispector não seria capaz de ter escrito Fleabag nos dias atuais. Sempre se apoiando muito em metáforas, a ucraniana ainda domina as palavras com a maior leveza e facilidade possíveis, conduzindo-as de maneira a traduzir sentimentos dos mais banais, mas que acendem uma luz na mente de quem lê: “Detalhadamente não sendo, eu me provava que — que eu era”; “Solidão é ter apenas o destino humano. E solidão é não precisar”.
Perdida em seus próprios pensamentos, volta e meia a protagonista retorna para a realidade e seu conflito em relação à barata. O clímax de A Paixão segundo G.H. se dá de forma um tanto inesperada, quando, ao inseto expelir um líquido branco, a narradora decide engoli-lo, entrando em total estado de epifania. Ingerir um dos bichos mais asquerosos presentes na superfície terrestre causa uma autorevelação, em um ato perfeitamente simbólico. A mesma figura da barata também é subentendidamente retratada em A Metamorfose (1915), de Franz Kafka, que aborda sobre a perda da dignidade humana e caminha de mãos dadas com o presente romance, tendo até seu título ressoado nas entrelinhas. “É uma metamorfose em que eu perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu — só tenho o que eu sou”.
Sem um desfecho necessário para uma obra que percorre o mais íntimo do ser humano sem nem precisar sair das paredes de um apartamento, a protagonista não alcança uma devida conclusão. A Paixão segundo G.H. tem como ponto de chegada o mesmo de sua partida, com questionamentos sem resposta para essa personagem sem rosto e sem nome, na forma mais poética que alguém poderia pensar para retratar a essência daqueles de alma já formada. Ainda bem que tivemos uma Clarice Lispector para fazer isso.